Felipe Fernandes Reis
Os desafios do setor de gás natural no Brasil vem sendo objeto de iniciativas em prol de boas práticas regulatórias e de defesa da concorrência, a Web Advocacy ostenta importantes publicações nesse sentido, dentre os quais destaco a coluna da Dra. Daniela Santos, profunda conhecedora da matéria[1]. Com esse intuito, a proposta deste artigo é defender o conceito e dinâmica de um dos pilares desenhados para o novo modelo do setor, “o mercado de comercialização atacadista de gás”, especialmente no indispensável papel do CADE em suas análises de atos de concentração ou controle de condutas.
Aliás, aproveita-se que a OCDE incluiu a delimitação de mercado relevante nos setores de Oil & Gas (“O&G”) entre os temas tratados na “Latin American and Caribbean Competition Forum”[2], como oportunidadede também considerar as recomendações desse importante órgão a respeito desse tema. No paper que endereça as principais questões encaminhadas no aludido Forum[3], é destacado a importância de boas práticas na delimitação do mercado relevante, reforçando o entendimento que tal exercício consiste em valioso instrumento de análise, mas não sendo “um fim em si mesmo” ou o único meio de análise da autoridade antitruste para apurar os possíveis efeitos anticompetitivos de uma conduta ou ato de concentração. O CADE, inclusive, vem adotando essa premissa, reconhecendo o papel da delimitação do mercado relevante como instrumento de análise e importante mecanismo para apurar probabilidade de condutas anticompetitivas e seus respectivos efeitos[4].
No referido paper da OCDE, também é mencionado o desafio da delimitação de mercado relevante em setores objetos de transformação, seja em razão de inovações tecnológicas ou pela própria regulação, como é o caso do setor de gás natural no Brasil, que nos últimos anos vem sendo objeto de reformas legais e regulatórias, alterando a sua estrutura e dinâmica, com o objetivo de promover concorrência, eficiência e liquidez no setor de gás natural, conforme proposto pelo Comitê de Promoção da Concorrência no Mercado de Gás Natural[5] e estruturado pelo novo modelo desenhado pela ANP[6].
Além disso, vale citar a orientação da OCDE sobre a necessidade da interação entre a agência reguladora com a autoridade antitruste, para melhor compreensão do setor, redução de assimetrias de informação e outras formas de colaboração na adoção de medidas de preservação e promoção da concorrência. Ressalta-se, também, o reconhecimento, no referido paper, acerca da evolução das análises do CADE na delimitação do mercado relevante no setor de gás natural, especialmente a partir do ato de concentração envolvendo a aquisição do controle da GASPETRO pela Compass Gás e Energia S.A, que antes era detido pela Petrobras[7]. No documento, essa evolução é atrelada à importante separação entre os mercados de comercialização e distribuição de gás natural[8].
Nesse sentido, vale citar que a referida operação foi objeto de análise tanto pela Superintendência Geral (“SG/CADE”) como pelo Tribunal do CADE. A SG/CADE[9] e o Conselheiro Relator definiram o mercado relevante da distribuição de gás canalizado de forma separada da Comercialização, a qual foi segmentada em dois mercados distintos:
- Comercialização para atender ao Consumidor Livre;
- Comercialização para fornecimento ao Consumidor Cativo (ou seja: Comercialização para atender as Distribuidoras de Gás Canalizado).
Por outro lado, apesar de acompanhar o Relator em suas conclusões quanto à aprovação da operação, o Conselheiro Victor Fernandes divergiu no tocante à delimitação dos mercados relevantes acima mencionados. No que se refere aos mercados de Comercialização de gás, o Conselheiro o definiu em “Comercialização Atacadista”, segmentado em dois níveis: a montante (i.e. entre produtores e importadores) e a jusante (que ocorre a partir da rede de transporte), aliás, também tratou do mercado de comercialização varejista, que consiste no fornecimento aos usuários do mercado cativo, atualmente de exclusividade das Concessionárias do serviço público de distribuição gás canalizado (Distribuidoras/CDL).
Entre as diferenças dos entendimentos acima, é importante principalmente destacar a opção de incluir as distribuidoras no lado da demanda juntamente com os consumidores livres, conforme delimitado pelo Conselheiro Victor no denominado “mercado de comercialização atacadista à jusante”, enquanto o entendimento da SG/CADE e do Conselheiro Relator seria apenas incluir os consumidores livres na demanda do mercado de comercialização, sem considerar, portanto, o volume adquirido pela Distribuidora e seu papel enquanto adquirente de gás nesse mercado.
É importante destacar que o presente artigo não tem por objeto analisar os fundamentos e motivações alcançadas no referido ato de concentração, o que poderá ser feito em oportunidades futuras. Contudo, é importante apenas mencionar que durante a análise dessa operação, os debates a respeito da dinâmica do setor, em especial sobre a comercialização de gás (se seria apenas uma atividade; um elo e/ou um mercado relevante) acabou por prejudicar, a meu ver, a adequada compreensão da comercialização, sua definição como um mercado relevante, bem como a sua dinâmica concorrencial.
Feito esse breve resumo acerca dos diferentes entendimentos recentemente adotados pelo CADE, entende-se de suma importância defender o mercado de comercialização atacadista de gás à jusante (nos termos propostos pelo Conselheiro Victor), isso porque, no atual momento e de forma geral, é possível e provável que os ofertantes atuem e rivalizem para atender tanto o consumidor livre como as distribuidoras, as quais, além de representarem a maior parcela do volume comercializado no país, desempenham significativo papel no acesso dos comercializadores ao consumidor livre, na medida que esses precisam contratar seu serviço de distribuição de gás no nível downstream para então migrarem como demandante nesse mercado de comercialização atacadista à jusante. Aliás, são vários os casos de comercializadoras que já celebraram contratos com ambos[10].
As recentes reformas do setor buscaram instituir o mercado de comercialização atacadista à jusante[11], a partir do Ponto Virtual de Negociação (“PVN”) ou “Hub” atrelado à respectiva área de capacidade de transporte- como o ambiente propício à competição entre os diferentes ofertantes (comercializadoras de produtoras, importadoras, do grupo econômico das distribuidoras e traders) para atender a demanda das CDL’s, dos consumidores livres e das distribuidoras a granel (GNL/GNC), de modo que as relações comerciais não sejam necessariamente atreladas ao fluxo físico da molécula, gerando, desse forma, liquidez, concorrência e flexibilidade, com aumento da oferta e entrada novos agentes. Por tais razões, o CNPE, através da Resolução n.03 de 2022, estabeleceu como de interesse da Política Energética Nacional que os agentes identifiquem nos contratos de comercialização o Ponto Virtual de Negociação como o ambiente de troca de titularidade do gás, conforme modelo estruturado nas reformas do setor:
Sugere-se, portanto, que o mercado relevante de comercialização atacadista à jusante seja delimitado à luz do Ponto Virtual de Negociação, adotando, inclusive, essa terminologia, de modo a evitar que esse seja confundido com outras atividades e segmentos adjacentes que também envolvem a compra e venda de gás, por exemplo: comercialização de gás não processado entre produtoras (upstream) ou o fornecimento de gás pelas Distribuidoras ao usuário cativo (downstream).
Em sua esfera geográfica, até a completa integração entre as diferentes áreas de transportes, sugere-se a segmentação do mercado conforme cada uma das áreas de capacidades de transporte, uma vez que a sua contratação (no formato de entrada e saída) é necessária para a atuação do agente em cada mercado, conforme assim delimitado pela ANP:
Reita-se que a definição do PVN como um mercado relevante permite a melhor identificação de sua dinâmica competitiva e os riscos de eventuais atos anticoncorrenciais, em especial a partir da sua integração vertical, seja com o elo upstream (comercialização atacadista à montante) como a partir do downstream (Distribuidoras Locais de Gás Canalizado).
No que se refere ao elo upstream, cita-se, como hipótese, o caso dos concorrentes da Petrobras que constantemente necessitam contratar capacidade de escoamento e processamento de suas infraestruturas à montante para então ofertarem gás junto aos consumidores livres e distribuidoras no mercado Ponto Virtual de Negociação. Sob a perspectiva concorrencial, a adequada delimitação do PVN como mercado relevante, permite avaliar riscos de eventuais estratégias para criação de custos, dificuldades e outras condutas restritivas verticalizadas a partir do elo upstream contra esses concorrentes na contratação de de gás e de acesso às suas essential facilities, prejudicando a concorrência no Ponto Virtual de Negociação.
Em relação à integração vertical entre o mercado de Ponto Virtual de Negociação com as distribuidoras de gás canalizado (monopólio natural), os riscos decorrem especialmente no caso do grupo da distribuidora também atuar como comercializadora no PVN, ou seja, concorrendo com outros comercializadores para atender a sua demanda ou a dos usuários cativos aptos para migrarem para o ambiente livre. A definição do PVN como mercado relevante independente, permite, assim, identificar quaisquer tentativas de práticas restritivas a partir do elo da distribuição, as quais devem ser efetivamente apuradas, para fins de preservar um ambiente competitivo, no qual os agentes tenham condições reais de concorrerem para atender às CDL’s e aos potenciais consumidores livres.
Por fim, importante destacar que a nova Lei do Gás (Lei Federal 14.134/2021) instituiu mecanismos importantes para preservação da concorrência nesse mercado, e, assim, evitar condutas anticompetitivas. Contudo, a aplicação dessas medidas requer a constante atuação e cooperação entre as autoridades competentes, em especial do CADE com os respectivos reguladores, à luz das boas práticas internacionais e conforme destacado pela OCDE.
[1] Disponível em: https://webadvocacy.com.br/daniela-santos/
[2] Para mais informações sobre o Latin American and Caribbean Competition: https://www.oecd.org/competition/latinamerica/2022forum/
[3] Disponível em: https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2022)12/en/pdf
[4] Nesse sentido, ver: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2010/documento-de-trabalho-n01-2010-delimitacao-de-mercado-relevante.pdf
[5] Instituído pela Resolução n.:04 de 2022 do CNPE.
[6] Disponível em: http://www.anp.gov.br/arquivos/cp/2020/cp01/cp1-2020-modelo-conceitual.pdf
[7] Ato de Concentração: 08700.004540/2021-10.
[8] Entendimento da OCDE desde os anos 2000, disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sectors/1920080.pdf
[9] Em seu parecer, a SG consignou a possibilidade da revisão desse entendimento conforme as mudanças da dinâmica do setor, nos moldes pretendidos pela regulação
[10] Nesse sentido, ver: https://epbr.com.br/abertura-do-mercado-de-gas-natural-ja-tem-dez-novos-fornecedores/
[11] Nessa linha, sugere-se o estudo da CNI sobre a organização do mercado atacadista: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/22/4d/224de293-bec6-455d-8b9f-dc5a69e30e14/id_237108_organizacao_do_mercado_atacadista_de_gas_web1.pdf