O problema da falta de paridade de armas no processo para uma decisão justa no Estado de Direito
ApresentaçãoOs Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de...
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EditorialEstamos à beira das eleições majoritárias no Brasil e nada mais interessante que apresentarmos algumas...
Fernanda Manzano Sayeg
No dia 20 de julho de 2022, os Ministros das Relações Exteriores e da Economia dos Estados Membros do MERCOSUL e o Ministro do Comércio e Indústria de Singapura anunciaram a conclusão das negociações do acordo de livre comércio entre o bloco sul-americano e o país asiático, que vinha sendo negociado desde 2019. O acordo deve ser assinado até o fim do presente ano e entrará em vigor após a aprovação por todos os signatários.
Trata-se do primeiro acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e um país do sudeste asiático. Atualmente, o continente asiático apresenta as maiores taxas de crescimento econômico e populacional do mundo, bem como um altíssimo nível de integração entre as economias regionais.
A celebração do acordo comercial com o país asiático é estratégica do ponto de vista econômico. Singapura é uma ilha e um dos principais entrepostos comerciais do planeta, concentrando o fluxo comercial para o Sudeste Asiático. A economia do país tem sido tradicionalmente caracterizada por um robusto crescimento, inflação moderada, amplas reservas fiscais e monetárias, estabilidade financeira, forte posição externa e alto grau de abertura ao comércio e investimento internacionais. Singapura é um país de renda alta e com grande envolvimento no comércio internacional de bens e serviços, ocupando o 10º e 12º lugar no ranking de exportações e importações mundiais de bens e serviços. Com relação a investimentos estrangeiros diretos, o país do sudeste asiático é o 3º maior destino de investimentos estrangeiros e figura na lista como um dos principais investidores no mundo.
Atualmente, Singapura é o segundo principal parceiro comercial no Brasil na Ásia – atrás apenas da China – e o sexto maior destino das exportações brasileiras. A corrente de comércio de bens entre Brasil e Singapura totalizou US$ 6,7 bilhões em 2021 e, apenas em junho de 2022, o Brasil vendeu US$ 939,36 milhões para a ilha asiática, o equivalente a 2,88% do total exportado pelo país. O acordo com Singapura deverá aumentar ainda mais as exportações do MERCOSUL para o país asiático. Estimativas do Ministério da Economia demonstram que o acordo de livre comércio levará a um incremento nas exportações brasileiras de US$ 500 milhões por ano.
Justamente por ser um dos principais entrepostos comerciais do planeta, Singapura é parte de diversos acordos de livre comércio. O país é parte de 27 acordos de livre comércio, dentre os quais a Parceria Econômica Abrangente (RCEP) e Parceria Transpacífica (CPTPP) — que representam juntos cerca de 45% do PIB mundial. Tais acordos são caracterizados por uma alta ambição nas reduções tarifárias, em muitos casos com eliminação de tarifas sobre quase 100% dos bens comercializados entre as partes, bem como por compromissos robustos em temas não-tarifários, entre os quais propriedade intelectual, serviços e compras governamentais. Em razão dos referidos acordos comerciais, hoje Singapura aplica tarifa de 0% sobre todo o universo tarifário, exceto para duas categorias de produtos de cervejas de malte.
Ou seja, um acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e Singapura não poderia ser um acordo substancialmente distinto dos 27 acordos de livre comércio celebrados pelo país asiático, que sempre esteve na vanguarda em relação a esse tema.
De fato, o acordo celebrado entre o bloco sul-americano e a ilha asiática é moderno, abrangente e inovador. Entre os temas abrangidos pelo acordo estão regras sobre comércio de bens, regras de origem, facilitação de comércio e cooperação aduaneira, barreiras técnicas ao comércio (TBT), medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), micro e pequenas empresas, serviços, investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais, comércio eletrônico, defesa comercial e solução de controvérsias. Na área de investimentos, o acordo estabelece uma estrutura de governança que estimula a cooperação e a facilitação de investimentos e conta com elementos que favorecem a proteção a investimentos.
A aproximação comercial com a Ásia deve continuar nos próximos anos. Atualmente, o MERCOSUL mantém negociações comerciais com mais dois países situados na Ásia, a saber: Coreia do Sul e Líbano. Também existem mandatos negociadores para acordos de livre comércio com Vietnã e Indonésia. De acordo com estimativas da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, se concluídas, as negociações com Coreia do Sul, Indonésia, Vietnã e Singapura trarão um aumento no PIB brasileiro de R$ 502 bilhões em termos acumulados até 2040, além de impactos positivos nos investimentos, na corrente de comércio, na massa salarial e da queda nos preços.
Portanto, o acordo comercial com Singapura representa um importante primeiro passo em busca de maior inserção internacional da economia brasileira, com o estreitamento das relações com uma das regiões mais dinâmicas do mundo, o que pode resultar em diversões benefícios econômicos, incluindo o aumento das exportações para essa região e a inclusão de empresas sul-americanas nas cadeias globais de valor.
Eduardo Molan Gaban
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), durante seus quase 2 anos de vigência, já vem sendo matéria de diversos casos que tramitam pelo Poder Judiciário. Este, por sua vez, assume um papel relevante no sentido de direcionar a interpretação e aplicação desta recente lei.
Como é natural para as legislações recém-criadas/vigentes, é a experimentação em casos concretos que possibilita que sejam delineados os papéis dos atores envolvidos, os limites de sua aplicação e a fundamentação necessária para tanto.
Nesse sentido, podemos observar uma interessante decisão recente que nos ensina várias lições em alguns pontos cruciais da LGPD[1]: (i) a exclusão de empresas de pesquisa do conceito de instituição de pesquisa previsto na lei, por possuírem caráter lucrativo; (ii) a existência de violação da LGPD nas pesquisas de campo realizadas com dados sem o consentimento do titular; (iii) a aplicação concreta da responsabilidade solidária do operador.
Na aludida decisão, foi confirmada a condenação da Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. e da WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. pela realização de pesquisa de mercado contendo informações pessoais e dados sensíveis sem o consentimento dos titulares.
Segundo o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, autor da ação, este foi surpreendido com diversas indagações dos sindicalizados acerca de uma pesquisa de mercado enviada por mensagem de texto e correio eletrônico. Diante de tais indagações, a entidade procurou esclarecer que não contratou qualquer empresa para realização da pesquisa ou forneceu acesso ao banco de dados interno do sindicato, e que conhece o caráter sigiloso das informações pessoais dos sindicalizados, tendo ocorrido o acesso sem sua anuência ou seu conhecimento.
Em resposta às acusações, a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. relatou que a parceira Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. deu início a pesquisa de sondagem de mercado com o objetivo de implementar campanha eleitoral para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal no triênio 2021-2024, conforme informações disponíveis no sítio eletrônico do sindicato. Afirmou, ainda, que utilizou de banco de dados próprio, construído de forma lícita a partir de realização de outros trabalhos na área de pesquisa e de realização de campanhas eleitorais.
A Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda., por fim, apresentou o argumento de que foi contratada pela WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. com a finalidade de realizar a pesquisa de sondagem de mercado para as eleições no triênio 2021-2024 e que não houve utilização dolosa das informações constantes no referido banco de dados. Destacou que a responsabilidade deve recair exclusivamente sobre WHD Pesquisa e Estratégia Ltda., que a contratou, conduziu o processo e forneceu o banco de dados.
Após análise de todas as alegações, o Tribunal pontuou que a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. não se insere no conceito previsto no art. 7º, inc. IV, da Lei n. 13.709/2018[2], que disciplina a regularidade da obtenção dos dados, uma vez que possui finalidade lucrativa e seu foco é comercial.
Da mesma forma, concluiu o Tribunal que, diante da falta de consentimento do titular para o tratamento de seus dados pessoais, fica caracterizado o seu uso irregular, conforme a LGPD. E neste ponto, o Relator reiterou em seu voto a condenação solidária de ambas as empresas, atuantes como agentes de tratamento de dados, com fundamento no artigo 42, § 1º, I e II, da LGPD.
Como pontuou o voto condutor do Relator, “O controlador deve demonstrar finalidade legítima a justificar o tratamento dos dados já existentes, visto que a disponibilização de dados pessoais pode causar lesão irreparável à intimidade e ao sigilo da vida privada dos envolvidos. O fundamento, no caso, para a utilização dos referidos dados está na implementação de proposta comercial para campanha eleitoral a se contrapor ao direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade dos filiados que tiveram seus dados manipulados”.
Ao final, assinalou a possibilidade de direito de regresso oportunamente, afirmando que “O agente de tratamento de dados poderá pleitear o ressarcimento de sua condenação em ação regressiva quando demonstrar que não realizou o tratamento de dados pessoais em questão ou se realizou, não houve violação à legislação regente, ou ainda, se demonstrar que a lesão decorre de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro”.
Trata-se um importante julgamento para balizar os limites da responsabilização solidária do operador do dado, bem como para traçar uma definição mais linear sobre as hipóteses de legitimidade do tratamento do dado previstas na lei.
Agora, esse tipo de tema, bem como tantos outros temas que ainda serão melhor sedimentados com a prática, passarão a ser uniformizados de maneira mais precisa pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), na qualidade de autarquia de natureza especial.
Em 13 de junho de 2022, foi publicada a Medida Provisória nº 1.124, editada pelo Presidente da República, a qual foi a responsável pela transformação da ANPD em uma autarquia de natureza especial[3]. Até então, a natureza jurídica da ANPD era de “órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República”.
Referida modificação já estava prevista na redação anterior do artigo 55-A, § 1º, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)[4], que dispunha sobre a natureza transitória da natureza jurídica da ANPD como órgão da presidência.
A Medida Provisória prevê, ainda, a necessidade de modificação da Estrutura Regimental da ANPD para que se adeque à sua nova característica de autarquia de natureza especial. Porém, até que seja alterada, a MP dispõe que a Estrutura Regimental atual permanece vigente e aplicável.
Na prática, a ANPD não mais se subordina hierarquicamente à Presidência, e ganha maior grau de autonomia técnica e decisória, assumindo personalidade jurídica equivalente às das agências reguladoras, como a Anvisa, a Anatel e a Aneel[5]. A Autoridade, a partir de agora, atuará de forma descentralizada nas suas atividades de controle e fiscalização, com autonomia inclusive financeira.
Além disso, com a nova Medida Provisória nº 1.124, é ampliada a capacidade processual do Órgão perante o Poder Judiciário na defesa do direito à proteção dos dados pessoais, direito esse elevado ao patamar constitucional (Emenda Constitucional nº 115/2022[6]).
Isso porque, antes da referida Medida Provisória, a ANPD não se qualificava como uma pessoa jurídica de direito público interno, pois era um órgão da administração pública federal integrante da Presidência da República, fora do rol das pessoas jurídicas de direito público interno do artigo 41 do Código Civil. Além disso, detinha apenas um órgão de assessoramento jurídico próprio.
Agora, qualificada como uma autarquia, a ANPD ganha a qualidade de pessoa jurídica de direito público interno (artigo 41, IV, do Código Civil) e uma Procuradoria especializada, assim como ocorre com outras autarquias, como é o caso do CADE.
O efeito concreto dessas mudanças é a ampliação de sua capacidade processual para promover ações judiciais em matéria de proteção de dados, como medidas cautelares (p. ex.,busca e apreensão e suspensão de atividades de tratamento de dados pessoais), execuções e pedidos de cumprimento de suas sanções administrativas contra as pessoas punidas em seus processos sancionadores.
A ANPD, como autarquia de natureza especial, terá maior independência em relação ao Poder Executivo, e expertise para fixar outras interpretações em matéria de proteção de dados, seja em seus julgamentos de processos administrativos sancionadores ou até mesmo em sua atuação perante o Poder Judiciário.
A mencionada Medida Provisória ainda deve ser aprovada pelo Congresso Nacional para que haja sua conversão em lei. Até lá, todas essas inovações trazidas pela Medida Provisória, com inquestionáveis ganhos à proteção de dados pessoais, continuarão em vigor.
[1] Apelação Cível nº 0709580-09.2021.8.07.0001, julgada pela 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
[2] Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
IV – para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais;
[3] Art. 1º. Fica a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD transformada em autarquia de natureza especial, mantidas a estrutura organizacional e as competências e observados os demais dispositivos da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.
[4] Art 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.
§ 1º. A natureza jurídica da ANPD é transitória e poderá ser transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República.
[5] As agências reguladoras são previstas na Plataforma do Governo, cujo acesso é disponível em https://www.gov.br/ouvidorias/pt-br/cidadao/lista-de-ouvidorias/agencias_reguladoras.
[6] Nesse sentido, veja-se: https://webadvocacy.com.br/2022/03/17/protecao-e-tratamento-de-dados-pessoais-como-direito-fundamental-pec-17-2019-e-a-defesa-do-consumidor/
Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça
O que é o metaverso? Muito tem se falado nessa expressão, sobretudo, após Mark Zuckerberg ter anunciado em 28/10/2021 que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp passariam a ser chamados de “Meta”[1] com o objetivo de lincar os produtos oferecidos nessas redes sociais a uma nova tecnologia que pretende promover a convergência entre uma realidade física virtualmente aprimorada e um espaço virtual fisicamente persistente, incluindo a soma de todos os mundos virtuais, realidade aumentada e Internet.[2]
A literatura registra que o termo “metaverso” foi idealizado por Neal Stephenson em um romance chamado Snow Crash em 1992, onde o autor se referia a um mundo virtual 3D habitado por avatares de pessoas reais. Ernest Cline, ao escrever Ready Player One, em 2011, igualmente tratou desse mesmo fenômeno. Etimologicamente, a palavra “metaverso” é a junção do prefixo “meta” que significa “além” e a palavra “universo”. Até então estávamos no plano da ficção científica.
No entanto, produtos desenvolvidos com tecnologia inspirada no metaverso já estão disponíveis há cerca de duas décadas no mundo e vem ganhando, paulatinamente, mercado, com os jogos on-line que combinam plataforma de relacionamento com interação entre pessoas e ambientes digitais imersivos, como o Habbo[3] e Club Penguin[4].
Registre-se que outras tecnologias mais recentes como a dos jogos GTA RP Cidade Alta ou PK XD, também disponíveis para celulares Android e Iphone (IOS), vem ganhando ainda mais mercado. O GTA RP, segundo especialistas, utiliza a técnica Roleplay que quer dizer “interpretação de personagem”, onde o jogador tem a possibilidade de criar uma história e fazer um tipo de simulação de vida, ou seja, se cria um personagem avatar que interage com outros personagens avatares, no mundo digital, por meio de pessoas reais.[5] Já o PK XD[6], muito direcionado ao público infantil e adolescente, inicialmente criado no âmbito da subsidiária PlayKids, rapidamente, diante de seu sucesso, deu origem a criação do estúdio de games da empresa Afterverse. A essência é a mesma, onde se cria um avatar que pode realizar diversas atividades e interagir ao mesmo tempo com outros jogadores por meio de um chat, mesclando o ambiente real e o virtual em uma única dimensão.
Até então, as tecnologias de interação do mundo virtual e do mundo real estavam restritas aos games, mas diante do sucesso com o público e dos vultuosos lucros que geraram, a indústria já começou a desenvolver produtos tecnológicos diferenciados sob a mesma concepção tecnológica unindo o real e o virtual em uma única dimensão.
Um dos produtos que está em alta é o chamado “óculos do Facebook”, uma parceria entre a Ray Ban e o Facebook chamado de Ray-Ban Stories Smart Glasses que mescla a função precípua dos óculos de sol e agrega as funções de vídeo câmera e áudio, permitindo tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e compartilhar conteúdos pela mídia social.[7]
Há outros produtos que aderem tais tecnologias que estão sendo desenvolvidas para serem disponibilizadas em veículos, permitindo ao passageiro uma experiência de imersão muito maior que apenas a visual, despertando novos sentidos. A Holoride[8] é uma empresa que desenvolve tecnologias, como a XR, que permite o feedback físico em tempo real do veículo, fazendo com que você passe a sentir o que vê. Tais tecnologias já estão disponíveis em automóveis da marca Audi[9] e Porsche[10], por exemplo. Outras grandes empresas como a Neuralink e a Minlab desenvolvem tecnologias voltadas para o conhecimento (ilimitado) do cérebro, para entendê-lo em uma teia de comunicação que permite que você se mova, pense, sinta e perceba[11], para produzir uma interface com o cérebro, empurrando os limites da engenharia neural[12], além de promover engenharias junto ao cérebro com o objetivo de melhorar a vida[13].
Diante de tais exemplos, é possível afirmar que o Metaverso já é uma realidade incontornável. No entanto, nesse momento histórico, essa tecnologia ainda não foi capaz de alterar o modo de viver da humanidade. Ao que tudo indica, o Metaverso não será um plus da internet. Será uma outra dimensão real/virtual unívoca e pretende mudar a forma da humanidade se relacionar em todos os seus aspectos.
Mudanças paradigmáticas como essas ocorrem de tempos em tempos. Como exemplos, a invenção da escrita pelos povos sumérios na antiga civilização mesopotâmica (atual Iraque) por volta de 4.000 a.C; a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg no século XV, por volta de 1439 e a invenção da internet, no pós-guerra fria, com todos os desenvolvimentos tecnológicos que permitiram a Tim Berners-Lee criar a World Wide Web em 1992.
A tecnologia, de fato, encanta, seduz. É sempre a possibilidade de nos encontrarmos com o novo, com a descoberta, vivenciar novas emoções, experiências, facilidades e sensibilidades. A tecnologia representa superação e inteligência, expressão da criatividade do ser humano e acaba transformando em realidade a capacidade do ser humano produzir, inventar, proporcionar experiências ainda não vividas pela humanidade, inovar, expressar-se, utilizar sua inteligência para produzir o “novo”.
No entanto, a pergunta que fica é: o que está por trás dessas tecnologias do metaverso? Qual é a real intenção desse modelo de negócio? Shoshana Zuboff identificou que, no caso da internet, o modelo de negócios gira em torno da obtenção de superávit comportamental para ganhos alheios. Segundo a Autora,
“não somos mais os sujeitos da realização de valor. Tampouco somos, conforme alguns insistem, o “produto” das vendas do Google. Em vez disso, somos os objetos dos quais as matérias-primas são extraídas e expropriadas para as fábricas de predição do Google. Predições sobre o nosso comportamento são os produtos do Google, e são vendidos aos verdadeiros clientes da empresa, mas não a nós. Nós somos os meios para os fins dos outros.”[14]
Com o metaverso, o modelo de negócios que está por trás dessa tecnologia é a obtenção de superávit de pensamentos e sentimentos para ganhos alheios. Assim, a obtenção dos “comportamentos” humanos está para o modelo de negócios da internet, como a obtenção dos “pensamentos e sentimentos” humanos está para o modelo de negócios do metaverso. E é aqui que surgem as significativas preocupações com o que está por vir e quais os impactos da adoção desse modelo de negócios para os direitos humanos fundamentais.
Raul Seixas, músico brasileiro, se estivesse vivo poderia não acreditar que, ainda que sob outro viés, teria sido um profeta da humanidade ao escrever a letra da música “O metrô da linha 743” e prever que o preço das mercadorias poderia variar conforme o nível mental do consumidor. Se o que interessa são os pensamentos e não os documentos e se as tecnologias do metaverso têm por propósito conhecer não mais só nossos comportamentos, mas também nossos pensamentos e sentimentos, é hora de se parar e avaliar se os Estados não precisam colocar limites ao desenvolvimento dessas tecnologias, por mais encantadoras que sejam.
Muitos questionamentos surgem dessas reflexões: Quais mudanças sociais, econômicas e jurídicas poderão advir da adoção em massa dessa nova tecnologia? Como será a humanidade ciborgue? O que diferencia as sociedades que pensam mais das que pensam menos? Como saber o que você pensa pode alterar a concentração econômica, o preço do arroz e do feijão, as regras de custo da oferta e da demanda e a lógica dos mercados? O que é o pensamento? O que pensa o pensamento?[15]
Pensar é um exercício. Pensar é refletir, é dar tempo de considerar opiniões em contrário, é parar, é considerar a opinião do outro, é, também, poder mudar de opinião. Pensar é um ato interno, privativo, solitário e só é compartilhado quando da vontade do pensador. Até aqui, o pensar faz parte da privacidade e da intimidade do ser humano.
Tecnologias que captam nossos pensamentos e sentimentos sem nossa permissão e usam tais informações contra o próprio ser humano, como estratégia dos seus modelos de negócios, induzindo comportamentos (e porquê não pensamentos e sentimentos?) são aviltantes e é preciso que o desenvolvimento dessas tecnologias, se usadas como modelos de negócios, sejam “limitadas” para que a nossa cabeça “oca” não seja jogada no lixo da cozinha e nem nossos cérebros sejam comidos vivos à vinagrete por senhores alinhados, despertando ao nosso último pedaço, antes de ser engolido, o pensamento de “quem seria esse desgraçado dono dessa zorra toda”.
Lutemos, pois, enquanto há tempo, contra o abuso de poder econômico e imponhamos limites às tecnologias que possam violar direitos fundamentais do ser humano ao captarem nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos, sem nosso consentimento. Chega de ganharmos espelhos.
[1] https://tecnoblog.net/noticias/2021/10/28/facebook-muda-de-nome-para-meta-por-causa-do-metaverso/ disponível em 19/07/2022.
[2] https://tecnoblog.net/responde/entenda-o-que-e-metaverso-a-realidade-do-futuro/ disponível em 17/07/2022.
[3] https://www.habbo.com.br/ disponível em 20/07/2022.
[4] https://newcp.net/pt/ disponível em 20/07/2022.
[5] https://mktesports.com.br/blog/games/o-que-e-gta-rp/ disponível em 20/07/2022.
[6] https://canaltech.com.br/mercado/pk-xd-e-apenas-para-criancas-a-estrategia-da-afterverse-para-o-jogo-vai-alem-177960/
[7] Prontos para óculos inteligentes? Torne seus os Ray-Ban Stories, a última novidade em termos de tecnologia vestível. Nossos óculos de grau e de sol inteligentes, com videocâmara e áudio, combinam a lendária tecnologia de Facebook com o estilo icônico Ray-Ban. Com os óculos Ray-Ban X Facebook, você pode tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e fazer chamadas, além de compartilhar conteúdos diretamente nos seus canais de mídia social. Escolha seus óculos tecnológicos Ray-Ban entre 3 modelos atemporais e 20 combinações de cores de lentes e armação.[7] https://www.ray-ban.com/brazil/ray-ban-stories?cid=IN-SGA_210607-4.BR-RayBan-PT-NB-DSATargetUrl&gclid=EAIaIQobChMIz4_pt9uH-QIVGEJIAB1c3A1XEAAYASAAEgJ9oPD_BwE&gclsrc=aw.ds disponível em 20/07/2022.
[8] https://www.holoride.com/ disponível em 20/07/2022.
[9] https://www.audi.com/en/innovation/development/holoride-virtual-reality-meets-the-real-world.html disponível em 20/07/2022.
[10] https://newsroom.porsche.com/en/2022/innovation/porsche-entertainment-technology-startup-holoride-location-based-virtual-reality-lbvr-porsche-experience-center- pec-los-angeles-27561.html disponível em 20/07/2022.
[11] https://neuralink.com/science/ disponível em 20/07/2022.
[12] https://neuralink.com/approach/ disponível em 20/07/2022.
[13] https://neuralink.com/applications/ disponível em 20/07/2022.
[14] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 115.
[15] Em referência a Felipe Zenchet, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Brasília.
Fabio Luiz Gomes & Thiago Tirolli
I – Critério temporal
Constata-se que o Art. 3º delimitou que a Emenda Constitucional entrou em vigor na data da publicação e fixou que a exigência da relevância aos recursos interpostos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional, isto é, 14 de Julho de 2022.
Não restando dúvidas de que os recursos em trânsito no Superior Tribunal de Justiça não poderão ter como filtro de admissibilidade esta Emenda Constitucional.
II – Conceito de Relevância
Um dos desafios impostos pela Emenda Constitucional será estabelecer um conceito de “relevância”.
Estabelece o Art. 1º da Emenda Constitucional (acrescentou um § 2º ao Art. 105 da CRFB) que no Recurso Especial “o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”.
Trata-se, nesse caso, de um reflexo claro da visão que o Superior Tribunal de Justiça possui de sua missão constitucional, de pacificar e dar a última palavra na aplicação da legislação federal, sem que funcione como verdadeira Corte de revisão.
Portanto, é fato constitutivo – decorrente do mandamento do próprio texto da emenda constitucional, ao dispor que o recorrente “deve” demonstrar a relevância – que a partir de 14 de Julho de 2022 o Recurso Especial traga em suas razões um tópico de admissibilidade recursal que fundamente o requisito da relevância das questões de direito infraconstitucional a ser demonstrado pelo recorrente.
Ao contrário do que ocorreu na regulamentação da transcendência dos Recursos de Revista direcionados ao TST, ocorrida em 2017 pela chamada “Reforma Trabalhista”, que define que o Tribunal analisará se a causa transcende aos interesses individuais – desobrigando o recorrente de trazer o tema como tópico recursal -, no presente caso o texto constitucional já prevê uma atuação positiva do recorrente.
Assim, a demonstração da relevância metaindividual, portanto, transcendente, deve fazer parte da petição recursal.
A negativa de trânsito ao Recurso Especial por conta da ausência de relevância apenas pode ocorrer pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente. Nesse caso, tratando-se de Resp, em regra o órgão julgador é uma das Turmas do STJ, compostas por 5 ministros. Assim, o não conhecimento do REsp, por esse motivo, apenas pode ocorrer pela manifestação de ao menos 4 Ministros.
Observa-se, contudo, que o próprio dispositivo utiliza o vocábulo “nos termos da lei”, parece que em uma interpretação mais açodada poder-se-ia considerar essa norma constitucional como sendo de eficácia limitada.
Contudo, ao se realizar uma interpretação sistemática constata-se que na verdade se trata de uma norma constitucional de eficácia contida, isto é, essa norma já possui a aplicabilidade direta e eficácia imediata, e se posteriormente houver uma norma infraconstitucional poderá restringir o seu alcance.
Posto isto, urge delimitar o alcance do que seja “relevância” para essa norma enquanto não houver a norma infraconstitucional restritiva.
De início, a própria norma traz previsões em que a relevância será presumida. Recursos Especiais que envolvam matéria penal, improbidade administrativa e inelegibilidade não passam pelo filtro da relevância.
Ainda, o texto da EC nos aponta mais critérios: (i) Recursos especiais oriundos de causas cujo valor da causa seja superior a 500 salários mínimos; (ii) em que o acórdão afronte jurisprudência dominante do STJ; e (iii) demais casos previstos em Lei.
Tais critérios, que afastam a necessidade do Recurso Especial se sujeitar ao filtro da relevância, nos dão um direcionamento inicial em que casos teremos essa relevância “presumida”. Entretanto, decerto exigirão interpretação e discussão do próprio STJ para definir as especificidades de sua aplicação.
Por exemplo. Quando se fala que o valor da causa, é adequado considerar o valor apontado na inicial (ou em correção posterior) ou, em interpretação sistemática, deve-se considerar o proveito econômico da demanda e o seu potencial reflexo econômico? O tema é abordado com mais detalhamento no tópico adiante.
E mais. Não podemos apontar com segurança o que pode ser considerado jurisprudência dominante do STJ, pois se trata de conceito aberto. Seriam as decisões reiteradas de Turmas da Corte? Decisões chanceladas pela Corte Especial? Decisões vinculantes?
Por fim, sobre a presunção de relevância “nos termos da lei, poder-se-á fazer uma interpretação sistemática do termo “relevância” e por analogia se fixaria um critério terminológico, buscar-se-ia no requisito de repercussão geral nos recursos extraordinários[1], que também se utiliza o termo “relevância” para definição do que seja repercussão geral.
Portanto, a delimitação do conceito de “relevância”, enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional restritiva, será relevante “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa…”.
Tal se alinha com o desenho e atuação do Poder Judiciário brasileiro, em especial o STF que, por ser a Corte Suprema, em princípio, daria a última palavra sobre que temas entende haver transcendência dos interesses individuais.
Ou seja, uma causa em que o Supremo Tribunal Federal entendeu possuir Repercussão Geral, atrai a existência de transcendência para o Recurso e Revista trabalhista e assim deve ser para o Recurso Especial.
O STF assim já se manifestou, a exemplo da Rcl 38529 AgR-ED, em que estipulou que:
“Nos termos da jurisprudência desta Corte, o óbice suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho à admissão do agravo de instrumento no recurso de revista (ausência de transcendência da matéria) está em descompasso com a premissa de que os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal dos paradigmas referidos (Tema 246 e ADC 16) revelam a transcendência da questão debatida nos autos de origem.
Dessa desarmonia, resulta a usurpação da competência desta Suprema Corte, pela inadmissível obstrução da via recursal extraordinária”.
Portanto, adequado que na pendência de Lei que regule a EC, utilize-se os parâmetros de Repercussão Geral.
Em conclusão, os recursos especiais devem destacar um tópico que demonstrem a relevância recursal, apontando os casos em que a relevância seja presumida nos termos do próprio texto constitucional e enquanto não houver a norma restritiva, deverá ser uma causa meta-individual do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.
E, ademais, como a EC trouxe conceitos abertos, cabe aos recorrentes iniciarem a discussão desses temas, em especial do que seria considerado, neste caso, jurisprudência dominante do STJ.
III – Valor da Causa
Em dois dispositivos o termo “valor da causa” é repetido:
Em relação ao item 1, pode-se chegar às seguintes interpretações:
Uma primeira interpretação é a literal, de que não caberia recurso especial de causas que fossem inferiores a 500 (quinhentos) salários mínimos, porém, numa perspectiva interpretativa sistemática, não poderia infirmar tamanho impeditivo as causas inferiores a esse patamar, sob pena de contrariar diversos princípios constitucionais, dentre eles destacaríamos o do devido processo legal substantivo (due process of Law), afinal não se pode restringir a vida-patrimônio ou liberdade sem o devido processo, neste caso, nem uma lei, no caso uma emenda constitucional, poderiam fazê-lo.
No entanto, objetivamente, essa lei gera uma presunção de que nas causas superiores a esse valor poderia ser considerada relevante, com uma argumentação simplificada. Nesse diapasão, restaria simplificada a argumentação da relevância jurídica-social-econômica nas causas superiores a esse valor.
Ao passo que nas causas inferiores a esse valor, a parte recorrente deverá demonstrar de forma analítica-fundamentada a relevância jurídica.
Concluindo, as causas superiores a 500 (quinhentos) salários mínimos gozam de uma presunção relativa de que haja relevância jurídica, nas causas inferiores a esse valor, caberá às partes fazerem uma demonstração analítica da relevância jurídica de sua causa.
Já no item 2, inicialmente poderia se pensar que ao fixar o valor da causa com um valor inferior na petição inicial, no curso do processo ficar constatado o benefício econômico, poderia ser pleiteada a revisão do valor da causa em sede de recurso especial e com isso, se for superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, poderia ser revista.
Contudo a Emenda Constitucional não se utilizou do conceito de benefício econômico, portanto, a atualização deverá ser versada do valor atribuído ao valor da causa.
IV – Jurisprudência dominante do STJ
O fato da emenda constitucional trazer o conceito aberto “Jurisprudência dominante” do STJ abre espaço para que o recorrente, utilizando-se da argumentação jurídica e retórica, classifique que o acórdão recorrido, de alguma forma, violou a jurisprudência dominante do STJ.
E a discussão é proveitosa e, ao nosso ver, decerto será parametrizada pelo STJ logo no início da aplicação do filtro de relevância nos Recursos Especiais.
A despeito da falta de definição, o Código de Processo Civil pode auxiliar em tal interpretação.
O artigo 489, § 1º, VI do CPC, ao falar das decisões que são consideradas não fundamentadas, inclui aquela que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte.
E sobre isso, o STJ já pôde se manifestar no sentido de que “A regra do art. 489, §1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos.”(REsp n. 1.892.941/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 8/6/2021.)
Portanto, é provável que o STJ, ao aplicar o filtro da relevância, considere que jurisprudência dominante seja apenas os precedentes qualificados e vinculantes que possui.
Não obstante, na visão dos produtores deste texto, para garantir o cumprimento do mister constitucional da Corte cidadã, jurisprudência dominante deve ser considerada aquela (i) reiterada nas turmas; (ii) oriunda da Corte Especial; ou (iii) consubstanciada em Súmula da jurisprudência da Corte.
Isso porque, a produção de precedentes qualificados no STJ pode não ocorrer na velocidade que os jurisdicionados necessitam, o que permitiria a interpretação descompassada da legislação federal pelos Tribunais Estaduais.
De toda forma, considera-se proveitoso o debate sobre o tema para ensejar a pacificação da questão desde logo.
[1]A regulamentação do § 3º do art. 102 da Carta Magna foi realizada pela Lei nº 11.418, de 2006, que inseriu os arts. 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, e pela Emenda Regimental nº 21, de 2007, do Supremo Tribunal Federal (STF).
FABIO LUIZ GOMES. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Mestre e Doutorando em Direito Público.
THIAGO TIROLLI. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Especialista em Direito Processual Civil.
EditorialA partir do dia 1º de agosto as novas alterações constitucionais advindas da PEC das...
Mauro Grinberg
Já se disse que a Constituição Federal é uma obra em capítulos. O último (até o momento em que este singelo artigo é escrito) é a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, que altera o art. 105 para introduzir o quesito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.
Estabelece o art. 105, III, “a”, que “compete ao Superior Tribunal de Justiça” “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e territórios, quando a decisão recorrida” “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.
Foi agora acrescentado, pela nova emenda, o § 2º: “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.
Leonardo Carneiro da Cunha, em oportuno artigo, já nos adverte que a expressão “nos termos da lei” traz exigência: “O novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido § 2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo “nos termos da lei”, a exigir que haja disciplinamento legal”[1].
O que se vê é que a interposição de recurso especial com base na alínea “a”, acima referida, impõe a necessidade da demonstração de relevância (“nos termos da lei”), sendo que tal relevância pode, em tese, não ser conhecida pela maioria de 2/3 do órgão julgador. Até aqui temos um entendimento.
Mas a emenda acrescentou também o § 3º, que Leonardo Carneiro da Cunha trata como de “relevância automática”[2]: definindo em seus incisos os casos em que “haverá a relevância”: “ações penais”, “ações de improbidade administrativa”, “ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos”, “ações que possam gerar inelegibilidade”, “hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça” e “outras hipóteses previstas em lei”.
De início já se percebe que o legislador constitucional deixou aberta ao legislador ordinário a faculdade de acrescentar hipóteses de cabimento do recurso especial, no que parece ser uma alteração perigosa de competência, dando ao legislador ordinário o poder de, na prática, legislar constitucionalmente. Em linguagem mais clara, o legislador ordinário poder mudar a Constituição com quórum menor e procedimento mais simples. Mas há outra dúvida trazida pela nova emenda.
Tal dúvida é saber se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderá negar seguimento a um recurso especial mesmo que se aplique um dos incisos do § 3º acima referido, como, por exemplo, se uma causa ultrapassa o valor de 500 salários mínimos – o que hoje resultaria no valor de R$ 660.000,00. Se o valor da causa for superior a este valor, pode o STJ ainda assim negar a relevância quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” a esta hipótese?
Em outras palavras, quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” em determinadas hipóteses, ele parece, na leitura simples, ser determinante. E nem precisa de disciplinamento legal por ser de “relevância automática”. Então, a possibilidade de rejeição por 2/3 dos membros do órgão julgador parece ser destinada às demais hipóteses, que não estas previstas no § 3º acima referido. Isto porque a linguagem da emenda é determinante, indicando que, por exemplo, um recurso especial em uma causa cujo valor exceda 500 salários mínimos será necessariamente relevante. Assim, em um processo de valor superior a R$ 660.000,00, a demonstração de relevância é desnecessária porque o assunto é relevante por determinação constitucional.
Vale lembrar que o art. 2º da emenda permite que, nas causas iniciadas antes da sua entrada em vigor, a parte interessada altere o valor da causa. Aí existirá uma outra dúvida na hipótese do réu original da ação ser o recorrente pois o valor terá sido fixado pelo autor.
Aguardemos novos capítulos.
Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador de Grinberg e Cordovil.
[1] “Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal”, Consultor Jurídico, 16/07/2022
[2] Artigo citado
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