Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro conta com uma série de ferramentas analíticas – mormente oriundas da análise antitruste norte-americana – que foram sedimentadas ao longo do tempo seja pela própria autoridade da concorrência brasileira, seja pela prática estrangeira que em grande medida a inspira. No entanto, por mais sofisticadas que possam ser as reflexões sobre novos mercados, novas condutas e mesmo sobre os contornos atuais da concentração econômica, o Direito da Concorrência parece encontrar-se em uma constante ambivalência entre a consolidação de alguns de seus pressupostos dogmáticos e o permanente questionamento sobre suas finalidades.

Tal ambivalência é especialmente preocupante diante da circunstância de que o Direito da Concorrência brasileiro tem por fundamento bases radicalmente diversas daquelas sobre as quais se funda o direito norte-americano, notadamente a ordem econômica constitucional estabelecida pelo art. 170 da Constituição de 1988. A chave interpretativa do art. 173, § 4º, segundo o qual a lei reprimirá os abusos do poder econômico, evidentemente não é a lei a que alude o texto constitucional, mas o próprio art. 170. Não é sem motivo que Eros Grau, em sua obra clássica sobre a ordem econômica constitucional, assevera que as regras da legislação concorrencial “conferem concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional adotada pela Constituição de 1988”[1].

Se o ponto de partida da defesa da concorrência no ordenamento brasileiro deve ser a ordem econômica constitucional, causa certo estranhamento que a análise concorrencial permaneça infensa à diversidade de temas oriundos do art. 170 e prefira adotar análises consequencialistas fundadas em metodologias decorrentes da economia neoclássica – mesmo tanto tempo após a promulgação da Constituição de 1988[2]. Isso porque, como também esclarece Eros Grau, a redação do art. 170 não consiste em mera sugestão que pode ser afastada pela ideologia dinâmica da interpretação jurídica mas em um conjunto de preceitos que verdadeiramente vinculam a aplicação da legislação concorrencial em prol da sociedade, e não do indivíduo. Segundo o autor, “estão incrustadas na ideologia constitucionalmente adotada as razões do individualismo metodológico. A cumplicidade estabelecida entre ele e a ideologia liberal – o social produzido pelo individual – não autoriza a deslocação da titularidade da livre concorrência, na arena da ordem econômica, do indivíduo para a sociedade, mesmo no caso da Constituição de 1988”[3].

O Direito da Concorrência brasileiro sob a égide da Constituição de 1988, nesse sentido, é vocacionado não a ensimesmar-se em torno de tecnicismos associados a simplificações que são próprias de uma teoria econômica mais preocupada com ideais abstratos do que com os sujeitos afetados pela dinâmica dos mercados, mas a promover a livre concorrência em prol da coletividade e não de determinados indivíduos. Nem se argumente, aqui, que tais mandamentos constitucionais iriam perfeitamente ao encontro da lógica adotada pelas metodologias da Escola de Chicago, que adotam o bem-estar do consumidor como finalidade última da defesa da concorrência e, assim, no fim e ao cabo promoveriam o bem-estar da coletividade.

Isso porque diversos autores demonstram que a adoção dessas metodologias nos últimos anos tem conduzido a um processo de concentração nunca antes visto nos mais diversos mercados, conduzindo não somente à supressão da concorrência, mas a massivos aumentos de preços[4]. Dessa maneira, cabe indagar qual será a real função do Direito da Concorrência se, mesmo diante de uma ordem constitucional como a brasileira ou mesmo diante da constatação do fracasso das metodologias de Chicago para a proteção da concorrência e do consumidor, não consegue alcançar nem os objetivos pretendidos pela ordem econômica constitucional nem os ideais de eficiência preconizados pela teoria neoclássica.

Daí a razão da perplexidade de autores que, especialmente diante do advento dos mercados digitais e das novas formas de concentração daí decorrentes, vaticinam que ou o Direito da Concorrência precisa repensar radicalmente as suas metodologias para que permaneça relevante, ou mesmo já anunciam sua morte. Anunciada a morte do antitruste, outros passam a indagar o que fazer do cadáver insepulto do qual não se consegue retirar muito mais do que a saudade antes do adeus (parafraseando Nelson Rodrigues).  

Thibault Schrepel, por exemplo, ao tratar dos efeitos da tecnologia blockchain sobre o Direito da Concorrência, sugere que a morte do antitruste será como a morte do jazz: o ritmo ainda existe e ainda tem fiéis ouvintes e mesmo ótimos músicos, porém o jazz dificilmente cria novos debates ou movimentos que ultrapassem os limites de sua comunidade[5]. Por mais agradável que possa ser a comparação do Direito da Concorrência com o jazz ou até a perspectiva de se conservar uma comunidade permanentemente concentrada na reflexão a respeito do próprio Direito da Concorrência, o presságio da morte do antitruste pode servir para que se busque alguma vida nas possibilidades consagradas pela ordem econômica constitucional e aparentemente esquecidas pelo antitruste “desconstitucionalizado”[6].

Se o Antitruste fundado nas premissas consagradas pela prática norte-americana estaria fadado a uma morte semelhante à do jazz, cabe indagar se já é o momento de vestirmos luto ou se o Direito da Concorrência fundado na ordem econômica constitucional de 1988 não poderia ser mais parecido com o samba[7].


[1] GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 213.

[2] Nesse sentido: FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017. pp. 29-30

[3] GRAU, Op. cit., p. 216.

[4] TEPPER, Jonathan; HEARN, Denise. The myth of capitalism: monopolies and the death of competition. Danvers: Wiley, 2019; WU, Tim. The curse of bigness: antitrust in the new gilded age. Nova York: Columbia Global Reports, 2018.

[5] SCHREPEL, Thibault. Is blockchain the death of antitrust law? The blockchain antitrust paradox. Disponível em: https://deliverypdf.ssrn.com/delivery.php?ID=606070026007124079078073084082007086026071069006028088099020115064088031105069007022096019020106111061101119116017126110012092015046040047000106006094088111023106098054046076009094095096001075119071118065069091124015125080094026011118099115026125117113&EXT=pdf&INDEX=TRUE.

[6] Ver: SCHUARTZ, Luis Fernando. A desconstitucionalização do direito de defesa da concorrência. Revista do IBRAC. v. 16, n. 1, p. 325-351, 2009.

[7] MULTISHOW, Música. Não Deixe o Samba Morrer | Alcione | Canta, Luan | Música Multishow. Youtube, 3 ago. 2017.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WrCuw1U0lq8.

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