Editorial

Desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional 95/2016[1], também denominada Teto de Gastos, os governos federais (Governo Temer e Bolsonaro) se encontram limitados por esta restrição. O debate político e econômico em torno da qualidade da regra fiscal imposta a União não cessa e, desde então várias alterações já foram feitas no novo regime fiscal, sendo as principais delas a PEC da cessão onerosa[2], a PEC emergencial[3] e a recente PEC da transição[4].

A despeito da regra do teto de gastos dar previsibilidade para os gastos dos governos, os efeitos da sua adoção não são unanimidade entre economistas, principalmente porque limitam o desenvolvimento de importantes e desejáveis políticas públicas, sobretudo quando a economia fica exposta a choques adversos, como, por exemplo, a pandemia da Covid-19, não sendo incomum ver na imprensa especializada afirmações de que o teto de gastos limita o crescimento econômico.

O gasto do Estado é uma variável ímpar na teoria econômica, sobretudo depois do evento da quebra da Bolsa de Nova York em 1929, que deu origem ao programa New Deal nos Estados Unidos e a publicação do livro “Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda”[5] de John Maynard Keynes[6].

Importante ressaltar que a Grande Depressão dos anos de 1930 foi enfrentada a partir da elevação dos gastos do Estado americano como forma de ampliar o produto da economia e o nível de emprego da população, representação muito bem acabada no modelo IS-LM de economia fechada de Hicks[7], que postula que a adoção de políticas fiscais expansionistas (ex. ampliação dos gastos do governo) majoram, no curto prazo, o produto e a taxa de juros da economia.

Simplificadamente, o que o modelo nos ensina é que a elevação nos gastos do governo estimula o aumento do emprego e, por consequência, amplia o consumo das famílias,  estimula a abertura de novas empresas, geram mais empregos e assim por diante, ou seja, a ampliação dos gastos do governo foi entendida nos anos trinta com uma panaceia, no entanto, a aplicação desta teoria no mundo econômico posterior demonstrou que a utilização da variável gastos do governo não é sempre bem vinda, sendo necessário ter condições específicas para isso acontecer e, mesmo nestes casos, os efeitos colaterais chegam, sobretudo na forma de inflação e dívida pública.

Pois é!! Não é por outro motivo que em pelo menos três situações os gastos do governo foram utilizados para gerar demanda nos mercados: grande depressão de 1930, crise do subprime de 2008 e pandemia da Covid-19. Em todos estes casos, as intervenções do governo apresentaram, de um lado, efeitos contracíclicos na renda e no emprego, e, de outro, apresentaram a elevação da dívida pública, da inflação e de outras variáveis relevantes da economia.

Sabendo que a dose da droga aplicada é que diferencia o remédio do veneno, muitos países têm adotado regras fiscais para controlar os efeitos dos gastos públicos nas economias e o desafio sempre é o de adotar regras fiscais compatíveis (regras rígidas e flexíveis) com cada momento econômico.

E o novo regime fiscal do Brasil implementado pela Emenda Constitucional 95/2016? O que podemos dizer dele? Para onde vai?

Aqui vale relembrar alguns pontos importantes do regime brasileiro (i) a despesa primária da União do ano t , que é  a variável que se impõe a restrição, é corrigida pela inflação (IPCA-A) acumulada até junho do ano t-1; (ii) o prazo de vigência da regra é de 20 anos a partir da publicação com uma revisão nos primeiros 10 anos; e (iii) o não respeito a regra do teto de gastos impede que, no ano seguinte, haja aumento salarial de servidores, contratação de pessoal e que sejam criadas novas despesas.

Estudo recente do FMI (The Return to Fiscal Rules[8]) traz à baila a importância da adoção de regras fiscais e enfatiza que a experiência internacional demonstra que para uma estrutura fiscal ser mais efetiva, ela deve incluir: (1) planos fiscais que sejam viáveis ​​e estáveis, (2) flexibilidade em resposta a choques, (3) âncoras fiscais transparentes, (4) regras baseadas em risco que garantam um caminho para a sustentabilidade da dívida e acúmulo de amortecedores fiscais e (5) freios e contrapesos para promover a responsabilidade[9].

Diante das características do Teto de Gastos, da abordagem trazida pelo FMI e das alterações realizadas nos últimos anos (PEC da Cessão Onerosa, PEC Emergencial e PEC da Transição), o que podemos dizer do regime fiscal brasileiro? Era uma vez o Teto de Gastos?

Não!! Não era uma vez o Teto de Gastos e a explicação está no fato de que os freios e contrapesos existentes no Brasil, por incrível que pareça, são os elementos que estão a funcionar de maneira mais eficiente na realidade brasileira. Parece piada, mas não é!! Isto explica grande parte da flexibilidade do nosso regime. Vejamos!!!

A Emenda Constitucional nº 95/2016 é uma regra constitucional e, como tal, está protegida e amparada no regramento jurídico brasileiro. No entanto, é importante que se diga que esta emenda não está classificada como Cláusula Pétrea, podendo ser alterada pelo Poder Legislativo desde que sejam cumpridos os ritos para tal (votação em 1º e 2º turnos em ambas as casas com aprovação pelo quórum mínimo previsto).

A alteração da Constituição Federal, em que pese acontecer operacionalmente no Poder Legislativo, conta com as atuações do Poder Executivo e do Poder Judiciário, cada um atuando conforme a sua alçada, de maneira que nenhuma alteração da Constituição é implementada à revelia.

O que se pode questionar, no entanto, é quão volúvel deve ser uma norma constitucional. Embora de extrema importância, esta é outra questão e foge do escopo deste artigo. A questão central é a de que as alterações no Teto de Gastos já produzidas e citadas neste artigo não podem e não devem ser encaradas como o final do novo regime fiscal, tipo “aqui jaz um regime fiscal”, mas sim a nossa forma de flexibilizar um regime, ou, se preferirem, a nossa forma de “improvisar” o já improvisado regime fiscal brasileiro.


[1] Emenda Constitucional nº 95 (planalto.gov.br)

[2] A PEC da Cessão Onerosa é a PEC 98/2019, que foi transformada na Emenda Constitucional nº 102, de 26 de setembro de 2019.

[3] A PEC Emergencial é a PEC 186/2019, que foi transformada na Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021 (Emenda Constitucional nº 109 (planalto.gov.br).

[4] A PEC da Transição é a PEC 32/2022, que foi transformada na Emenda Constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022 (Emenda Constitucional nº 126 (planalto.gov.br).

[5] KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do Emprego, da Moeda e do Juro. Editora Nova Cultural. 1998.

[6] John Maynard Keynes – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org).

[7] John Richard Hicks – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

[8] CASELLI, Francesca; DAVOODI, Hamid; GONÇAVES, Carlos; HONG, Gee Hee; LAGERBORD, Andresa; MEDAS, Paulo; NGUYEN, Anh Dinh Minh; YOO,  Jiae. The Return to Fiscal Rules. IMF. STAFF DISCUSSION NOTES. 2022. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/Staff-Discussion-Notes/Issues/2022/10/11/The-Return-to-Fiscal-Rules-523709. Acesso em: 23 de dezembro 2022.

[9] Tradução livre do trecho:

“…international experience shows that for fiscal framework to be more effective they should include (1) fiscal plans that are feasible and stable, (2) flexibility in response to shocks, (3) transparent fiscal anchors, (4) risk-based rules that ensure a path to debt sustainability and buildup of fiscal buffers, and (5) checks and balances to promote accountability. [Caselli et ali (2022), pag. 3].

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