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Contratos de exclusividade: como avaliar se há ilicitude.

Fernando B. Meneguin[1]

De maneira geral, os agentes econômicos desenvolvem suas atividades para evitar custos de transação, com vistas à maximização do lucro. Nessa linha, pode ser interessante, como estratégia empresarial, acordo que estabeleça exclusividade entre produtores e distribuidores. No entanto, no caso de a exclusividade gerar obstáculos para a concorrência, essa prática pode ser considerada ilícita.

Ficou bastante conhecido, por divulgação na mídia[1], o caso da empresa iFood, no qual o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) proibiu o iFood, em sede de medida preventiva, de firmar novos contratos com restaurantes contendo acordo de exclusividade. A decisão se deu em face de representação das empresas Rappi e Uber Eats, que argumentaram que a estratégia de negócios do iFood criava barreiras à entrada e à expansão de concorrentes no mercado.

A adoção de cláusulas de exclusividade é uma conduta unilateral, que, segundo a doutrina e a jurisprudência, deve ser avaliada pela regra da razão. Isso significa que seus efeitos negativos, ainda que potenciais, devem ser comprovados para fins de condenação administrativa.

Ainda, condutas unilaterais são estratégias empresariais e podem, portanto, ter efeitos positivos, ou seja, propiciar ganhos de eficiência. É necessário que os efeitos positivos e negativos sejam quantificados e sopesados. Uma conduta poderia ser considerada anticoncorrencial e, assim, condenada administrativamente apenas quando os efeitos negativos superarem os positivos.

Portanto, considerar cláusulas de exclusividade ilícitas apenas com base na parcela de mercado por elas abrangidas, ou seja, com base no grau de fechamento de mercado, pode significar considerá-las ilegais per se, o que contraria a doutrina e a jurisprudência do Cade.

No que concerne à doutrina e à jurisprudência norte-americanas, para despertar preocupação concorrencial, as cláusulas de exclusividade devem representar percentual acima de 30% a 40% do mercado, raramente havendo condenação quando a parcela do mercado abrangida pela exclusividade fica abaixo de 40%[2]. Em consequência, não haveria que se falar em danos à concorrência quando o limite não fosse atingido, ao passo que percentuais maiores devem ser analisados caso a caso, em vista dos potenciais efeitos pró-competitivos dos contratos de exclusividade, para que seja verificado o potencial de exclusão de rivais.

Pela regra da razão, é fundamental aferir o efeito final da conduta sobre o mercado. Para tanto, é necessária uma análise de custo-benefício. No caso de contratos de exclusividade, os benefícios, de maneira geral, aparecem por meio da expansão do mercado e pela apropriação de valor pelos agentes envolvidos e pelos consumidores. Relativamente ao custo, este seria consequência do fechamento do mercado e da diminuição da concorrência.

Hoertel (2008)[3] apresenta uma série de efeitos pró competitivos em decorrência dos contratos de exclusividade, que promovem o aumento de eficiência na alocação de recursos e na redução dos custos de transação:

  • Proteção contra o free-riding (efeito carona) intermarcas.

Os acordos de exclusividade podem promover a proteção aos direitos de propriedade do fabricante evitando condutas oportunistas (proteção contra o free-riding, ou efeito carona, intermarcas) em defesa de investimentos não recuperáveis, como em marcas e tecnologia, e na proteção de ativos específicos. Eliminar o free-riding, permitindo que o agente econômico que realiza o gasto de provisão do ativo se aproprie de seus benefícios, pode provocar o aumento da oferta e do consumo de bens, implicando um incremento do bem-estar agregado.

  • Redução dos custos de monitoramento.

Fabricantes, preocupados com potenciais comportamentos oportunistas de revendedores que negociam produtos concorrentes, devem incorrer em significativos custos no monitoramento desses distribuidores. Contratos de exclusividade geram menos dispêndios com monitoramento e isso se reflete em melhor oferta e melhores preços aos consumidores.

  • Acordos de exclusividade como alternativa à integração vertical.

Na impossibilidade de contratos de exclusividade, uma alternativa seria a integração vertical por meio de fusões entre fabricantes e distribuidores; no entanto, essa alternativa tende a ser menos eficiente e mais custosa quando comparada à integração parcial alcançada pelos contratos de distribuição exclusiva. A integração vertical tenderia a acarretar externalidades negativas aos consumidores, externalidades essas que são mitigadas pelos contratos de exclusividade.

  • Incentivos para que fabricantes auxiliem os distribuidores.

Por meio dos contratos de exclusividade, os fabricantes fornecem aos distribuidores capacitação, serviços e informações instrutivas para facilitar as vendas e atender melhor os consumidores.

  • Maior eficiência no controle de qualidade.

Por meio dos contratos de exclusividade, há comunhão de interesses no sentido de que distribuidores e fabricante assumem responsabilidade direta pela segurança e qualidade dos produtos que colocam no mercado.

  • Redução dos custos da variedade.

A adoção de acordos de exclusividade traz para as revendas a redução de seus custos relacionados à administração da variedade de produtos recebidos de diferentes fabricantes. Evitam-se os custos de negociação que ocorreriam com fabricantes adicionais e, também, o estoque de produtos fora de linha.

Tendo em vista esses potenciais efeitos positivos, para afirmar que a exclusividade é ilícita, ela deve criar dificuldades para a atuação de concorrentes ou desestimular entradas. Nesse sentido, avaliar a parcela do mercado abrangida pela exclusividade, ou seja, o grau de fechamento do mercado decorrente da exclusividade, é apenas uma etapa para se analisar a possível ilicitude das cláusulas de exclusividade.

Resta uma segunda etapa essencial: provar que a parcela de mercado não abrangida pela exclusividade é insuficiente para que concorrentes disputem o mercado e ou para que se viabilizem novas entradas de competidores. Essa segunda etapa demanda o cálculo da escala mínima viável (“EMV”) e sua comparação com a parcela do mercado não abrangida pela concorrência, pois se, apesar da exclusividade, houver mercado para o desenvolvimento de novos concorrentes e/ou entradas, não deve haver a caracterização do fechamento do mercado.

Caso a parcela do mercado não afetada pela exclusividade seja suficiente para viabilizar a operação de concorrentes e/ou entradas, não há que se falar em ilícito concorrencial.

Segundo o Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do Cade, a EMV é definida da seguinte maneira:

Escala Mínima Viável: é o menor nível de vendas anuais que o entrante potencial deve obter para que seu capital seja adequadamente remunerado. Para tanto, analisa-se qual o investimento necessário e o lucro [retorno do investimento] que um entrante teria em um determinado período no mercado em que pretende entrar (sendo necessário especificar o custo do entrante [fixo, variável/marginal], o mark-up do entrante e o volume de vendas esperado do entrante). As informações podem ser apresentadas ou organizadas na forma de fluxos de caixa de projeto de investimento. A análise da entrada pode utilizar estimativas do valor presente líquido, taxa interna de retorno, payback, payback descontado e outros indicadores que mostram a viabilidade econômica e financeira da entrada.

Assim, fazendo um exercício empírico, é possível saber qual é a escala mínima viável da operação de um entrante disruptivo levando em conta os custos de produção em larga escala. Por meio desse cálculo, pode-se inferir se há ou não espaço suficiente no mercado para o estabelecimento de potenciais competidores. A partir daí sim pode-se concluir ou não pela ilicitude das cláusulas de exclusividade.

Ressalte-se que há casos recentes em que o Cade não exercitou essa segunda etapa – o cálculo da escala mínima viável. Quando isso acontece, a análise fica restrita ao grau de fechamento de mercado, o que equivale a uma análise per se. Tal lacuna na análise pode acarretar inferências errôneas sobre a concorrência em determinado setor.


[1] https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/03/11/cade-proibe-ifood-de-realizar-novos-contratos-de-exclusividade-com-restaurantes.ghtml

[2] “(…) since Jafferson Parish, exclusive dealing is rarely condemned on market share foreclosures lower than 30% or 40%” (HOVENKAMP, Herbert 1999, Federal Antitrust Policy: The Law of Competition and Its Practice. Second Edition. West Group. p. 437).

[3] Hoertel, M. C. Análise econômica da adoção de acordos de distribuição exclusiva entre fabricantes e revendedores. III Prêmio SEAE de monografias em defesa da concorrência e regulação econômica. 2008.


[1] Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Califórnia – Berkeley. Líder do Grupo de Estudos em Direito e Economia – GEDE/UnB-IDP. Consultor Sênior da Charles River Associates e Professor do Mestrado do IDP e da AMBRA University.

Soft Regulation – Uma nova proposta de regulação econômica*

Fernando Boarato Meneguin**

Normas que provocam distorções, que geram mais custos que benefícios sociais, têm sido uma frequência nos três níveis da federação. A proliferação legislativa descuidada acarreta insegurança jurídica e dificulta o desenvolvimento econômico.

Essas dificuldades não são específicas do Brasil. Em nível internacional, o movimento chamado Better Regulation ganhou força nos anos 2000 e colocou holofote no problema da falta de qualidade do arcabouço regulatório mundial e na urgente necessidade de saneá-lo.

Com essa perspectiva, é importante trazer à tona novas alternativas de intervenção estatal. No presente texto, discorremos sobre a soft regulation – regulação que acontece por meio de instrumentos não vinculativos que, embora advenham do poder público, não exigem monitoramento e fiscalização ostensivos por parte da administração pública.

Existe um espaço promissor para se promover a soft regulation no Brasil, com consequências positivas para a racionalização do ordenamento jurídico, a dinamização do crescimento econômico e o incremento do bem-estar social.

No Manual de Boas Práticas Regulatórias da Advocacia-Geral da União é destacado que “o excesso de regras, a falta de clareza, a complexidade da linguagem e a ausência de atualização das normas produzem um ambiente deletério à segurança jurídica, ao setor regulado, aos usuários de serviços e ao próprio Estado de Direito”.

Um ambiente regulatório-normativo inchado é nocivo ao ambiente de negócios, já que dificulta investimentos pela falta de regras claras; encarece e burocratiza o empreendedorismo e o estímulo à inovação; e eleva o Custo Brasil, diante dos altos custos de transação, tornando o País menos competitivo no cenário mundial.

A relevância da atuação do Estado Regulador não afasta os questionamentos quanto à qualidade das regulações. Segundo Meneguin e Saab, no texto “Análise de Impacto Regulatório: perspectivas a partir da Lei da Liberdade Econômica”, as perguntas que devem pautar a atuação estatal são, basicamente: “será que o desenho da norma consegue gerar efeitos que eram realmente os esperados? Será que os custos impostos pela regulação superam os benefícios gerados para a sociedade?”.

Nesse sentido é que o desenho dos marcos regulatórios e das políticas públicas deve ser cuidadosamente pensado, pois ele cria incentivos e altera a matriz institucional, favorecendo ou dificultando o desenvolvimento econômico. A utilização da soft regulation vem para colaborar na construção de soluções que contenham os corretos incentivos para a sociedade, possibilitando intervenções estatais mais eficientes e evitando falhas de governo.

O termo soft regulation deriva do debate entre soft law e hard law no Direito Internacional. Os tratados e as convenções internacionais processados, aprovados e ratificados no contexto interno do país são denominados de hard law, de maneira que seu cumprimento pode ser exigido e as punições pelo descumprimento aplicadas. Por outro lado, as declarações, os códigos de conduta, as diretrizes e as outras promulgações de órgãos políticos do sistema das Nações Unidas, por exemplo, são chamadas de soft law, que se equivale a algo que não tem força legal ou vinculante.

No caso da soft regulation, embora difundida na Europa, a expressão não encontra unanimidade na doutrina internacional. Outras referências encontradas na literatura, tais como non-regulatory approaches ou, por vezes, non-regulatory solutions, apesar de serem mais genéricas, incluem, entre outras formas, o que se entende por soft regulation.

Apesar de não haver definição expressa na doutrina, podemos considerar soft regulation como forma regulatória editadas pelo Estado que não exige comando e controle, sendo aplicada por meio de diversos instrumentos sem força normativa cogente. A soft regulation pode anteceder, complementar, suplementar ou substituir a regulação tradicional, a depender da necessidade e do contexto, como mais uma alternativa para minimizar um problema regulatório.

No relatório da OCDE Alternatives to Traditional Regulation, os instrumentos não normativos são separados nas seguintes espécies: market-based instruments; self-regulation approach; co-regulation approach; e information and education schemes.

O novo Guia para Análise de Impacto Regulatório editado pelo governo federal, de forma semelhante ao que propõe a OCDE, categoriza as alternativas não normativas assim:

  • autorregulação: quando um grupo organizado regula o comportamento de seus membros;
  • corregulação: regulação compartilhada;
  • incentivos econômicos: buscam alterar o comportamento dos agentes por meio de incentivos econômicos, como alteração de preço; e
  • informação e educação: instrumentos usados para corrigir assimetria de informações entre os agentes.

Essas alternativas não normativas, que a depender do desenho podem ser entendidas como soft regulation, tem por objetivo, segundo o relatório da OCDE, Alternatives to Traditional Regulation, “minimizar algumas das principais deficiências da regulamentação tradicional”, por meio do uso de instrumentos regulatórios que possuam como base o desempenho e os incentivos.

Perceba que a escolha do uso de soft regulation está diretamente ligada aos objetivos e à necessidade do mercado e cabe ao gestor público, após fazer a análise de impacto regulatório (AIR) sobre o problema que se pretende minimizar, sopesar a solução mais adequada. Não é necessariamente uma gradação, já que há sempre a opção de se iniciar o processo com uma regulação tradicional.

A literatura aponta algumas vantagens inerentes aos instrumentos de soft regulation: adaptabilidade e flexibilidade às situações que se impõem; rapidez e menos custo para elaboração e implementação; mais assertividade e eficiência diante do problema regulatório; capacidade de influenciar e orientar pedagogicamente os regulados a comportamentos desejados.

Apesar de o uso da soft regulation ainda não ser muito disseminado no Brasil, temos um exemplo de sua utilização no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – o órgão publicou em 2016 o Guia Programas de Compliance, para estabelecer definições, sugestões e diretrizes não-vinculantes para as empresas no âmbito da defesa da concorrência.

A iniciativa, na forma de um “menu de opções”, visa auxiliar as empresas a adotarem programa de compliance para evitar condutas anticompetitivas, por meio de esclarecimento passo a passo para facilitar a implementação da conduta desejável.

O estímulo é feito por meio da demonstração das vantagens da adoção do programa de forma adaptável à realidade de cada organização. Assim, o Cade, guiado pelas práticas que estão sujeitas à sua função repressiva, trouxe, de forma inovadora, opções educativas e preventivas que visam impedir que as empresas violem a Lei de Defesa da Concorrência e sofram penalidades.

Portanto, claramente, não só o Guia do Cade, mas todos os programas de compliance estimulados por autoridades públicas se configuram como opções que se amoldam perfeitamente ao conceito de soft regulation.

Por fim, vale observar que a soft regulation não detém uma só forma para todos os fins e não é uma panaceia para todo problema que carece de intervenção estatal. No entanto, a forma se apresenta como funcional e adaptável ao caso concreto por meio de medidas não intrusivas. Cabe à administração pública, no bojo do processo de AIR, considerar todas as alternativas e decidir pela melhor opção.

O que o modelo de Stackelberg tem para ensinar a análise concorrencial?

Sábado| 16 de abril de 2022

A Lei de Defesa da Concorrência brasileira, assim como as leis antitruste dos principais países do mundo, se ocupam dos efeitos das operações de fusão e aquisição entre grandes empresas e/ou grandes grupos. Não é por outro motivo que a Lei nº 12.529/2011 apresenta como critério obrigatório para notificação ao CADE os valores para os faturamentos de R$ 750 milhões e R$ 75 milhões para as partes envolvidas.

A razão para tão elevados valores, sobretudo o maior deles, está no entendimento de que há uma correlação próxima de zero entre empresas com faturamento pequeno e poder de mercado e, como tal, ausência de probabilidade abuso de posição dominante por estas empresas.

Obviamente que nem todas as operações que não se subssumem nos critérios acima mencionados são desprovidas de problemas concorrenciais, mas o percentual em que isso pode ocorrer não justifica o custo de análise da autoridade antitruste. A estatística do CADE nos mostra que apenas 2%, em média, das operações submetidas geram problemas de natureza concorrencial.

Apesar das empresas de pequeno porte não estarem envolvidas em grandes operações e, como consequência, não serem objeto de preocupação pelo CADE, estas empresas possuem uma importância ímpar na análise concorrencial, pois, são elas que atuam de forma efetiva nas franjas dos mercados e que contribuem para contestar os mercados, ainda que de forma limitada.

A franja é composta por todas as empresas de pequeno porte que sobrevivem no mercado a partir do resíduo de demanda não apropriado pelas empresas líderes que são, em geral, objeto de fusões e aquisições notificadas às autoridades de defesa da concorrência.

Mas como isso se dá?

O modelo de Stackelberg[1] nos dá a resposta para estas perguntas, pois joga luz a sobre o relacionamento entre estas empresas e o ambiente concorrencial. O modelo básico de Stackelberg, também chamado de modelo líder – seguidor, representa um mercado onde coexistem empresas com participação de mercado muito elevadas e empresas com participação de mercado muito baixas.

A pergunta é: por que empresas grandes e pequenas coexistem? As empresas pequenas não deveriam ser expulsas do mercado?

A resposta para estes questionamentos está na clássica relação entre demanda e oferta e a ampliação e retração de oferta de uma empresa gera efeitos imediatos sobre o preços de mercado, sendo também imediato o efeito sobre todas as funções lucros das empresas.

Sendo assim, a empresa líder toma sua decisão de produção considerando sua maximização de lucros considerando a existência das seguidoras que terão sua produção definida de forma residual. Com isso, a quantidade efetivamente produzida pelas seguidoras será o resíduo entre a verdadeira quantidade de mercado e a quantidade esperada pelas empresas líderes, conforme demonstram as três equações:

Portanto, o que o modelo de Stackelberg nos ensina é que a eliminação das empresas seguidoras no mercado não é uma decisão que cabe as empresas líderes. Neste jogo, a líder tem a vantagem de definir sua produção (e tb os preços de mercado) logo no primeiro estágio. Já as seguidoras têm suas quantidades definidas de forma residual, devendo praticar o preço de mercado.


[1] STACKELBERG, H. Von.  Marktform und Cleichgewicht. Wien und Berlin: Verlag von Julius Springer. 1934. Pp. vi + 138. M. 9.60.

O papel do modelo de cidade linear de Hotelling na dinâmica concorrencial

Quinta-feira| 14 de abril de 2022

O modelo de Hotelling (1929)[1] pode ser ilustrado como uma cidade linear com duas empresas localizadas nos pontos A e B e diversos consumidores distribuídos ao longo da cidade, que é representada pelo segmento de reta, conforme demonstra a figura 1.

Neste modelo, a variável x representa a situação em que o consumidor localizado neste ponto está a x unidades de distância da empresa A e a variável y representa a situação em que o consumidor localizado neste ponto está a y unidades de distância da empresa B.

Se o custo de deslocamento destas unidades de distância fosse igual a zero para todos os consumidores, estes seriam indiferentes entre comprar das empresas localizadas em quaisquer um dos pontos A e B, principalmente se assumirmos que os produtos produzidos pelas empresas são pouco diferenciados.

No entanto, em havendo custos de deslocamento, os consumidores vão se tornar consumidores daquele estabelecimento que gerar o menor custo de deslocamento para si. Desta feita, é correto afirmar que todos os consumidores que estiverem à esquerda do ponto A pertencerão ao mercado protegido da empresa que se localizar no ponto A e todos os consumidores que estiverem à direita do ponto B pertencerão ao mercado protegido da empresa localizada no ponto B.

A menos que estejamos falando de setores com rigidez locacional, como é o caso das jazidas minerais, as empresas sempre terão incentivos em se instalar em pontos que ampliem a sua área protegida. Neste caso, a empresa que se localiza no ponto A tem incentivo em se deslocar o máximo possível para a direita e a empresa que se localiza no ponto B tem incentivo para se deslocar o máximo possível para a esquerda. Ao se comportar desta forma, as empresas se concentrarão no ponto M da figura 1, ficando a firma que tem o mercado cativo a à esquerda de M e a empresa que tem o mercado cativo b ficará à direita de M.

Este modelo reforça que ao mesmo tempo em que as empresas tentam se diferenciar no mercado (no nosso exemplo a diferenciação é o custo do deslocamento), elas também se aproximam geograficamente dos concorrentes a fim de obter os benefícios das empresas já instaladas, sobretudo, quando estas são menores no mercado.

Um exemplo interessante e que se ajusta aos resultados de Hotelling diz respeito a entrada da empresa aérea Gol no mercado brasileiro de aviação. Ao mesmo tempo que ela se diferenciou das incumbentes ao transferir para o passageiro o custo de impressão do seu bilhete de viagem e eliminou o serviço de bordo tradicional, ela também passou a atuar em horários concorrentes com as empresas incumbentes.

Um outro exemplo que demonstra os resultados de Hotelling diz respeito a localização dos concorrentes do MCDonalds. Em geral, os concorrentes tentam se diferenciar nos seus sanduiches, mas se encontram geograficamente muito próximos de qualquer unidade do MCDonalds, pois assim obtém os benefícios da sua localização e se apropriam da demanda residual.

Portanto, é de ver que o modelo de cidade linear de Hotelling é um modelo microeconômico bastante elucidativo e que deveria ser mais utilizado tanto em sede de controle de concentrações e de condutas quanto de análise regulatória.


[1] HOTELLING, Harold. Stability in Competition. Economics Journal. Vol. XXXIX, 1929, págs. 41-57.

Os modelos de oligopólio estão para a defesa da concorrência assim como está o modelo de monopólio natural para a regulação econômica

Sábado| 02 de abril de 2022

O nosso editorial de hoje traz uma importante reflexão a respeito da relevância dos modelos de oligopólio (Cournot, Stackelberg e Berthand) para a teoria antitruste, assim como o é o modelo de monopólio natural para a regulação econômica.

Ao se tratar de regulação econômica, a primeira coisa que vem para a discussão é a falha de mercado denominada de monopólio natural. Com base nesta estrutura, que significa a situação em que a operação de duas ou mais empresas sempre resultará em lucros negativos para todas as empresas, discute-se a melhor forma de tornar as tarifas menos custosas para os usuários.

Na teoria antitruste, a estrutura de mercado predominante é o oligopólio, pois, como o próprio nome diz, esta trata do combate ao truste, que, por definição, é uma organização empresarial de grande poder de mercado, que pode ser um oligopólio ou, no limite, um monopólio. Este último, no entanto, é majoritariamente combatido no controle de concentrações de qualquer autoridade de defesa da concorrência.

Conquanto a teoria antitruste se ocupe de oligopólios, o discurso das autoridades de defesa da concorrência pouco se refere aos clássicos modelos de oligopólio (modelo de Cournot, modelo de Stackelberg e modelo de Berthand) e, contrariamente ao que fazem as autoridades de regulação, pouco aproveitam de seus insights para as suas análises.

Na regulação econômica de setores de infraestrutura (energia elétrica, telecomunicações, saneamento básico etc), as agências reguladoras desenvolvem as suas soluções regulatórias partindo do entendimento de que o setor é monopólio natural e, a partir deste ponto, desenvolvem, em sua grande maioria, atos normativos tendo como linha mestra esta premissa.

Na defesa da concorrência, no entanto, é comum ver que as soluções pouco consideram que os mercados são oligopolizados e muito menos que estes oligopólios se comportam nos mercados a partir de funções de reação, em que as suas escolhas de quantidades e preços dependem daquilo que eles acreditam que os seus oponentes irão escolher, ensinamento tão bem apresentado nos três modelos clássicos de oligopólio acima mencionados.

Portanto, assim como o modelo de monopólio natural é o ponto de partida para a regulação econômica em setores de infraestrutura, os modelos de oligopólio também o são para a análise de defesa da concorrência, pois, da mesma forma que a existência da falha de mercado gera a necessidade de regulação econômica, também a existência de estrutura concentrada, muitas vezes em forma de oligopólio, gera o sentido para a aplicação da teoria antitruste.

Possíveis impactos da tecnologia blockchain nos acordos colusivos

Polyanna Vilanova[i]

Isabel Jardim[ii]

Ana Flávia Napoli[iii]

Neste artigo continuaremos a explorar os desdobramentos do uso da tecnologia blockchain e seus possíveis efeitos na concorrência, focando especificamente nas práticas colusivas, especialmente nos cartéis.

As condutas colusivas ou coordenadas, as quais englobam acordos e práticas concertadas entre concorrentes, como cartéis, além de práticas verticais, geram diversas preocupações ao mercado e às autoridades antitruste ao redor do mundo. Devido ao seu alto potencial lesivo ao ambiente competitivo, acordos entre concorrentes e outras práticas concertadas têm sido reprimidas com dureza pelas agências.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em seu Guia de Combate a Cartéis em Licitação[i], define o cartel como “acordo ou prática concertada entre concorrentes para fixar preços, estabelecer quotas ou restringir produção, dividir mercados de atuação e alinhar qualquer variável concorrencialmente sensível”. 

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o cartel é a mais grave dentre as condutas anticompetitivas, uma vez que prejudica sobremaneira os consumidores e tem efeitos prejudiciais sobre a eficiência econômica. Isso porque, um cartel bem-sucedido pode aumentar os preços acima do nível competitivo, reduzir a quantidade e a qualidade ofertada de bens e reduzir o incentivo à inovação, protegendo seus membros dos riscos inerentes à exposição às forças de mercado, reduzindo a pressão competitiva nos segmentos afetados por este tipo de acordo[ii].

Não à toa, o Cade, assim como outras autoridades antitruste internacionais, tem direcionado contínuos esforços ao combate dos acordos colusivos e cartéis. Apenas no ano de 2021, 19 processos administrativos que investigavam cartéis foram julgados pelo Tribunal do Conselho, os quais resultaram em 13 condenações e na aplicação de multas que, somadas, chegaram ao valor de R$ 1.035.741.384,42[iii].

Além da persecução administrativa de cartéis, exercida no Brasil pelo Cade, a qual pode resultar em caso de condenação na imposição de multas impostas às empresas que variam de 1 a 20% do seu faturamento bruto e outras possíveis punições, como a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitações envolvendo a administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a cinco anos; os cartéis também são objeto de persecução penal. Ainda, a Lei de Defesa da Concorrência prevê o direito dos prejudicados de ingressarem em juízo para obter indenização por perdas e danos resultantes de práticas que constituam infração da ordem econômica.

Diante da importância conferida ao combate aos acordos colusivos entre concorrentes em face do seu potencial lesivo à concorrência e, consequentemente, aos consumidores, diversos pesquisadores têm se dedicado a compreender se e como, novas tecnologias, como a blockchain, podem interagir com este tipo de prática; seja pela ótica da sua utilização pelas autoridades de defesa da concorrência para reprimir condutas anticompetitivas, seja pela ótica dos agentes de mercado, por meio de sua utilização para implementar e refinar práticas colusivas.

Esse é um dos pontos explorados por Schrepel (2019), no artigo “Collusion by blockchain and smart contracts“, em que o autor afirma ser possível a criação de blockchains para fins anticompetitivos e para o compartilhamento de informações, de modo a induzir os participantes à conduta uniforme.

Segundo o autor, as condições de acesso, uso e/ou saída da blockchain podem acarretar consequências negativas na seara concorrencial, pois as empresas podem acabar se utilizando da tecnologia para facilitar a criação e/ou funcionamento de acordos de conluio sobre suas estratégias no mercado, incluindo preços, níveis de produção, estratégias de inovação e similares (Schrepel, 2019, p. 140).

Ainda, Schrepel defende que as blockchains podem dificultar a detecção de tais práticas pela autoridade antitruste, tendo em vista o seu funcionamento peculiar e suas características, como o anonimato dos membros e, no caso de blockchains privadas, a possível vedação de acesso a membros não autorizados.

O autor também chama atenção para a necessidade de se analisar os smart contracts – os chamados contratos inteligentes, que são autoexecutáveis para transações online. Assim como a tecnologia blockchain, eles possuem um “double effect”, ou seja, ao mesmo tempo que podem dinamizar transações e facilitar negociações, podem também ser facilitadores de transações entre empresas que possuem intenções prejudiciais à concorrência permitindo, inclusive, o implemento de mecanismos de punição mais eficientes aos membros que descumprirem os termos do acordo entre concorrentes.

Nesse sentido, o autor destaca que os contratos inteligentes teriam a potencialidade de fazer com que o número de pedidos de leniência venha a ter uma diminuição, tendo em vista que a blockchain reforça a confiança durante a vigência da colusão[iv].

Esta hipótese nos chama especial atenção, uma vez que a política de acordos antitruste do Cade é um dos principais pilares para a persecução de práticas coordenadas no Brasil, de forma que uma diminuição poderá dificultar severamente o cumprimento da função repressiva pelo órgão. Este cenário pode obstaculizar tanto a identificação dessas práticas e dos seus participantes, quanto a obtenção de provas aptas a ensejarem a condenação dos agentes envolvidos.

Ainda sobre os contratos inteligentes, Nick Szabo sugere que, no futuro, eles também poderão ser usados ​​para integrar elementos de inteligência artificial para detectar o equilíbrio ideal de um acordo e agir de acordo com ele[v].

Trazendo uma perspectiva diversa, Lin William Cong e Zhiguo He (2018) argumentam a tecnologia blockchain tem o potencial de mitigar a assimetria de informações e melhorar o bem-estar do consumidor por meio do aumento da competitividade e da ampliação de espaço para negociação. Não obstante, os autores sugerem que, ao mesmo tempo, essa tecnologia também pode encorajar comportamento colusivo justamente em razão dessa distribuição de informações comerciais.

Especificamente com relação aos possíveis impactos da tecnologia blockchain na atuação das agências antitruste, conforme havíamos mencionado em nosso artigo anterior, é possível que as blockchains possam ajudar as autoridades a coletar mais dados no futuro, os quais permitirão que as agências executem análises mais aprofundadas e explorem teorias do dano mais complexas[vi].

Ao analisar alguns dos impactos possíveis da blockchain na dinâmica competitiva dos mercados, conclui-se que a tecnologia parece capaz de promover, de fato, “efeitos duplos”. Redução da assimetria de informações entre agentes de mercado e entre estes agentes e os consumidores e a oferta de novos meios de coleta de dados e de monitoramento de mercados para as agências antitruste são alguns dos efeitos positivos elencados pela doutrina como resultantes da aplicação dessa tecnologia. De outro lado, porém, a tecnologia pode encorajar, conforme demonstrado acima, comportamentos colusivos, além de dificultar sua detecção pelas autoridades e ser utilizada como meio para implementação de condutas exclusionárias e para o monitoramento da efetividade dos acordos entre concorrentes. Por estes motivos, uma sólida compreensão da tecnologia blockchain e demais novas tecnologias deve ser prioridade das agências de defesa da concorrência, tanto para garantir a efetividade da repressão das infrações da ordem econômica, quanto para que o potencial positivo possa ser integrado a suas práticas.


[i] O guia está disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2019/Cade%20publica%20Guia%20de%20Combate%20a%20Cart%C3%A9is%20em%20Licita%C3%A7%C3%A3o__guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf

[ii] OCDE. Fighting Hard Core Cartels: harm effective sanctions and leniency programs (2002). Disponível em: < https://www.oecd.org/competition/cartels/1841891.pdf >. Acesso em: 25 mar. 2022.

[iii] Informações obtidas por meio da ferramenta “CADE em números”, disponível em: http://cadenumeros.cade.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=Painel%2FCADE%20em%20N%C3%BAmeros.qvw&host=QVS%40srv004q6774&anonymous=true

[iv] RESENDE apud SCHEREPEL, 2021. Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin>  Acesso em: 27 de março de 2022.

[v] SZABO, Nick. Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets, ALAMUT (1996) Disponível em: https://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart_contracts_2.html > Acesso em: 20 mar 2022.

[vi] Tulpule. Ajinkya. Blockchain and competition: Ajinkya Tulpule and how blockchain might change the way agencies work. Youtube, 4 de set. de 2018. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=oM-NhHb4ngA >


[i] Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade.  Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV.

[ii] Advogada no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV. Atuou como coordenadora-substitua e assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.

[iii] Advogada no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).

Existe um nível ótimo para a integração vertical na saúde?

Sandro Leal Alves

A integração vertical, ou verticalização como é mais conhecida no mercado de saúde, se refere ao processo que que há a unificação produtiva de partes da cadeia que antes eram separadas. Quando uma operadora de plano de assistência à saúde adquire um hospital, ou vice-versa, há uma integração vertical pois o plano de saúde e o hospital passam a operar sob uma gestão única.  O mesmo ocorre dentro do hospital quando este é responsável, por exemplo, pelo funcionamento dos serviços de gastroenterologia.[1]

Esse processo de integração visa um melhor alinhamento de incentivos entre os agentes econômicos, reduzindo custos de transação e ineficiências decorrentes de uma gestão com objetivos eventualmente conflitantes e separados. Essa não é, portanto, uma peculiaridade da saúde. Ao contrário, a economia industrial é cheia de exemplos em que a verticalização resulta em economias para as partes e maior eficiência econômica. Já o ecossistema da saúde, com crescente uso de informações e transações digitais, atualmente é muito mais próximo ao funcionamento de redes integradas do que a tradicional visão de etapas subsequentes das cadeias produtivas industriais.

A visão mais tradicional da análise antitruste se baseia no argumento de que há um nível de concentração que para além do qual, os custos econômicos superam os benefícios. Diversos índices de concentração (HHI, C4, etc.) ajudam a identificar os mercados relevantes que merecem um maior grau de preocupação das autoridades da concorrência.  Não é objetivo desse artigo adentrar este campo já muito desenvolvido na literatura. [2]

Mas e na integração vertical? E, mais ainda, na área da saúde, haveria um indicador capaz de sinalizar ou antecipar algum potencial dano à concorrência? Sabemos que os tradicionais índices de concentração são muito úteis para movimentos horizontais, mas estes não se aplicam diretamente aos movimentos verticais. [3]

A literatura disponível ao conhecimento deste autor não indica um consenso se os efeitos predominantes de uma integração entre empresas que atuam em mercados complementares são ganhos de eficiência ou anticompetitivos. Sabemos que os ganhos de eficiência podem vir de redução dos custos de transação, melhora na capacidade de monitoramento dos elos da cadeia produtiva e melhor coordenação do cuidado. Já em relação aos efeitos anticompetitivos, o fechamento de mercado para a entrada de concorrentes talvez seja o mais danoso.[4]

No Brasil, e em especial na saúde privada suplementar, o movimento de concentração vertical foi acelerado após investimentos de instituições financeiras estrangeiras em toda cadeia de saúde suplementar, que só foram possíveis após a Lei n. 9.656/98 para a recepção de capital estrangeiro em operadoras assim como pela Lei n. 13.097/15, que ampliou esta possibilidade às empresas de assistência à saúde como clínicas, laboratórios e hospitais. [5]

A própria concorrência, a regulação da ANS com requerimentos de entrada e capital, dentre outros, e a escalada dos custos assistenciais impuseram aos agentes econômicos a necessidade de reformatar seus modelos de negócio abrindo espaço para as fusões, aquisições e integrações verticais. Não podemos esquecer que o modelo de remuneração Fee-For-Service (FFS), que paga de acordo com o volume de procedimentos ofertados, contribuiu para uma taxa de crescimento de custos acima do sustentável, nem sempre privilegiando a melhoria da assistência aos pacientes. O mesmo efeito pode ser atribuído ao histórico processo de incorporação de tecnologias na saúde suplementar, sem avaliações técnicas de custo-efetividade como os bons manuais de Avaliação de Tecnologias em Saúde recomendam. Isso tudo, aliada à fragmentação do cuidado assistencial e à excessiva judicialização, contribui para a inovação dos modelos de negócios.

Na saúde suplementar, a obtenção de economias de escala é fundamental para dar maior segurabilidade aos riscos e custos assistenciais crescentes. A integração vertical, seja ela real ou virtual, confere às operadoras a possibilidade de gestão desses riscos com estratégias de coordenação de cuidados assistenciais e de saúde populacional, sem falar na necessidade crescente de integração de dados para melhorar a assistência prestada e desenhar soluções mais focalizadas para grupos de riscos específicos.

A integração com coordenação também pode permitir um melhor resultado assistencial ao melhorar a comunicação entre os agentes, padronizar procedimentos e reduzir redundâncias. No fim do dia, o consumidor estará mais bem atendido. Esse seria o desenho ótimo de uma integração vertical, cabendo às autoridades o monitoramento desse movimento com vistas a preservar os benefícios econômicos que a integração pode trazer. Na ausência de falhas de mercado e infrações à legislação de defesa da concorrência, o mercado encontra o caminho para levar o melhor resultado assistencial aos consumidores de planos.

Nesse sentido, a verticalização é um processo, e não um fim em si mesma, que ajuda a lidar com o desafio do financiamento. Isto porque as despesas assistenciais, representadas na saúde suplementar pela VCMH (variação dos custos médico-hospitalares) crescem em velocidade superior ao crescimento das rendas, salários, inflação ao consumidor e diversos outros indicadores econômicos.

Sob o ponto de vista da defesa da concorrência, a análise das eficiências dinâmicas que geralmente procuram observar efeitos da operação sobre preços e quantidades deve olhar cada vez mais para indicadores de qualidade assistencial, não desprezando evidentemente os tradicionais indicadores de solvência, muito importantes em um mercado que lida com riscos futuros, eventos incertos e com a poupança popular.

Para finalizar, pouco importa se a verticalização é real, mediante a aquisição de ativos, ou virtual, mediante acordos e contratos. O que realmente interessa é o resultado na última linha do balanço assistencial, ou seja, a entrega de valor em saúde para as pessoas.


[1]  Song, L., Soroush, S., Saghafian, M., Newhouse.J., Landrum, M., Hsu, J. The Impact of Vertical Integration on Physician Behavior and Healthcare Delivery: Evidence from Gastroenterology Practices Faculty Research Working Paper Series. September 2020

[2] Uma boa discussão sobre a relação entre índices de concentração, mercados relevantes geográficos e preços na saúde suplementar pode ser encontrada em Lima, T (2021). Ensaios sobre o mercado de saúde suplementar. Documento de Trabalho 04. Departamento de Estudos Econômicos do CADE.

[3] Alguns economistas utilizam o índice de Gans ou HHI vertical (VHHI) para mensurar a verticalização. O VHHI é dado pelo somatório do produto da participação da firma a jusante com o máximo entre essa mesma participação e a da firma a montante. Sendo si a participação da firma a jusante e σi a participação da firma a montante, tem-se que: VHHI = .  Cabe o registro de que a definição dos mercados relevantes e, principalmente, na dimensão do produto, condição necessária para cálculo do referido indicador, é tarefa de enorme complexidade devido às múltiplas funções exercidas pelo hospital em seus diversos serviços assistenciais.

[4] Gaynor M (2014) Competition policy in health care markets: Navigating the enforcement and policy maze. Health A↵airs 33(6):1088–1093.

[5] Não nos esqueçamos que a verticalização é um processo antigo. As medicinas de grupo, por exemplo, já nasceram verticalizadas, assim como as filantrópicas e as próprias Unimeds. Faz parte do DNA organizacional dessas entidades a operação conjunta do plano e da assistência.

The Impact of the Global Methane Pledge on the Brazilian Beef Industry

Márcio de Oliveira Júnior*

Following the Glasgow Climate Change Conference (COP 26), Brazil and 104 other countries signed the Global Methane Pledge. Methane emissions reduction is important for curbing global warming, as methane causes approximately 80 times more warming than the same amount of carbon dioxide[1]. Brazil committed to reducing 30% of its methane emissions by 2030. However, should Brazil accomplish this commitment, its large beef industry must adapt, as livestock is the heaviest methane emitter in the country [2].

Due to its large bovine herd (220 million cattle, equivalent to 14% of the bovine global herd), Brazil is the fifth largest methane emitter in the world[3]. In 2020, it emitted almost 402 million metric tons of CO2 equivalent (MMTCO2E – around 2% of total world emissions). The heaviest methane emitter in Brazil is agriculture, which accounts for 78% of total emissions. Livestock, on its own, is responsible for 75% (300 MMTCO2E) of the country’s methane emissions (primarily from enteric fermentation and manure management). Therefore, to achieve a 30% reduction below the 2020 levels, livestock emissions must fall sharply.

According to Embrapa (The Brazilian Agricultural Research Corporation), it is necessary to reduce bovine herd enteric fermentation to address methane emissions in Brazil. For instance, dietary supplements can diminish fermentation and thus lower gas output. JBS, the largest Brazilian meatpacker, is adding a quarter-teaspoon of a feed additive to 30 thousand cattle that inhibits the enzyme responsible for producing methane. Shortening the lifespan of the cattle also leads to the reduction of methane emissions, as the same body mass is reached in less time. This depends on techniques such as genetic alterations and bettering the quality of pastures[4].

All these alternatives depend on the deployment of innovations and imply higher production costs. Unless meatpacking companies can pass these higher costs on to consumers, there may not be incentives to adopt techniques that will result in lower methane emissions. Thus, it is important to investigate whether consumers will agree to pay higher prices for “climate friendly beef”. A recent paper by Lucchese-Cheung et al. (2021)[5] sheds light on this issue, as they investigate whether Brazilian consumers are willing to pay more for carbon neutral beef (CNB).

Embrapa has set up a producers’ certification scheme in which beef producers not only adhere to CNB method of production, but also to a guaranteed quality standard. The certification is aimed at assuring consumers of high-quality carbon neutral beef, a market innovation (Alves 2015, apud Lucchese-Cheung et al. 2021). In fact, the CNB is an attempt to further differentiate beef by adding a characteristic that makes it possible for consumers to compare CNB and non-CNB and decide whether to pay more for carbon neutral beef.

According to Lucchese-Cheung et al. (2021), communication campaigns are vital for a large consumer base to be willing to pay a higher price for carbon neutral beef. However, the results of advertisement campaigns are uncertain, not to mention that they are sunk costs[6]. Hence, there is no guarantee that meatpackers will spend to advertise carbon neutral beef. If they do not, it is less likely that consumers will pay more for CNB. Consequently, producers may decide not to incur the higher costs necessary to produce carbon neutral beef and, as a result, the reduction of methane emissions can be compromised.

Lucchese-Cheung et al. (2021) investigate domestic consumers’ responses to an innovation (carbon neutral beef). However, Brazil is a relevant exporter, which makes it important to investigate whether foreign consumers are willing to pay higher prices for carbon neutral beef (CNB). In the case that they are, and Brazilian firms do not supply it, competitors may do so and therefore divert demand from Brazilian beef exporters. As a result, domestic firms would lose market share. Moreover, some countries may adopt carbon border taxes, which makes it even more costly and risky not to invest in methane emissions reduction.

Furthermore, the cost of capital for the Brazilian meatpackers may increase should they not invest to reduce greenhouse gases emissions. A recent episode helps to illustrate it. Inter American Development Bank (IADB) has blocked a USD 200 million loan for Marfrig, the second largest Brazilian meatpacker. The alleged reason was that Marfrig did not comply with IADB’s sustainability policy. This episode is interesting, as Marfrig was going to use the money to finance its Plan Green + (Plano Verde +), which aims at ensuring sustainability alongside its supply chain[7].

Thus, there seems to be a dilemma. For ranchers and meatpackers to access low-cost capital, such as green bonds or sustainability-linked bonds, they must invest in sustainability. However, to do so, they must have access to low-cost funding. If they do not, they may not invest.

It is believed that the global carbon market can help solve this dilemma. By reducing methane emissions, ranchers and meatpackers would sell carbon credits to companies who need offsets to reduce emission targets. By doing so, their revenue would increase. However, the role of carbon markets for methane emissions is not clear, as there have not been issuances and, therefore, the return on the investment is not known[8] [9].

Furthermore, full traceability of ranches that supply livestock into the supply chains is essential for the carbon credit market to work. Although Brazilian largest meatpackers trace cattle sellers, they are not fully traceable. Consequently, it is difficult to accurately estimate the amount of methane reduction and, consequently, the carbon credits to be sold.

Summing up, there is a lot of uncertainty regarding how to fund the methane emissions reduction and the industry transition to “climate friendly beef”. The potential competition faced by Brazilian exporters should be sufficient for the public sector to step in and launch financing schemes. Additionally, there are negative externalities[10] associated with greenhouse gases emissions, such as methane, which justifies public policies for reducing them.

There are two public policies addressing this issue in Brazil: The National Plan for Low Carbon Emission in Agriculture (ABC Plan[11]) and The Zero Methane Program[12]. The ABC Plan has the goal of reducing greenhouse gases emissions in agriculture. Regarding funding, it offers low-cost loans up to USD 1 million (BRL 5 million) per fiscal year. The Zero Methane Program was recently launched and offers funding for activities related to methane reductions, such as the sustainable use of biomethane[13]. It also aims at setting up the legal framework for developing a carbon market for methane emissions reduction.

Given the costs and uncertainties related to the transition to a “climate friendly beef industry”, it is difficult to predict whether these public policies will be enough for enabling it. Meatpacking and livestock companies’ incentives to invest in methane reduction will also be key to enabling this transition. These incentives, on the other hand, depend on their ability to pass higher costs on to prices. However, given the uncertainty regarding the ability to charge higher prices for “climate friendly beef”, and as the Global Methane Pledge is not binding, companies might not invest, which can result in a market failure. To avoid it, Brazil should consider reinforcing the public policies and legally enforcing its reduction commitments as part of the efforts to reduce methane emissions and thus start overturning its image as a climate villain.


[1] See: Why methane cuts pledged at COP26 may be key to meeting climate goals (nationalgeographic.com)

[2] Brazil is a key player in the world beef market. The country produced around 10 million tons of beef in 2020, 17% of world production. Brazil is the world’s largest beef exporter. Its foreign sales amounted to 2 million tons in 2020, 15% of global beef exports. See: Pesquisa da Pecuária Municipal | IBGE, ABIEC – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes, Top beef exporting countries 2020 (worldstopexports.com) and Brazil is the world’s fourth largest grain producer and top beef exporter, study shows – Portal Embrapa.

[3] See: Global Methane Initiative

[4] See: Brazil’s beef industry starts to tackle methane emissions | Financial Times (ft.com)

[5] Thelma Lucchese-Cheung, Luis Kluwe de Aguiar, Lilian Cunha de Lima, Eduardo Eugênio Spers, Filipe Quevedo-Silva, Fabiana Villa Alves & Roberto Giolo de Almeida (2021) Brazilian Carbon Neutral Beef as an Innovative Product: Consumption Perspectives Based on Intentions’ Framework, Journal of Food Products Marketing, 27:8-9, 384-398.

[6] See: Sunk Cost Definition (investopedia.com)

[7] See: BID decide cancelar empréstimo à Marfrig | Agronegócios | Valor Econômico (globo.com)

[8] See: Cop26 methane pledge needs “money and muscle” – (capitalmonitor.ai)

[9] Mootral, a Swiss agriculture technology company, claims to have issued the first carbon offset credits for cattle methane emissions reduction. See: Carbon credits issued for cow methane reduction in potential world first | S&P Global Commodity Insights (spglobal.com)

[10] See: Externality Definition & Examples (investopedia.com)

[11] See: Plano ABC – Agricultura de Baixa Emissão de Carbono — Português (Brasil) (www.gov.br)

[12] See: MinutaProgramaMetanoZero.pdf (www.gov.br)

[13] According to An introduction to biogas and biomethane – Outlook for biogas and biomethane: Prospects for organic growth – Analysis – IEA, “biomethane (also known as “renewable natural gas”) is a near-pure source of methane produced either by “upgrading” biogas (a process that removes any CO2 and other contaminants present in the biogas) or through the gasification of solid biomass followed by methanation”.

* Senior Consultant to Charles River Associates (CRA) – https://www.crai.com/our-people/marcio-de-oliveira-junior/