Amanda Flávio de Oliveira*
Sandro Leal Alves**
Encontra-se em julgamento no Superior Tribunal de Justiça um caso de fulcral importância para os rumos já tortuosos da regulação da saúde suplementar no Brasil.
Trata-se da definição sobre ser taxativo (ou não) o rol de procedimentos obrigatórios definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Explica-se. À Agência reguladora do setor, a ANS, compete, conforme a lei, definir a lista de procedimentos que os planos de saúde são obrigados a oferecer em cada modalidade – ambulatorial, hospitalar com ou sem obstetrícia, referência ou odontológico. São procedimentos como consultas, exames e tratamentos, que a lei denomina “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”. A norma que regulamenta a incorporação de novas tecnologias em saúde e a definição de regras para sua utilização foi recentemente atualizada e consta da Resolução Normativa – RN nº 470/2021, a qual dispõe sobre o rito processual de atualização do referido rol.
Em 16 de setembro passado, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou o julgamento de dois recursos especiais que definirão se a lista de procedimentos de cobertura obrigatória para os planos de saúde é exemplificativa ou taxativa – ou seja, se as operadoras podem ou não vir a ser obrigadas a cobrir procedimentos não incluídos na relação da Agência Reguladora. Há divergência sobre o tema entre as duas Turmas que compõem a Seção de Direito Privado. O julgamento foi suspenso após pedido de vista da Ministra Nancy Andrighi. Antes disso, o Relator dos recursos, Ministro Luís Felipe Salomão, votou pela taxatividade da lista editada pela ANS, sustentando que a elaboração do rol tem o objetivo de proteger os beneficiários de planos, assegurando a eficácia das novas tecnologias adotadas na área da saúde, a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor.[1]
O tema é delicado. Saúde constitui uma questão cara às pessoas e, sobretudo em um momento de pandemia, o debate sobre o assunto se torna mais emocional do que sempre foi. Entretanto, afastar-se da racionalidade em matéria de política pública pode ser garantia de resultado desastroso, com efeitos indesejados exatamente sobre aqueles que se pretende proteger.
Vamos às bases. Se saúde é condição nobre, anseio de todas as pessoas e componente da situação de bem-estar que se deve cultuar, o oferecimento de serviços de tratamento de saúde, fora do Sistema Único de Saúde, constitui uma atividade empresarial autorizada constitucionalmente. O plano de saúde, por sua vez, constitui um produto oferecido neste mercado. A esse mercado, portanto, aplicam-se todas as regras econômicas incidentes sobre todos os demais: há custo na prestação de serviços de saúde, relacionados aos produtos oferecidos e aos pagamentos pelos honorários médicos, há preço, composto a partir do custo esperado, e a ele agregando as despesas administrativas e comerciais, além do lucro, razão de existência das empresas. Um aumento ou uma diminuição da variedade e/ou da qualidade do serviço oferecido necessariamente interfere no seu preço, uma vez que altera o custo.
O estabelecimento de um rol de procedimentos de caráter exemplificativo traz consequências graves sobre o preço do plano de saúde, que é calculado atuarialmente com base na expectativa dos custos. Anote-se que os custos dependem tanto do preço dos procedimentos quanto da quantidade utilizada (frequência) e, principalmente, da cobertura contratada. Uma incorporação de serviço ou produto no rol de procedimentos, após a regular tramitação administrativa, acarreta um aumento de custos e, consequentemente, de preço, entretanto, ainda dentro de uma expectativa objetivamente mensurável. Por sua vez, a indefinição quanto à amplitude da cobertura, além de ocasionar a própria perda de razão de existir um rol (e da própria regulação e sua agência), torna imprevisível o custo e ainda mais elevado o preço, que passa a incluir a insegurança quanto à higidez das contas e a sustentabilidade do negócio, por mais sofisticados que sejam os modelos matemáticos utilizados.
Essa situação impacta diretamente na viabilidade do negócio empresarial e, o que também é importante frisar, no acesso mesmo dos consumidores a planos de saúde. Trata-se de uma consequência econômica relativamente simples de se prever. Lembre-se de que no setor de saúde suplementar tem-se um universo quase ilimitado de inovações tecnológicas contemporaneamente…
Considerar o rol exemplificativo significa desprezar um elemento básico da economia: a escassez. Não há recursos suficientes para atender a todas as necessidades de saúde das pessoas, tanto em sistemas públicos de cobertura universal, tampouco em sistemas privados, como é o setor de saúde suplementar. Se os recursos são escassos, é preciso utilizá-los com o máximo de eficiência possível. Na área da saúde, as economias centrais buscam resolver essa questão de expectativa de cobertura versus limitações de recursos por meio da Análise das Tecnologias em Saúde (ATS). Trata-se de priorizar a entrada das tecnologias segundo critérios de custo-efetividade, alicerçados em evidências científicas. A escolha na área da saúde é permeada por assimetrias de informações e interesses muitas vezes conflitantes entre os agentes. A ATS pretende constituir uma maneira técnica de se realizar incorporações diante da conclusão óbvia de que no mundo real, onde existem escolhas a serem feitas diante da escassez de recursos, não existe almoço grátis.
Foi o Prêmio Nobel em Economia Milton Friedman quem cunhou a afirmação de que “não existe almoço grátis”. Muitas vezes repetida, nem sempre a frase parece ser corretamente compreendida. Ao enunciá-la, Friedman popularizava a compreensão de uma ideia importante em Economia: a de custo de oportunidade. Ao fazermos determinada escolha, estamos renunciando a diversas alternativas que não foram escolhidas. Toda escolha traz consigo um custo e ao menos uma renúncia.
Não existe rol exemplificativo grátis em saúde suplementar. Adotar essa concepção implicará necessariamente em barreiras à entrada para as operadoras, redução de oferta e escolha para os consumidores e preços mais elevados. O cardápio está apresentado. Agora cabe à sociedade fazer a sua escolha.
[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092021-Relator-vota-pela-natureza-taxativa-do-rol-de-procedimentos-da-ANS–pedido-de-vista-suspende-julgamento.aspx
[*] Advogada. Doutora e Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Professora dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da UNB. [**] Economista, mestre em economia (USU). Atuou na ANS, na SEAE/ME e atualmente é Superintendente de Estudos e Projetos Especiais da Fenasaúde. Este artigo expressa a opinião do autor e não da instituição.