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Os algoritmos e a discriminação de preços: qual é o papel do direito antitruste na sociedade do capitalismo de vigilância?

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A lógica antitruste desenvolvida por Louis Brandeis no final do século XIX, o julgamento dos casos “Standard Oil Company e U.S. Steel Coorporation” pela Suprema Corte norte-americana e a criação da primeira lei antitruste no mundo pelo Senador John Sherman em 1890 nos Estados Unidos da América (assim chamada “Sherman Act”), tinham por finalidade evitar a formação de monopólios com a concentração do poder econômico e garantir o livre mercado, tendo como expoentes, à época, John D. Rockefeller e John Pierpont Morgan. Constituiu-se o primeiro movimento contra os “trusts”, daí chamar-se de “anti-trust”, momento em que se vivia num período de modificação paradigmática com a revolução industrial.

Um pouco mais de um século após, a humanidade está diante de uma nova revolução paradigmática – da tecnologia da informação -, cuja “nova” organização da sociedade em redes provoca burburinhos sobre o novo movimento “populista”, “neobrandesiano” ou “hipster” da atualidade”.[1]Tais mudanças também espraiam seus efeitos no antitruste do século XXI e já provocam, em grande parte do mundo, reflexões sobre o “fim da concorrência como a conhecemos”[2], dada a necessidade premente de repensá-la.

Relatório das autoridades de concorrência Alemanha-França chama à atenção para a distinção entre a mera interação dos computadores, o que pode até causar o paralelismo de preços e a incerteza da comunicação entre os algoritmos, discutindo frequentemente a autoaprendizagem das black boxes.[3] O mencionado relatório faz recomendações a serem seguidas no contexto antitruste, seja no controle de estruturas seja no controle de condutas.[4]

No entanto, importante registrar que há autores contrários e favoráveis a uma adaptação à legislação antitruste. Juliana Domingues traz uma revisão da literatura colacionando autores favoráveis e contrários a alguma adaptação no modelo adotado. Autores como Hovenkamp, Orbach, Rebling, Whrigt e Ginsburg defendem não apenas as premissas da Escola de Chicago e as orientações a partir de Bork, mas também a manutenção de uma análise baseada em critérios mensuráveis e objetivos, onde o “tamanho das empresas” – too big – não deve ser o fio condutor da análise.” Por outro lado, também reporta autores da linha “neo-brandesiana”, como Pitofsky, Bogus, Wu, Khan entre outros que defendem novos paradigmas.[5]

Apesar dos posicionamentos doutrinários divergentes, é certo que a extraordinária concentração econômica vivida na era digital em diversos setores da economia mundial associado à eficácia irracional dos dados[6] acendeu um novo alerta sobre a gravidade da concentração do poder econômico e sobre os efeitos desses monopólios e oligopólios para os consumidores, na medida em que o poder econômico dessas empresas associado ao acesso privilegiado de dados e informações privadas, agora geridos por máquinas dotadas de inteligência artificial, permitem a discriminação de preços de primeiro grau, cobrando de cada cliente o preço máximo (preço de reserva) que ele está disposto a pagar. Nesse caso, o vendedor maximiza seus lucros pela captura de todo o excedente do consumidor.”[7]

A combinação entre o desenvolvimento tecnológico e a detenção de informações sobre os consumidores acabaram por permitir que as empresas que detém os robo-sellers possam fazer a precificação dos produtos, conforme a utilização das informações de consumo detidas pelas black boxes algorítmicas[8], praticando a cobrança pelo preço de reserva dos indivíduos e não pelo preço de equilíbrio, capturando o excedente do consumidor e modificando a lógica da concorrência perfeita.

É fato que os robôs formulam os preços de forma imediata e autônoma, assim como não resta dúvidas de que toda a responsabilidade antitruste e toda a estrutura de enforcement prevista nas legislações nacionais e internacionais (art. 36 da Lei nº 12.529/2011, art. 101 TFEU e arts 1º e 2º Sherman Act) somente alcançam os seres humanos. Também parece indubitável que o fato de um robô “abaixar” imediatamente o preço de um produto quando ciente de que o seu concorrente rival o diminuiu, em última ratio, fará com que não haja quaisquer incentivos em se diminuir os preços dos produtos por quaisquer dos concorrentes. A tendência natural, se não houver qualquer intervenção por parte da autoridade de defesa da concorrência, é a de que os preços fiquem cada vez mais distantes dos preços competitivos, haja um aumento excessivo dos lucros por aqueles que se beneficiam da ação dos robôs e que se aumente expressivamente a desigualdade social entre ricos e pobres.

No âmbito desse contexto, surge a infração à ordem econômica de discriminação de preços, onde se extrai o excedente do consumidor, na medida em que os algoritmos, baseados nas informações dos consumidores (big data), conseguem processar e alcançar o preço de reserva do consumidor.

Parece inegável, portanto, que as mudanças tecnológicas operadas pela revolução digital nas economias mundiais exigirão, num futuro não tão longínquo, a atualização das legislações antitruste, do ponto de vista material e processual, a fim de permitir que a colusão operada via robôs possa ser efetivamente punida pelas autoridades concorrenciais.

A questão não está, a princípio, na previsão de tipos legais de infração à ordem econômica, mas na combinação entre o exercício abusivo do poder econômico via precificação dos algoritmos com a identificação da responsabilidade antitruste, seja de quem criou o algoritmo seja de quem se beneficia da cobrança do preço de reserva, extraindo o excedente do consumidor.

Desse modo, nos parece que o grande desafio do antitruste do século XXI, pois, é o de identificar se a inteligência artificial e as machine learnings, de fato, provocam um dano ao consumidor[9]; em segundo momento, verificar como a precificação por algoritmos (lineares ou black boxes) tem a potencialidade lesiva de causar danos ao consumidor com  a cobrança do preço de reserva ou de preços semelhantes aos praticados por monopolistas, em terceiro lugar, avaliar quais seriam os caminhos ou as possibilidades para se evitar ou contornar essa prática e, em um quarto momento, analisar se a legislação antitruste poderia prever a responsabilização daqueles que, de fato, se beneficiam da captura do excedente de recursos cobrados pelo preço de reserva ou equivalentes aos preços de monopólio. Há muito trabalho pela frente.

[1] Como escreveu o sociólogo Manuel Castells, a “revolução a tecnologia da informação” representa um raro intervalo na história da vida entendendo-a como “uma série de situações estáveis pontuadas em intervalos raros por eventos importantes que ocorrem com grande rapidez e ajudam a estabelecer a próxima era estável”. Prossegue, aduzindo, que “(…) no final do século XX estamos vivendo um desses raros intervalos da história. Um intervalo cuja característica é a transformação de nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação. A Sociedade em Rede/Manuel Castells; tradução: Roneide Venâncio Majer; – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 49.

[2] ATHAYDE, Amanda; GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee Antitruste? A Inteligência Artificial e seus impactos no direito da concorrência in Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade/coordenação Ana Frazão; Caitlin Mulholland – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, pp. 433-455.

[3] Algorithms and Competition. November 2019. Autorité de la concurrance e Bundeskartellamt. Disponível em https://www.autoritedelaconcurrence.fr/sites/default/files/algorithms-and-competition.pdf. Acesso em: 27 mai 2021.

[4]Disponível em  https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-9-2020-0022_PT.html em 27/05/2021Adaptar a concorrência à era digital:  (…) 23. Exorta a Comissão a rever as regras relativas às fusões e aquisições e a reforçar a ação «antitrust», bem como a ter em conta os efeitos do poder de mercado e da rede associados aos dados pessoais e financeiros; insta, em particular, a Comissão a tratar o controlo desses dados como um indicador da existência de poder de mercado em conformidade com as suas orientações sobre o artigo 102.º do TFUE; convida a Comissão a retirar ensinamentos da fusão entre o Facebook e o WhatsApp e a adaptar os seus critérios em conformidade; propõe, por conseguinte, que todas as concentrações no mercado desses dados estejam sujeitas a uma declaração informal prévia; 24. Solicita à Comissão que reveja o conceito de «abuso de posição dominante» e a doutrina das «infraestruturas essenciais» para garantir que cumpram a sua finalidade na era digital; sugere que se efetue uma análise mais ampla do poder de mercado no que se refere aos efeitos de conglomerado e de guardião do acesso, para combater o abuso de posição dominante dos grandes operadores e a falta de interoperabilidade; insta a Comissão a realizar uma consulta das partes interessadas para refletir sobre a evolução da economia digital, incluindo a sua natureza multifacetada;

[5] DOMINGUES, Juliana; GABAN, Eduardo (2019). Direito Antitruste e Poder Econômico: o movimento populista e “neo-brandeisiano” in, Revista Justiça Do Direito33(3), 222-244. Disponível em: https://doi.org/10.5335/rjd.v33i3.10429. Acesso em: 24 mai 2021.

[6] FRAZÃO, Ana et all. Black Box e o direito face à opacidade algorítmica in Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa / A. Barreto Menezes Cordeiro… [et al.]; coordenado por Felipe Braga Netto… [et al]. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 29.

[7] ATHAYDE, Amanda; GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee Antitruste? A Inteligência Artificial e seus impactos no direito da concorrência, cit., 2019, p. 449.

[8] [a]s black boxes algorítmicas são o resultado da aplicação crescente da tecnologia de inteligência artificial combinada ao tratamento de grande volume de dados in FRAZÃO, Ana et all. Black Box e o direito face à opacidade algorítmica in Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa / A. Barreto Menezes Cordeiro… [et al.]; coordenado por Felipe Braga Netto… [et al]. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 32.

[9] Isso porque as práticas de geopricing e geoblockin violam o princípio da neutralidade da Internet. Por essa prática – geoprincing – tem se entendido que “[a]s empresas de tecnologia da informação se valem dos algoritmos para processar grande quantidade de dados, sendo certo que a estrutura de código dos algoritmos contém instruções programadas para que a tecnologia facilite a disponibilidade das ofertas adequadas aos consumidores conforme seu perfil. Já o geoblocking é definido como o conjunto de práticas comerciais que impedem que determinados consumidores possam acessar e/ou comprar determinados bens ou serviços oferecidos por intermédio de uma interface online, com fundamento na localização on line do cliente.[9]

Licença Compulsória para Vacinas contra o Covid-19: Mais uma Solução Simples e Errada

César Mattos*

Rodolfo Souza**

Rosendo de Melo Neto***

Em 02 de outubro de 2020, Índia e África do Sul entraram na Organização Mundial do Comércio (OMC) defendendo a licença compulsória de direitos de propriedade intelectual para produtos relacionados ao covid-19[1]. Trata-se de uma licença compulsória especial, com maiores facilidades a ser concedida em escala global, porque o direito internacional público, nos termos do Acordo TRIPs (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), já permite aos seus membros decretar unilateralmente tais licenças nas condições que especifica[2].

Em razão dessa permissão facultada pelo Acordo TRIPs, diversos países passaram a contemplá-la em suas legislações[3], contudo não há registro de países que tenham decretado a facultada licença compulsória dos referidos produtos.

Mas já se fala na comunidade internacional, consonante o clamor de Índia e África do Sul, em uma licença para além da permitida atualmente pelo Acordo TRIPs, alterando e revisando os dispositivos concernentes desse instrumento internacional.

No Brasil, o Projeto de Lei do Senado 12/2021[4], aprovado em abril de 2021, e mais de uma dezena de projetos em tramitação na Câmara dos Deputados, sugerem alterações na atual sistemática da licença compulsória em produtos úteis no combate à covid-19, como os imunizantes. Nosso objetivo neste artigo é indagar se licenciar compulsoriamente a patente das vacinas para covid-19 faz sentido no Brasil?

Inicialmente, por que há patentes? O mercado de inovações tem uma falha no mecanismo de mercado: gasta-se muito para inovar e, quando se inova, é copiado, comprometendo o retorno esperado com a atividade de inovação. Como fazer P&D é custoso e arriscado, a falta de um sistema de proteção pela patente gera poucos incentivos à inovação.

A patente, portanto, constitui um instrumento para corrigir esta falha do mecanismo de mercado, concedendo-se uma exclusividade temporária (20 anos pelo art. 40 da Lei nº 9.279/96) ao inventor, evitando que os “copiadores” expropriem o investimento em P&D, destruindo o retorno da inovação.

O custo da patente é que, durante este período de exclusividade, o inventor atua como um monopólio, com maior liberdade na definição de preços. Assim, a patente envolve uma troca intertemporal: incentiva-se a atividade inovadora em troca da não permissão da concorrência sobre o objeto da inovação patenteada enquanto persistir a exclusividade. Após este período, a patente cai em domínio público e todos poderão copiar e concorrer com o inventor, reduzindo preços.

No entanto, mesmo durante a vigência da patente, é possível que surjam substitutos que, ainda que não infrinjam os limites da proteção da patente, se baseiam em informações trazidas por ela. Por exemplo, a patente do Viagra venceu em 2010 no Brasil, mas desde 2003 já havia a concorrência do Cialis.

Ademais, quando a exclusividade acaba junto com o término da patente, presume-se que mais facilmente produtos substitutos próximos surjam, erodindo a posição monopolista do titular. No exemplo do Viagra, as empresas EMS e Sandoz lançaram genéricos do Viagra logo após a expiração da patente. Em síntese, a patente pode conferir, no máximo, um monopólio por um prazo, mas que vai sendo erodida ao longo do tempo, mesmo antes de se expirar a proteção. Este preço de curto prazo de monopólio é o custo a se pagar por garantir a apropriação dos frutos da inovação e, portanto, os incentivos para que esta inovação ocorra em primeiro lugar.

É sabido que o sistema de patentes é particularmente relevante para gerar incentivos à inovação na área farmacêutica. Boa parte da discussão que gerou o citado Acordo TRIPs, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC, e a edição da Lei nº 9.729, de 1996, no Brasil, diziam respeito a permitir patentes neste setor.

A principal razão disto é o elevado dispêndio em P&D para novos produtos farmacêuticos. O World Economic Forum (2020)[5] mostra que o tempo médio atual de desenvolvimento de uma vacina é entre 8 e 15 anos, com um custo médio de US$ 500 milhões, em que se parte de cerca de 100 vacinas potenciais para se chegar a apenas uma efetiva.

O esforço do desenvolvimento das vacinas para a Covid-19 representa um evento inédito na história dos imunizantes como destaca o Council of Foreign Relations[6]dado que se reduziu o período de desenvolvimento para menos de um ano. Naturalmente, “encurtar” assim o prazo de desenvolvimento de uma vacina requereu custos (bem) maiores.

Um dos principais requisitos para se avaliar se um licenciamento compulsório de patentes pode ampliar a oferta de vacinas é se há laboratórios nacionais com capacidade técnica e produtiva para fabricá-las em curto espaço de tempo no país. Aqui, somente dois laboratórios produzem vacinas atualmente, Fiocruz e Butantan, estando ambos em sua capacidade máxima, produzindo, respectivamente, as vacinas Covishield, da Astrazeneca e Coronavac, da Sinovac, com acordos para produção, de forma cooperativa, sem pagamentos de royalties, e ainda com transferência de tecnologia. Note-se que acordos como estes, com a voluntária cooperação dos laboratórios originais, melhora sobremaneira a capacidade técnica de Fiocruz e Butantan entregarem as vacinas da forma que estão fazendo. Uma licença compulsória, definida legislativamente de cima para baixo, dificilmente geraria a cooperação técnica requerida para ofertar as vacinas que estes dois laboratórios estão entregando de forma minimamente tempestiva.

As vacinas produzidas no Brasil se baseiam, primordialmente em tecnologias que utilizam vírus atenuados[7], inativados[8] ou em subunidades[9], sendo as plantas fabris locais adaptadas para a produção desses tipos específicos de vacinas. Já as tecnologias da AstraZeneca, Janssen, Sputnik V[10], Pfizer e Moderna se baseiam em engenharia genética, tecnologia não dominada por Fiocruz e Butantan.

Qualquer outro laboratório que decida iniciar essa produção localmente, em resposta a eventual licenciamento compulsório, precisará instalar novas plantas fabris, ou promover alterações nas fábricas atuais, com a realização de pesados investimentos. Ademais, precisarão de novas certificações sanitárias, inspeções, fiscalizações, dentre outras exigências da regulação sanitária, não só da planta fabril, mas dos produtos também, o que demandaria prazos longos para implementação. Assim, contar com uma produção imediata local, após a adoção de uma licença compulsória, tende a ser pouco provável.

Por fim, um outro ponto relevante a ser destacado diz respeito à possibilidade de surgimento de variantes que vão demandar ajustes nas vacinas e a rapidez deste processo pode ser chave. Isso pode tornar a dependência da ativa cooperação do laboratório original ainda maior, o que não recomenda uma estratégia baseada na licença compulsória, que não pressupõe cooperação, como a adoção do licenciamento em comento.

Em síntese, adotar licença compulsória para as vacinas do covid-19, quer com fundamento na vigente Lei nº 9.279/96, quer com fundamento em nova lei decorrente de projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, apresenta os seguintes problemas: 1) Compromete a correção da falha neste mercado de tecnologia das vacinas, desincentivando o investimento em P&D neste setor; 2) Fiocruz e Butantan já tem acordos com laboratórios estrangeiros que permitem uma cooperação para a transferência da tecnologia produtiva, fundamental para uma produção bem sucedida e rápida da vacina, que provavelmente não existiria com uma solução de licença compulsória, além de contribuir para o Brasil obter expertise em tecnologias não dominadas atualmente; 3) Estes agentes estão sem capacidade ociosa para produzirem vacinas além do que já estão fazendo, tendo em vista que os períodos de ociosidade têm sido causados pela ausência do IFA, que é importado; 4) Estes agentes não têm capacidade técnica para um grande conjunto de vacinas baseadas na engenharia genética; 5) Outros agentes demorariam muito tempo para realizar os investimentos e passar pelos requisitos regulatórios requeridos para iniciar a produção destas vacinas; 6) Eventuais variantes do vírus que requeiram ajustes rápidos nas vacinas demandarão ainda mais cooperação com os laboratórios originais, o que torna a solução litigiosa da licença compulsória ainda mais disfuncional.

Concluindo, mais uma solução simples, que apela fortemente aos nossos anseios de mais solidariedade humana no meio da gigantesca crise sanitária que vivemos, mas que é totalmente equivocada, podendo até ser contraproducente para os atuais acordos da Fiocruz e Butantan com laboratórios estrangeiros.

Uma estratégia mais pertinente seria a de, no curto prazo, envidar esforços junto à comunidade internacional para viabilizar mais acordos entre as grandes indústrias farmacêuticas e países com recursos tecnológicos para a produção de vacinas, equipamentos e medicamentos de combate à Covid-19, a exemplo dos citados acordos firmados por laboratórios brasileiros, dentro de um processo crescente de descentralização da produção mundial, com a facilitação de sua aquisição. A obtenção do know how sobre o modo de produção, dos segredos industriais da fórmula do produto final e da produção dos insumos, em especial do ingrediente farmacêutico ativo, se revela o aspecto mais importante para a ampliação da capacidade de produção de vacinas, em escala mundial.

E, a médio e longo prazo, repensar o vigente sistema global de controle de epidemias, particularmente o papel da Organização Mundial da Saúde – OMS, apoiando, no âmbito jurídico, uma revisão dos dispositivos atinentes do Acordo TRIPs de forma consensuada, como requerem os processos no âmbito da OMC, afastando riscos de retaliações pontuais, tudo isso visando a um combate mais eficiente por parte de todos os países, não só de alguns, da epidemia em curso e das que possam advir no futuro.


[1] docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669.pdf&Open=True

[2] Ver Artigos 31 e 31A do Acordo TRIPs, este a regrar o dito Sistema do Parágrafo 6.

[3] No Brasil foi editada a Lei nº 9.279, de 1996, cujo Artigo 68 a 71 contemplam a dita licença compulsória.

[4] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/146245

[5] https://www.weforum.org/agenda/2020/06/vaccine-development-barriers-coronavirus/

[6] https://www.cfr.org/backgrounder/guide-global-Covid-19-vaccine-efforts

[7] Contêm os agentes infecciosos vivos, mas enfraquecidos, sem capacidade de produzir a doença, que é o caso das vacinas contra a caxumba, febre amarela, poliomielite oral, rubéola, sarampo e varicela.

[8] O vírus é inativado por agentes químicos ou físicos, não imita a doença, mas induz o sistema imune a reagir como se fosse contra a doença, como nas vacinas da poliomielite injetável, hepatite A, gripe e raiva.

[9] Utilizam fragmentos do vírus aptos a obter resposta imunológica.

[10] A União Química possui acordo com o Instituto Gamaleya para a produção da Sputnik V no Brasil, apesar de ainda não terem sido obtidas as autorizações sanitárias para a fábrica, para a linha de produção, nem para o imunizante.

[*] Doutor em Economia e Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.

[**] Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.

[***] Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.

Lei de Liberdade Econômica e reflexos sobre o direito antitruste – Parte I – Fim de uma era: A superação da “state action doctrine”

Amanda Flávio de Oliveira*

André Santa Cruz**

A política antitruste no Brasil expandiu-se consideravelmente nos últimos tempos.

Diversos fatores podem justificar essa circunstância, entre eles a estabilização monetária, o desenvolvimento do mercado interno e o surgimento de novas tecnologias, produtos e serviços. Mas o principal fator foram os ajustes realizados na legislação específica, cuja origem remonta à década de 1960[1]: alterações sucessivas na lei antitruste brasileira tornaram-na mais assertiva para o enfrentamento de condutas anticoncorrenciais empresariais e o controle de atos de concentração econômica. A dotação de natureza jurídica de autarquia à principal autoridade competente para a matéria – o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) – também constituiu um elemento essencial para o fortalecimento de suas ações.

Mas a realidade e os dados informam que ao acirramento do enforcement da política de defesa da concorrência no Brasil não tem correspondido um mercado nacional efetivamente competitivo. E o seu principal obstáculo pode estar derivando da ação do próprio Estado, e não de agentes privados[2]. É o caso da instituição de excessivas barreiras legais à entrada, da concessão de subsídios ou protecionismos, ou o próprio estímulo oficial deliberado à formação de monopólios, em alguns mercados. É também a situação em que as medidas regulatórias derivadas do exercício de poder normativo aumentam os custos de transação, especialmente sem propiciar benefícios que as justifiquem.

É de se reconhecer que parcela considerável dos processos de controle repressivo de condutas das empresas em tramitação e julgamento no CADE relaciona-se a mercados regulados[3]. Relembre-se que barreiras regulatórias são hábeis em criar um ambiente propício para a prática de condutas empresariais questionáveis do ponto de vista concorrencial. Por sua vez, a atividade profissional prática igualmente revela a angústia de agentes econômicos submetidos a múltiplas autoridades e, em alguns casos, devendo atendimento a normas ou diretrizes conflitantes entre si[4].

Entretanto, se a própria lei reconhece o risco de a livre concorrência estar sendo obstada exatamente em razão de uma ação oficial, atribuindo às autoridades antitruste federais, por exemplo, o dever de “requisitar dos órgãos e entidades da administração pública federal e requerer às autoridades dos Estados, Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios as medidas necessárias ao cumprimento desta Lei” (art. 9º, inciso VIII), bem como de “promover a concorrência em órgãos de governo” (art. 19), a jurisprudência administrativa do CADE tem se mostrado cautelosa em temas de intercessão entre regulação e concorrência quando em análise de casos de condutas empresariais. Uma parte dessa cautela pode-se se justificar. Quanto à outra, entende-se que a Lei de Liberdade Econômica cuidou de esclarecer.

Refere-se, no ponto, à discussão acerca dos limites e possibilidades da atuação antitruste em relação a entes estatais. Especificamente, pondera-se sobre as fronteiras de ação autorizadas ao Conselho, uma vez que ele possui a atribuição de conduzir processos investigativos e de punir condutas anticoncorrenciais e que o artigo 31 da lei antitruste, ao especificar os sujeitos passivos a ela submetidos, não exclui entes estatais de sua relação[5].

A doutrina especializada tem identificado algum padrão de julgamento do CADE nessas circunstâncias[6]. De forma geral, nota-se, sobretudo em setores altamente regulados, que o Conselho tem adotado uma atitude de cautela e se valido de teorias norte-americanas para o deslinde do caso. Trata-se das construções oriundas de decisões da Suprema Corte americana, conhecidas como “State Action Doctrine” e “Pervasive Power Doctrine”, que têm como finalidade precípua identificar se uma dada política pública ou ato administrativo estaria ou não imune à aplicação da lei antitruste. Ambas vêm sendo utilizadas como critérios balizadores em julgados proferidos na instância administrativa brasileira, não sem alguns temperamentos, na intenção de “internalizar” um modelo estrangeiro às premissas do ordenamento jurídico brasileiro. Severas críticas, todavia, podem ser realizadas à opção da autoridade de sustentar-se em fundamentos construídos em uma realidade, inclusive federativa, bastante distinta da brasileira, para a tomada de decisão nos casos concretos, embora se reconheça o esforço para adaptá-las. Relembre-se, igualmente, que o direito antitruste americano é eminentemente judicial, ao passo que o brasileiro se desenvolve precipuamente em âmbito administrativo, em que uma autarquia, integrante da administração pública indireta federal, instaura, instrui e decide os casos. As bases estruturantes de uma e outra jurisdição, pode-se ver, são diferentes em essência, o que põe em questionamento a validade de soluções desenvolvidas para um modelo serem adequadas para o outro.

Entretanto, a Lei de Liberdade Econômica positivou, de forma expressa, um ilícito denominado “abuso de poder regulatório”, inclusive tipificando condutas a esse título (art. 4º da Lei 13.874/2019). Essa nova disciplina deverá, necessariamente, a partir de agora, ser levada em consideração na fundamentação das decisões do Conselho em casos em que a regulação estatal estiver em jogo, assim como na definição das medidas a serem determinadas por ocasião do julgamento dos casos. Afasta-se, com ela, qualquer dúvida acerca da imunidade ou não de entidades estatais à legislação antitruste. A identificação e configuração do ilícito de abuso de poder regulatório, no caso concreto, por parte da autarquia, ensejará, necessariamente, seu dever de atuar para afastá-lo.

Caberá, portanto, ao Conselho, uma postura mais assertiva que a mera recomendação ou solicitação de conformidade a entidades públicas responsáveis pela produção de atos anticompetitivos. Não se espera, com isso, que o CADE imponha sanções a entidades públicas, exatamente. Tomemos, por exemplo, a hipótese de produção de uma norma regulatória com efeitos anticoncorrenciais por parte de uma agência reguladora federal. Sabe-se que decisões dessas autarquias especiais não se submetem nem mesmo a recurso hierárquico, e isso constitui uma das garantias de sua independência e autonomia políticas. Até aí, a cautela historicamente desempenhada pelo CADE é adequada e em nada se altera com a Lei de Liberdade Econômica. Não há autorização no ordenamento jurídico para a aplicação de sanção pelo CADE nessa situação.

Mas a ilicitude identificada da norma produzida por uma autarquia federal, por exemplo, por parte do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, tampouco poderá ser “minimizada” com a aplicação de teorias estrangeiras. A determinação, à Procuradoria do CADE, de acionamento da Advocacia Geral da União (AGU) para providências, aparentemente, passa a ser mandatória. Observe-se que existe a possibilidade de conflitos entre entes públicos representados pela AGU em matérias variadas, e não apenas em antitruste e regulação. Para equacionar o problema, há algum tempo foi criada uma câmara de conciliação interna. Não há qualquer ineditismo, portanto, nessa providência. Por fim, reitere-se que a identificação de ilicitude de um ato administrativo pelo CADE autoriza, igualmente, aos agentes privados, o ingresso em juízo, com base na Lei de Liberdade Econômica, visando a sua suspensão ou revogação, e, até mesmo, eventual reparação civil por danos sofridos.

Ao privilegiar a aplicação da norma brasileira, em detrimento de teorias estrangeiras, conforme defendido neste texto, o CADE cumprirá seu dever e superará uma antiga jurisprudência, caminhando rumo à segurança jurídica, mas, principalmente, rumo ao empenho à implementação de um mercado efetivamente competitivo no Brasil.


[1] Atualmente, encontra-se em vigor a Lei n. 12.529, de 2011.

[2] André Santa Cruz defende ser a única função legítima de uma lei antitruste o combate aos “ataques à livre concorrência levados a cabo pelo próprio Estado. Ramos, André Luiz Santa Cruz. Os Fundamentos Contra o Antitruste . Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[3] Recomenda-se o vídeo do webinar sobre abuso de poder regulatório promovido pelo IBRAC em 2020, em que o ponto é tratado: https://www.youtube.com/watch?v=3-JAe9XumZ8&t=4646s

[4] Um exemplo de atuação conflituosa entre autoridades, ainda pendente de solução, repousa na cobrança da taxa equivocadamente denominada THC2, que se refere à movimentação de contêineres cobrada pelos terminais molhados aos portos secos. Recente acordo de cooperação técnica firmado entre o CADE e a ANTAQ tem como um de seus propósitos melhor encaminhar essa questão. Aguarda-se com entusiasmo os resultados dessa iniciativa. Sobre o tema, confira: OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Advocacia da concorrência no Brasil – o caso dos transportes. In Advocacia da concorrência em setores regulados: a história contada por especialistas. MENDONÇA, Elvino de Carvalho; MENDONÇA, Rachel Pinheiro de Andrade (orgs). Brasília: WebAdvocacy, 2020, p. 39-44.

[5] Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.

[6] Recomenda-se a respeito: PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva; PRADO FILHO, José Inacio Ferraz de Almeida. Espaços e interfaces entre regulação e defesa da concorrência: a posição do CADE. Revista Direito GV, vol. 12, n. 1, jan-abr 2016, p. 13-48.

[*] Professora dos cursos de graduação mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Sócia Fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO). Doutora, Mestre e Especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

[**] Procurador federal e doutor pela PUC-SP.

Finalidades do antitruste: entre Khan e Kovacic

Amanda Flávio de Oliveira*

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli**

Em recente aula no curso da European University Institute, o badalado Professor William Kovacic, ele próprio um ex-membro da Federal Trade Comission (FTC), principal entidade antitruste americana, enfrentou com firmeza e coragem um tema contemporâneo da maior relevância para os interessados nessa matéria. Trata-se da pretendida “transformação” do antitruste americano, patrocinada pelo governo Biden.

A “transformação” revela-se sob a forma de um movimento que se pretende reconhecer como valoroso e virtuoso e/ou um tanto disruptivo, confrontando uma suposta política pública injusta vigente. Sua narrativa é de fato hábil a seduzir adeptos apressados para essa suposta superioridade, e algum encantamento parece rondá-lo, com reflexos inevitáveis fora das fronteiras americanas.

O que Kovacic fez, em sua aula, no início do mês de outubro, foi enfrentá-lo sob uma outra perspectiva – a de que talvez não haja nada de disruptivo na proposta do movimento. Em verdade, mais provável é que ele represente o retorno a algo que já não deu certo no passado, isso é, o programa talvez tenha mais pontos frágeis do que deveria ter. Mas, sobretudo, o que fez Kovacic foi relembrar que política pública não se faz com emoção, e, ao contrário, requer prudência e circunspeção em seu desenho e implementação.

Vamos aos fatos.

Lina Khan, nova chefe da FTC, em Memorando direcionado à sua equipe, traçou as novas diretrizes para a atuação da Comissão. Os termos do Memorando já eram mais ou menos esperados, e segue a linha de seu artigo “The Amazon Paradox”. Como recursos deixaram de ser um problema, uma vez que o presidente Biden declarou publicamente que asseverar a política concorrencial será uma prioridade do seu governo, o propósito agora parece ser apenas uma questão de organizar a casa para colocar as 50 prioridades enumeradas por Khan em jogo.

Kovacic classifica essa linha como sendo “transformacionista” e a compreende não como uma mudança filosófica, mas geracional. De fato, o movimento, aparentemente, tem dificuldade em receber um nome “oficial” e muitas vezes é referido como hipster – o que não parece ser a solução mais politicamente correta, e a alcunha revela-se um tanto pejorativa. A tentativa de conceder-lhe nobreza, denominando-o neobrandesiano, tampouco parece soar adequado: um estudo um pouco mais aprofundado sobre a biografia daquele a quem se visa “homenagear” aponta uma grande incongruência entre suas ideias e a nova política. Observe-se que Louis Brandeis era, por exemplo, um defensor da legitimidade dos carteis[1].

Beneficiando-se de uma atual coalizão entre democratas e republicanos, Lina e sua equipe colocam-se à serviço do presidente dos Estados Unidos no combate à herança que aparentemente haveria sido deixada durante a gestão democrata anterior, liderada pelo ex-presidente Obama. Elegem como adversário central as denominadas “Bigtechs”, e que também pode ser representado pela sigla F.A.G.A. (Facebook, Apple, Google e Amazon). As mesmas ideias e empresas que há poucos anos os EUA exportaram para o mundo como modelos de negócios irrecusáveis transmutam-se em vilões da sociedade americana, merecedores de castigo e punição.

Nesse sentido, desafia-se, fundamentalmente, a ideia originalmente proposta por Robert Bork, autor de “The Antitrust Paradox”, que defendeu a tese de que o direito concorrencial não poderia servir à defesa de concorrentes, mas da concorrência, e de que sua finalidade essencial seria maximizar o bem-estar do consumidor. Essa perspectiva, rotulada de “libertária”[2], expandiu-se e influenciou outras jurisdições, além da americana.

Entretanto, segundo os transformacionistas, a opção de política concorrencial sugerida por Bork teria cobrado seu preço. De acordo com sua narrativa, no ano de 2020, aproveitando-se da oportunidade gerada pela pandemia, as bigtechs teriam mostrado suas garras, catapultando seu crescimento com a maior dependência digital da população. Elas não teriam haveriam, todavia, alcançado todo esse poder não fosse a benevolência com que a perspectiva de Bork as tratou: e deixou chegar onde chegaram. Essa narrativa sustenta cada uma das 50 prioridades indicadas por Khan.

Se existe uma advertência sóbria na avaliação de políticas públicas é de que elas não devem ser julgadas pelas suas intenções, mas pelos seus resultados[3]. Entretanto, Khan, justificando-se por suas boas intenções, parece pretender alterar a interpretação dos Tribunais quanto aos objetivos da legislação antitruste americana, tendo como estratégia subsidiária a possibilidade de  alterar a própria norma.

Assim, adota-se o lema “na dúvida, processe”. Não coincidentemente, o lema parece alinhar-se à analogia utilizada por Bork para ilustrar o antitruste nos Estados Unidos anterior à sua proposta: trata-se da figura de um xerife da cidadezinha fronteiriça que não se importa em coletar evidências, distinguir suspeitos ou resolver crimes, mas simplesmente anda pela rua principal da cidade atirando aleatoriamente em alguns suspeitos.

Enquanto Lina e sua equipe correm contra o tempo de mandato para “organizar a casa” (ou derrubá-la e reerguê-la), a mensagem que transmitem ao resto do mundo é clara: estivemos pregando um falso evangelho. Daqui para frente, cada um que siga o seu rumo – preferencialmente, no sentido contrário ao que fazíamos ao longo das últimas décadas, afinal, estava tudo errado. Segundo adverte Kovacic, é provável que doutrinadores e futuros acadêmicos embarquem na onda e propugnem pela “nova” perspectiva por um longo tempo. Todavia, a proposta derrapa em fragilidades importantes, de ordem política e técnica, e que seriam condições necessárias para a sua implementação.

Politicamente, coalizões nem sempre são perenes, e não se sabe por quanto tempo a proposta por ora apenas desenhada encontrará alinhamento. Discursos que caem bem em campanhas eleitorais não necessariamente são implementáveis – ainda bem. Ademais, recursos públicos são escassos e prioridades governamentais mudam.

No aspecto técnico, claramente estar-se-ia superestimando a capacidade de implementação de uma mudança completa, de uma só vez. Definir prioridades em políticas públicas é fulcral e revela-se imaturo pretender ter 50 prioridades. “Não é possível obter êxito quando se tem 50 prioridades, o êxito ocorre quando se tem 5”, nas palavras de Kovacic. Mas o ponto mais vulnerável do processo revela-se na frágil compreensão histórica que ele carrega: é preciso aprender com o passado. Há suficientes exemplos dos anos 1970 e início de 1980 de atuação das entidades americanas bastante alinhado ao que ora se apresenta como “disruptivo”. É preciso aprender com seus resultados. Foram eles alvissareiros?

Antes que o leitor advirta para o risco de Kovacic próprio estar enciumado com a possibilidade de se reduzir a importância do passado da FTC (do qual ele próprio fez parte) , importa informar ser desejável e cientificamente valorosa a crítica ao modelo em vigor nos últimos tempos, assim como enunciar o interesse no aprimoramento da política antitruste. Há outras perspectivas possíveis sobre o ponto, todavia. O problema, e nesse sentido parece ter razão Kovacic, encontra-se no festejo acrítico a um modelo ideológico que pretende combater outro – como se o “novo” fosse valoroso e justo, ao passo que o anterior teria sido elitista e injusto. Igualmente parece pertinente a recomendação por prudência e maturidade: aprimoramentos institucionais se fazem com parcimônia, não com açodamento. A cautela indica que, em se tratando de política pública, reformas são sempre preferíveis a revoluções, sobretudo em uma sociedade complexa e diversificada como a contemporânea. Do mesmo modo, convém assegurar-se da capacidade do “método” (ou do Programa) de alcançar os objetivos visados, retomando a ponderação de que boas intenções não são hábeis a conduzir a bons resultados. Também se faz imprescindível refletir sobre as limitações e falibilidades naturais dos agentes públicos, mesmo no que se refere à atuação técnica.

Kovacic foi corajoso ao criticar um modelo que parece encantar pela virtuosidade. Reflitamos.


[1] Saiba um pouco mais sobre isso em McCRAW, Thomas K. Prophets of regulation. Cambridge, Massachusetts and London: The Bellknap Press of Harvard, 1984.

[2] O termo “liberal”, em inglês, costuma ser associado a uma visão de Estado mais próxima do que se conhece como “social democracia” no Brasil. Assim, costuma-se utilizar a palavra “libertária” para se referir a um modelo de Estado mínimo, ou de uma preferência pelo protagonismo privado na seara econômica.

[3] A frase é de Milton Friedman.

[*] Advogada. Doutora e Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Professora dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da UNB. [**] Advogada, economista e Internacionalista. Mestre em Administração de Empresas pelo COPPEAD/UFRJ. Doutoranda em Direito Comercial da USP. Atualmente Chefe de Assessoria Técnica da Presidência do Cade.

Constituição da República, 33 anos: razões para comemorar? (ou Que falta faz Roberto Campos)

Amanda Flávio de Oliveira

Neste dia 09 de outubro de 2021 completam-se 20 anos da morte de Roberto Campos. Que falta ele faz. Um analista perspicaz, um erudito que conseguia exprimir suas ideias de forma sempre clara, um debatedor implacável, um crítico ácido, dono de um humor desconcertante pela capacidade de revelar o óbvio incômodo que gostamos de esconder. Acima de tudo, Campos era um lúcido e um corajoso.

Lucidez é condição nobre pouco cultuada, porque muitas vezes inconveniente. Seres humanos deixam de ser crianças, mas o anseio pelo mundo da fantasia os persegue na vida adulta. Ouvir o que se quer ouvir é sempre mais prazeroso do que ouvir a verdade. Mas a verdade é implacável.

Coragem é virtude escassa. Silenciar-se ou alinhar-se à maioria barulhenta sempre significou o caminho mais confortável, mesmo que às custas de se sacrificar valores nobres ou de se cometer injustiças. O homem público lúcido e corajoso não tolera populismos, não tolera oportunismos, não tolera mediocridade. Nem por isso o corajoso precisa ser rude, e quando a coragem se encontra com a urbanidade, tem-se uma personalidade incomum, embora não necessariamente compreendida.

Roberto Campos foi membro da Assembleia Constituinte, e, por isso, uma voz isolada em um dos mais graves momentos de irracionalidade oficial nacional: ele presenciou, entre consternado e indignado, os rumos que o Brasil estava se determinando a seguir. Mas não se calou e o registro em vídeo e texto de suas inquietações perpetua provocações ignoradas, e revela vaticínios evitáveis.

Todo estudante de início de graduação em Direito é apresentado à denominação de forte apelo emocional atribuída ao Texto de 1988: Constituição Cidadã é seu nome. Cultuar o Texto faz parte da formação do acadêmico em Direito no Brasil, em grande medida, nos últimos 30 anos. À alcunha de “cidadã” não corresponde a análise de Campos, que, ainda no calor do processo de sua construção foi mais assertivo, e em igual medida mais incômodo: tem-se, em verdade, um “Reservatório de Utopias”. Aos seus olhos, os constituintes puseram-se a “brincar de Deus”.

No universo isento de limites em que se encontravam, com atrevida criatividade e pouca racionalidade, os constituintes esbaldaram-se. Fixaram percentual máximo anual da taxa de juros reais. Transformaram serviços oferecidos no mercado em direitos fundamentais, a serem prestados pelo Estado, prometendo aos cidadãos o oferecimento de educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, entre outros, sem definição de limite e sem clara indicação da fonte de receita correspondente. Nas palavras de Campos, urgia aprender a distinguir “entre ‘garantias não onerosas’, que podem ser enunciadas desembaraçadamente, e as ‘garantias onerosas’, que devem ser cuidadosamente medidas para não se confundir o desejo com a realidade, e as aspirações da sociedade com sua capacidade efetiva de prover satisfações.”

À redação generosa seguiu-se também uma interpretação generosa. Especificamente no que concerne ao direito social à saúde (ou garantia onerosa de saúde), a redação assertiva presente no início do artigo 196 ( “A saúde é direito de todos e dever do Estado”) recebeu clara restrição em seguida (“garantido mediante políticas sociais e econômicas…”), solenemente desprezada em milhares de decisões judiciais. A judicialização da saúde tornou-se um desafio aos Poderes.

Sua versão original logo se revelou “biodegradável”, como previa Campos. Nacionalista além da conta, estatizante, corporativista, indecisa entre presidencialista e parlamentarista, consagrando planejamento estatal ao tempo em que o socialismo ruía mundo afora, não tardou a que mudanças se fizessem necessárias. Equívocos claros foram expurgados por meio de algumas das centenas de emendas que lhe alteraram o conteúdo. Mas excessos persistem, resistem, sustentados na retórica “social” descomprometida com resultados e sustentados pelas infindáveis normas de hierarquia infraconstitucional que fartamente detalharam as tais “conquistas sociais”.

A maturidade revela que não se pode brincar de Deus impunemente. Aos 33 anos, faz-se tempo para amadurecimento.

Em evento datado de 1988, convidado a falar sobre a Constituição que surgia, Roberto Campos advertiu para as perguntas fundamentais que não haviam sido feitas no processo de sua formulação: quais são as consequências e quem vai pagar a conta? E profetizou: “Fala-se em conquistas sociais, em avanços sociais, como se fosse possível eliminar a pobreza por decreto.”

Eliminar a pobreza, instituir uma sociedade desenvolvida, passa, necessariamente, por propiciar um ambiente de confiança e de respeito a instituições, ao contrato e à propriedade, que não hostilize o agente econômico e em que o Estado seja limitado a funções básicas, características menosprezadas no texto de 1988. No caso do Brasil, para Campos, o problema nunca teria sido de Constituição, mas de instituições …. e daquela deveria se esperar tão-somente “um documento enxuto – limitado à arquitetura do Estado, ao sistema tributário, às grandes opções de organização econômica e aos direitos e deveres fundamentais do indivíduo”.

No último dia 05 de outubro, por ocasião do aniversário de 33 anos da Constituição, assistiu-se a um festival de homenagens e congratulações à Lei nas redes sociais. Em alguns deles, podia-se ler alguma frustração: “por que não conseguimos produzir uma sociedade livre justa e solidária; por que não erradicamos a pobreza e as desigualdades regionais?” A Constituição de 1988, 33 anos depois, revela-se algoz de si mesma. As perguntas fundamentais não foram feitas no momento de sua formulação, e seguem sem serem feitas tanto tempo depois. A realidade contundente imperou, mas o discurso sedutor das utopias segue forte. Que falta faz Roberto Campos.

Saúde suplementar e o Brasil: sobre escassez, escolhas, rol de procedimentos e almoço grátis

Amanda Flávio de Oliveira*

Sandro Leal Alves**

Encontra-se em julgamento no Superior Tribunal de Justiça um caso de fulcral importância para os rumos já tortuosos da regulação da saúde suplementar no Brasil.

Trata-se da definição sobre ser taxativo (ou não) o rol de procedimentos obrigatórios definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Explica-se. À Agência reguladora do setor, a ANS, compete, conforme a lei, definir a lista de procedimentos que os planos de saúde são obrigados a oferecer em cada modalidade – ambulatorial, hospitalar com ou sem obstetrícia, referência ou odontológico. São procedimentos como consultas, exames e tratamentos, que a lei denomina “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”. A norma que regulamenta a incorporação de novas tecnologias em saúde e a definição de regras para sua utilização foi recentemente atualizada e consta da Resolução Normativa – RN nº 470/2021, a qual dispõe sobre o rito processual de atualização do referido rol.

Em 16 de setembro passado, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou o julgamento de dois recursos especiais que definirão se a lista de procedimentos de cobertura obrigatória para os planos de saúde é exemplificativa ou taxativa – ou seja, se as operadoras podem ou não vir a ser obrigadas a cobrir procedimentos não incluídos na relação da Agência Reguladora. Há divergência sobre o tema entre as duas Turmas que compõem a Seção de Direito Privado. O julgamento foi suspenso após pedido de vista da Ministra Nancy Andrighi. Antes disso, o Relator dos recursos, Ministro Luís Felipe Salomão, votou pela taxatividade da lista editada pela ANS, sustentando que a elaboração do rol tem o objetivo de proteger os beneficiários de planos, assegurando a eficácia das novas tecnologias adotadas na área da saúde, a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor.[1]

O tema é delicado. Saúde constitui uma questão cara às pessoas e, sobretudo em um momento de pandemia, o debate sobre o assunto se torna mais emocional do que sempre foi. Entretanto, afastar-se da racionalidade em matéria de política pública pode ser garantia de resultado desastroso, com efeitos indesejados exatamente sobre aqueles que se pretende proteger.

Vamos às bases. Se saúde é condição nobre, anseio de todas as pessoas e componente da situação de bem-estar que se deve cultuar, o oferecimento de serviços de tratamento de saúde, fora do Sistema Único de Saúde, constitui uma atividade empresarial autorizada constitucionalmente. O plano de saúde, por sua vez, constitui um produto oferecido neste mercado. A esse mercado, portanto, aplicam-se todas as regras econômicas incidentes sobre todos os demais: há custo na prestação de serviços de saúde, relacionados aos produtos oferecidos e aos pagamentos pelos honorários médicos, há preço, composto a partir do custo esperado, e a ele agregando as despesas administrativas e comerciais, além do lucro, razão de existência das empresas. Um aumento ou uma diminuição da variedade e/ou da qualidade do serviço oferecido necessariamente interfere no seu preço, uma vez que altera o custo.

O estabelecimento de um rol de procedimentos de caráter exemplificativo traz consequências graves sobre o preço do plano de saúde, que é calculado atuarialmente com base na expectativa dos custos. Anote-se que os custos dependem tanto do preço dos procedimentos quanto da quantidade utilizada (frequência) e, principalmente, da cobertura contratada. Uma incorporação de serviço ou produto no rol de procedimentos, após a regular tramitação administrativa, acarreta um aumento de custos e, consequentemente, de preço, entretanto, ainda dentro de uma expectativa objetivamente mensurável. Por sua vez, a indefinição quanto à amplitude da cobertura, além de ocasionar a própria perda de razão de existir um rol (e da própria regulação e sua agência), torna imprevisível o custo e ainda mais elevado o preço, que passa a incluir a insegurança quanto à higidez das contas e a sustentabilidade do negócio, por mais sofisticados que sejam os modelos matemáticos utilizados.

Essa situação impacta diretamente na viabilidade do negócio empresarial e, o que também é importante frisar, no acesso mesmo dos consumidores a planos de saúde. Trata-se de uma consequência econômica relativamente simples de se prever. Lembre-se de que no setor de saúde suplementar tem-se um universo quase ilimitado de inovações tecnológicas contemporaneamente…

Considerar o rol exemplificativo significa desprezar um elemento básico da economia: a escassez. Não há recursos suficientes para atender a todas as necessidades de saúde das pessoas, tanto em sistemas públicos de cobertura universal, tampouco em sistemas privados, como é o setor de saúde suplementar. Se os recursos são escassos, é preciso utilizá-los com o máximo de eficiência possível. Na área da saúde, as economias centrais buscam resolver essa questão de expectativa de cobertura versus limitações de recursos por meio da Análise das Tecnologias em Saúde (ATS). Trata-se de priorizar a entrada das tecnologias segundo critérios de custo-efetividade, alicerçados em evidências científicas. A escolha na área da saúde é permeada por assimetrias de informações e interesses muitas vezes conflitantes entre os agentes. A ATS pretende constituir uma maneira técnica de se realizar incorporações diante da conclusão óbvia de que no mundo real, onde existem escolhas a serem feitas diante da escassez de recursos, não existe almoço grátis.

Foi o Prêmio Nobel em Economia Milton Friedman quem cunhou a afirmação de que “não existe almoço grátis”. Muitas vezes repetida, nem sempre a frase parece ser corretamente compreendida. Ao enunciá-la, Friedman popularizava a compreensão de uma ideia importante em Economia: a de custo de oportunidade. Ao fazermos determinada escolha, estamos renunciando a diversas alternativas que não foram escolhidas. Toda escolha traz consigo um custo e ao menos uma renúncia.

Não existe rol exemplificativo grátis em saúde suplementar. Adotar essa concepção implicará necessariamente em barreiras à entrada para as operadoras, redução de oferta e escolha para os consumidores e preços mais elevados. O cardápio está apresentado. Agora cabe à sociedade fazer a sua escolha.


[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092021-Relator-vota-pela-natureza-taxativa-do-rol-de-procedimentos-da-ANS–pedido-de-vista-suspende-julgamento.aspx

[*] Advogada. Doutora e Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Professora dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da UNB. [**] Economista, mestre em economia (USU). Atuou na ANS, na SEAE/ME e atualmente é Superintendente de Estudos e Projetos Especiais da Fenasaúde. Este artigo expressa a opinião do autor e não da instituição.

Ato de concentração ilícito a priori: um caso de inconstitucionalidade à vista

Amanda Flávio de Oliveira

É certo que o ordenamento jurídico brasileiro não admite a hipótese de ilicitude apriorística de atos de concentração de empresas. Assim se desenvolveu toda a história normativa, doutrinária e jurisprudencial no tema no país, cuja trajetória encontrou ponto de importante amadurecimento com a disciplina de análise prévia de atos dessa espécie instituída há quase dez anos pela Lei Antitruste atualmente em vigor.

Tampouco poderia ser diferente, dada a incontestável constatação de que, por fundamento, a disciplina de atos de concentração representa delicada intervenção estatal na propriedade privada. Relembre-se, por oportuno, que o constitucionalismo brasileiro, desde 1824, consagra a livre iniciativa como direito e, desde 1988, a livre concorrência como fundamento da Ordem Econômica.

Pois bem. É de se estranhar, portanto, que, a esta altura do campeonato, o legislador brasileiro se aventure a considerar a hipótese de incluir em lei – em flagrante afronta à Constituição – uma hipótese de ato de concentração a ser aprioristicamente considerado ilegal. Explica-se.

Dando continuidade ao esforço de reestruturar as bases do ambiente de negócios no Brasil, iniciado com a Lei de Liberdade Econômica (LLE), o governo federal fez publicar recentemente a Medida Provisória n. 1.040. Ao passo que a MP n. 881/2019, que se converteu na LLE, trazia em seu bojo um conteúdo essencialmente principiológico, de estabelecimento de diretrizes gerais, a atual MP preocupou-se com aspectos mais objetivos da atividade econômica, trazendo alterações pontuais mais concretas, sobre temas variados que regem a vida dos agentes econômicos no Brasil. Entre ambas revela-se o objetivo comum de propiciar um espaço de maior competitividade ao mercado brasileiro, sobretudo em comparação com outros países, tornando-o ambiente mais favorecedor para o exercício do empreendedorismo doméstico, assim como mais atraente para investimentos estrangeiros.

Tal qual a MP n. 881, a Medida Provisória n. 1.040 constitui tema de grande interesse aos estudiosos do direito concorrencial. Ainda se mostra incômoda a constatação de que, ao crescente reconhecimento público internacional da qualidade da política pública antitruste brasileira, não tem correspondido um estado de real rivalidade, inclusive potencial, entre empresas, no mercado nacional. Por sua vez, é assentado na literatura econômica que somente a rivalidade efetiva é capaz de oferecer os benefícios da concorrência à coletividade: melhores preços, mais opções de escolha ao consumidor e um ambiente propício à inovação.

Inúmeros foram os ganhos obtidos pela recente MP n. 1.040 a esse título, desde sua redação original, produzida pelo Executivo, até sua versão final, com as contribuições do Parlamento, incluídas durante sua tramitação. Atualmente, a MP aguarda sanção presidencial.

Um dos pontos de grande avanço, e que não constava da versão original do texto, constitui a – tardia, mas muito bem-vinda – incorporação, no ordenamento jurídico brasileiro, da possibilidade de atribuição de voto plural a uma ou mais classes de ações em uma empresa. É de senso comum a capacidade da adoção do instrumento do voto plural de ampliar o potencial de captação das empresas, o que permitirá àquelas que o adotarem ampliar fortemente sua capacidade de competir no mercado. A maior atratividade ao investimento decorrente dessa condição constitui ganho inegável para o agente econômico e para o país.

Entretanto, à nova disciplina foram incluídas excessivas condicionantes, debilitando excessivamente seus efeitos.

Sob o aspecto concorrencial, algumas dessas condicionantes revelam-se, sobretudo, flagrantemente inconstitucionais.

Refere-se, primeiramente, à disciplina disposta nos incisos I e II do art. 110-A. Estabelece-se, em relação às companhias abertas, que somente aquelas cujas ações e valores mobiliários conversíveis em ação ainda não estiverem sido negociados poderão ostentar a nova classe de ações criada. Cria-se, por essa norma, uma situação de “favorecimento” à competição para algumas empresas, sem justificativa econômica ou legal e em flagrante desrespeito ao princípio da liberdade de concorrência, constitucionalmente consagrado.

O ponto mais grave da questão reside, entretanto, no disposto no parágrafo 11 do art. 110-A. Ali, institui-se vedação a atos de concentração (fusões, incorporações, cisões etc) envolvendo empresas que apresentem essa nova classe de ações e empresas que não a adotem, sem qualquer amparo constitucional, tampouco legal. Sabe-se que a lei antitruste determina a obrigatoriedade de submissão dos atos de concentração que se enquadrem em alguns critérios que ela própria elenca à avaliação da autoridade. A submissão deve ocorrer previamente à realização do ato. À autoridade competirá averiguar se, apesar da concentração de mercado decorrente do ato, objetivos de bem-estar do consumidor estão sendo atendidos, entre eles, exatamente o aumento da competitividade ou produtividade (art. 88, parágrafo 6º, I, a, Lei n. 12.529/2011). Os atos de concentração poderão, então, ser aprovados com ou sem restrições ou reprovados, uma vez avaliados o atendimento a esses benefícios sociais.

O estabelecimento apriorístico de vedações a concentração de empresas conflita diretamente com a disciplina da matéria presente na lei antitruste e, igualmente, ofende o princípio constitucional da livre concorrência, orientador do exercício das atividades econômicas no Brasil (art. 170, IV, Constituição de 1988) e, o pior, sem qualquer justificativa econômica para tanto. O ordenamento jurídico brasileiro não admite a vedação apriorística a atos de concentração e muito menos admite sua reprovação se identificadas vantagens deles decorrentes ao bem-estar do consumidor, mesmo nos casos de submissão obrigatória à análise da autoridade.

A preocupação de se rever as bases da disciplina do mercado brasileiro, endereçada pelo Executivo por meio da MP n. 1.040, e para a qual contribuiu o Legislativo, é urgente e necessária. Avanços consideráveis estão sendo obtidos pela futura lei. O voto plural pode ser um grande instrumento para esse fim. Mas as inconstitucionalidades a ele relacionadas no texto final da norma requerem indiscutível afastamento.

Sobre razões do antitruste, o “advogado do povo” Louis Brandeis e o neobrandeisianismo

Amanda Flávio de Oliveira* Júlia Gomes Mota** Luiz Guilherme Ros***

O antitruste é uma disciplina à procura da sua razão de ser. Desde seu surgimento, ainda no século XIX, teses vêm e vão, algumas às vezes voltam, na tentativa de se justificar o porquê do Estado interferir na competição entre as empresas.

Já há algum tempo a disciplina jurídica da concorrência vem-se justificando como tendo por razão de existir o bem-estar do consumidor, na acepção do termo que propugna a Escola de Chicago. Em suas origens, a preocupação com a estrutura do mercado já se revelou fundamento para a atuação do Estado. Grandes estruturas poderiam ser perniciosas pela própria existência – e estamos falando de grandes estruturas no fim do séc. XIX e início do séc. XX.

O tema voltou à baila com as multimencionadas “big techs”. Estudiosos avaliam serem estruturas sem precedentes, uma realidade inédita… e seu “tamanho” ou “poder econômico” despontam nos debates como motivos de preocupação. Se é bem verdade que as teses de Chicago vêm se mostrando limitadas ou frustrantes em importantes aspectos, parece curioso uma tentativa de superá-las buscando algo que lhe seja anterior, ao invés de se aprimorar a trajetória.

Um “novo/velho” movimento surge nos debates antitruste, então. Entre os “rótulos” de “populista” ou “hipster” que lhes foram atribuídos, não necessariamente atraentes, a alternativa “neobrandeisiana” surge com o propósito de conceder elegância e fundamento à ideia.

Somos seres à procura de líderes. A apropriação que hoje se faz da figura pública de Louis D. Brandeis pela corrente de estudiosos do antitruste que se intitula “neobrandeisiana” guarda imprecisões anacrônicas que se esmorecem ante a uma análise cuidadosa de suas trajetória e ideias ao longo de 60 anos de vida – e que antecederam sua altamente contestada ida para a Suprema Corte.

Formado em Direito pela Universidade de Harvard, Brandeis trabalhou como advogado por 38 anos, ininterruptamente, até ser nomeado para a Suprema Corte em 1916. Dedicado e apaixonado pela advocacia, nem mesmo a proximidade com o Presidente Woodrow Wilson e a influência que exerceu nas negociações que culminaram na criação da Federal Trade Commission (FTC) fizeram com que se afastasse de suas atividades. Pelo contrário, nunca aceitou as propostas de Wilson para tomar parte direta na Comissão. O estudo de sua biografia revela mais um advogado por excelência do que um pensador antitruste sofisticado.

O legado intelectual de Brandeis está, em grande medida, registrado em artigos para jornais, argumentos sustentados das tribunas, e correspondências. Ainda que a vida pública de Brandeis não deixe dúvida quanto a sua aversão aos grandes empresários e monopólios, sua trajetória profissional sugere que essa postura mais derivou dos casos e clientes com quem ele trabalhou do que de supostas construções teóricas.

De início, não há na sua larga trajetória ensaios que reflitam de forma aprofundada os modos pelos quais ele entendia que a organização dos mercados ou da concorrência devessem se dar. Ademais, ao analisar coleção de cartas deixadas por Brandeis, o historiador norteamericano Thomas McCraw esmiuçou seu perfil pragmático e casuístico[1], afirmando não haver no acervo indícios de reflexões ou ruminações de fôlego. Nem por isso deixou de ser contundente em sua atuação, e considerado por alguns radical.

A maioria de seus clientes eram pequenos empresários, sobretudo no início de sua carreira. Os três casos de maior relevância conduzidos por Brandeis foram Muller v. Oregon (1908), a controvérsia de Ballinger-Pinchot (1910), e o pedido de aumento de taxas da American Railroads diante da Interstate Commerce Commission (1910) e confirmam sua personalidade pragmática, populista e utilitária. A notoriedade pública dos casos e o apelo sensacionalista com que Brandeis os conduziu lhe selaram a fama de advogado do povo, e alguns pontos em comum entre os três casos reforçam o perfil brandeisiano desenhado por McCraw: argumentos técnicos e não jurídicos, o uso e abuso de veículos de mídia muckraker, e o emprego de elementos inesperados que pudessem surpreender seus adversários. Calha notar, ainda, que nenhum dos casos que lhe alçaram à fama tratava de política antitruste.

Se a atuação profissional de Brandeis era orientada para a defesa dos seus clientes, as teses de fundo que advogou, em temas que tangenciam o antitruste, não são nem de longe compatíveis com uma perspectiva que hoje se intitula “neobrandeisiana”. É o caso, por exemplo de sua defesa da legalidade de carteis[2]. Ou da defesa que fez da licitude da fixação de preços de revenda, ainda que tal fato importasse o aumento de preços ao consumidor.

Não se nega que Brandeis acabou por ter importante influência no desenvolvimento do direito antitruste. São a ele atribuídas fases de efeito bastante reverberadas, como “big is bad”, “the curse of bigness”e “small is beautiful”. Mas daí a tentar conferir-lhe uma posição de idealizador de uma teoria parece demasiado generoso.

É preciso ser justo e reconhecer que a “nova” corrente não admite uma mera preocupação com o tamanho das empresas – ou ao menos não o faz explicitamente. A ideia aproxima-se mais de um certo retorno às origens, por meio do qual a política de defesa da concorrência não deveria ter um objetivo único, mas diversos objetivos.

De todo modo, se a efervescente trajetória do advogado Louis Brandeis não permitiria alçá-lo a ícone da “nova” corrente, revelando antes um anacronismo, o problema principal talvez nem esteja no nome da “nova” Escola. O dilema mais dramático segue em aberto: há que se definir com segurança as razões do antitruste.

[1] MCCRAW, Thomas K., et al. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984.

[2] Como aponta Guimarães (2020), “de acordo com Brandeis, havia quatro tipos de trustes: (i) acordos entre concorrentes para não vender os produtos abaixo de determinado valor; (ii) acordos entre concorrentes em que os preços são equalizados e administrados por um terceiro; (iii) transferência das ações pelos acionistas de empresas concorrentes para um terceiro (trustee), que adquire o controle das empresas, determinando como se dá a administração do conjunto; e (iv) verdadeira fusão de empresas em uma grande corporação, com a extinção de qualquer independência individual. Para Brandeis, os trustes de tipo (i) e (ii) não geravam problemas relevantes, sendo aqueles de tipo (iii) e (iv) o objeto de preocupação.

Autores:

*AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1996, onde também cursou Mestrado (2000) e Doutorado (2004), tendo realizado formação complementar em Louvain-la-Neuve, Bélgica (1999). É professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB).

**JÚLIA GOMES MOTA. Mestranda em Direito Regulatório pela Universidade de Brasília (UnB), é advogada, bacharel em Direito e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Laboratório e Grupo de Pesquisa DR.IA, da UnB. Ex-bolsista Santander da Universidade de Vigo, Espanha. Atuou como assessora jurídica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e pesquisadora na área de História política na UFRGS.

***LUIZ GUILHERME ROS. Sócio do escritório Silva Matos Advogados. É Consultor do Programa das Nações Unidas perante o CADE no projeto Control of Data, Market Power, and Potential Competition in Merger Reviews. Doutorando em Direito Econômico pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É Secretário da Comissão de Defesa da Concorrência e membro da Comissão de Direito Regulatório. Foi Vice-Presidente do Conselho de Administração da LoopKey S.A., e Data Protection Officer da Sociedade. Foi professor voluntário na Universidade de Brasília. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral do Cade. Foi assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Entre Eros e Tanatos: da ordem econômica constitucional à morte do antitruste

Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro conta com uma série de ferramentas analíticas – mormente oriundas da análise antitruste norte-americana – que foram sedimentadas ao longo do tempo seja pela própria autoridade da concorrência brasileira, seja pela prática estrangeira que em grande medida a inspira. No entanto, por mais sofisticadas que possam ser as reflexões sobre novos mercados, novas condutas e mesmo sobre os contornos atuais da concentração econômica, o Direito da Concorrência parece encontrar-se em uma constante ambivalência entre a consolidação de alguns de seus pressupostos dogmáticos e o permanente questionamento sobre suas finalidades.

Tal ambivalência é especialmente preocupante diante da circunstância de que o Direito da Concorrência brasileiro tem por fundamento bases radicalmente diversas daquelas sobre as quais se funda o direito norte-americano, notadamente a ordem econômica constitucional estabelecida pelo art. 170 da Constituição de 1988. A chave interpretativa do art. 173, § 4º, segundo o qual a lei reprimirá os abusos do poder econômico, evidentemente não é a lei a que alude o texto constitucional, mas o próprio art. 170. Não é sem motivo que Eros Grau, em sua obra clássica sobre a ordem econômica constitucional, assevera que as regras da legislação concorrencial “conferem concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional adotada pela Constituição de 1988”[1].

Se o ponto de partida da defesa da concorrência no ordenamento brasileiro deve ser a ordem econômica constitucional, causa certo estranhamento que a análise concorrencial permaneça infensa à diversidade de temas oriundos do art. 170 e prefira adotar análises consequencialistas fundadas em metodologias decorrentes da economia neoclássica – mesmo tanto tempo após a promulgação da Constituição de 1988[2]. Isso porque, como também esclarece Eros Grau, a redação do art. 170 não consiste em mera sugestão que pode ser afastada pela ideologia dinâmica da interpretação jurídica mas em um conjunto de preceitos que verdadeiramente vinculam a aplicação da legislação concorrencial em prol da sociedade, e não do indivíduo. Segundo o autor, “estão incrustadas na ideologia constitucionalmente adotada as razões do individualismo metodológico. A cumplicidade estabelecida entre ele e a ideologia liberal – o social produzido pelo individual – não autoriza a deslocação da titularidade da livre concorrência, na arena da ordem econômica, do indivíduo para a sociedade, mesmo no caso da Constituição de 1988”[3].

O Direito da Concorrência brasileiro sob a égide da Constituição de 1988, nesse sentido, é vocacionado não a ensimesmar-se em torno de tecnicismos associados a simplificações que são próprias de uma teoria econômica mais preocupada com ideais abstratos do que com os sujeitos afetados pela dinâmica dos mercados, mas a promover a livre concorrência em prol da coletividade e não de determinados indivíduos. Nem se argumente, aqui, que tais mandamentos constitucionais iriam perfeitamente ao encontro da lógica adotada pelas metodologias da Escola de Chicago, que adotam o bem-estar do consumidor como finalidade última da defesa da concorrência e, assim, no fim e ao cabo promoveriam o bem-estar da coletividade.

Isso porque diversos autores demonstram que a adoção dessas metodologias nos últimos anos tem conduzido a um processo de concentração nunca antes visto nos mais diversos mercados, conduzindo não somente à supressão da concorrência, mas a massivos aumentos de preços[4]. Dessa maneira, cabe indagar qual será a real função do Direito da Concorrência se, mesmo diante de uma ordem constitucional como a brasileira ou mesmo diante da constatação do fracasso das metodologias de Chicago para a proteção da concorrência e do consumidor, não consegue alcançar nem os objetivos pretendidos pela ordem econômica constitucional nem os ideais de eficiência preconizados pela teoria neoclássica.

Daí a razão da perplexidade de autores que, especialmente diante do advento dos mercados digitais e das novas formas de concentração daí decorrentes, vaticinam que ou o Direito da Concorrência precisa repensar radicalmente as suas metodologias para que permaneça relevante, ou mesmo já anunciam sua morte. Anunciada a morte do antitruste, outros passam a indagar o que fazer do cadáver insepulto do qual não se consegue retirar muito mais do que a saudade antes do adeus (parafraseando Nelson Rodrigues).  

Thibault Schrepel, por exemplo, ao tratar dos efeitos da tecnologia blockchain sobre o Direito da Concorrência, sugere que a morte do antitruste será como a morte do jazz: o ritmo ainda existe e ainda tem fiéis ouvintes e mesmo ótimos músicos, porém o jazz dificilmente cria novos debates ou movimentos que ultrapassem os limites de sua comunidade[5]. Por mais agradável que possa ser a comparação do Direito da Concorrência com o jazz ou até a perspectiva de se conservar uma comunidade permanentemente concentrada na reflexão a respeito do próprio Direito da Concorrência, o presságio da morte do antitruste pode servir para que se busque alguma vida nas possibilidades consagradas pela ordem econômica constitucional e aparentemente esquecidas pelo antitruste “desconstitucionalizado”[6].

Se o Antitruste fundado nas premissas consagradas pela prática norte-americana estaria fadado a uma morte semelhante à do jazz, cabe indagar se já é o momento de vestirmos luto ou se o Direito da Concorrência fundado na ordem econômica constitucional de 1988 não poderia ser mais parecido com o samba[7].


[1] GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 213.

[2] Nesse sentido: FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017. pp. 29-30

[3] GRAU, Op. cit., p. 216.

[4] TEPPER, Jonathan; HEARN, Denise. The myth of capitalism: monopolies and the death of competition. Danvers: Wiley, 2019; WU, Tim. The curse of bigness: antitrust in the new gilded age. Nova York: Columbia Global Reports, 2018.

[5] SCHREPEL, Thibault. Is blockchain the death of antitrust law? The blockchain antitrust paradox. Disponível em: https://deliverypdf.ssrn.com/delivery.php?ID=606070026007124079078073084082007086026071069006028088099020115064088031105069007022096019020106111061101119116017126110012092015046040047000106006094088111023106098054046076009094095096001075119071118065069091124015125080094026011118099115026125117113&EXT=pdf&INDEX=TRUE.

[6] Ver: SCHUARTZ, Luis Fernando. A desconstitucionalização do direito de defesa da concorrência. Revista do IBRAC. v. 16, n. 1, p. 325-351, 2009.

[7] MULTISHOW, Música. Não Deixe o Samba Morrer | Alcione | Canta, Luan | Música Multishow. Youtube, 3 ago. 2017.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WrCuw1U0lq8.