Mauro Grinberg
Precedentes são costumeiramente invocados, nas Cortes e nos tribunais administrativos, por quem os tem a seu favor e combatidos por quem os tem a seu desfavor. De qualquer sorte, exercem – ou devem exercer – grande influência nas decisões. Aqui, por força do nosso objetivo precípuo, falamos dos precedentes no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Por ora vamos nos limitar aos precedentes do próprio Cade mas em breve poderemos tratar dos precedentes judiciais e sua aplicação aos processos administrativos.
Com efeito, aplicando-se subsidiariamente o Código de Processo Civil (CPC), em decorrência da aplicação do art. 115 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC), tem-se que o caput do art. 926 estabelece que “os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery explicam, a respeito do artigo acima, cuja formulação chamam de “curiosa”: “o texto dá a entender que a jurisprudência não poderá ser alterada, pois deverá set mantida estável. Evidentemente, o sentido de estabilidade pretendido pela lei é o de que a jurisprudência uniforme não deverá ser alterada sem propósito – ou, ao menos, se espera que seja este, pois não se pode pensar em entendimentos que não sejam passíveis de alteração, tendo em vista as transformações sociais e econômicas inerentes à sociedade moderna”[1].
Essa interpretação obviamente deve ser aplicada também ao processo administrativo do Cade, embora os precedentes não tenham eficácia normativa como nos sistemas jurídicos baseados na common law. Aplica-se-lhe, todavia, o art. 926 do CPC, tendo o Cade obrigação de manter sua jurisprudência “estável, íntegra e coerente”. Embora alterações sejam possíveis, elas devem ser feitas com os devidos cuidados.
Vemos, com Daniel Mitidiero, que “precedentes são razões jurídicas necessárias e suficientes que resultam da justificação das decisões prolatadas pelas Cortes Supremas a pretexto de solucionar casos concretos e que servem para vincular o comportamento de todas as instâncias administrativas e judiciais do Estado Constitucional e orientar juridicamente a conduta dos indivíduos e da sociedade”[2]. Luiz Guilherme Marinoni, todavia, adverte: “Embora as decisões, no sistema brasileiro, troquem livremente de sinal e não respeitem os julgados das Cortes superiores, deve-se assinalar que isto constitui uma patologia ou um equívoco que, infelizmente, arraigou-se em nossa tradição jurídica” [3].
Tentando levar tais ensinamentos para a jurisprudência do Cade, este não tem a hierarquia do Poder Judiciário, já que o órgão julgador coletivo – o Plenário – constitui instância única. Ainda assim, as suas próprias decisões devem ser respeitadas nas decisões seguintes, lembrando, com Deniel Mitidiero, que “se costuma aludir ao precedente como a ratio decidendi da questão enfrentada pela Corte”[4].
E, coroando o raciocínio, estabelece o § do art. 2º, XIII, da Lei 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo – LPA) que “nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de (…) interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”. Isto nada mais é do que a obrigatoriedade de seguir os precedentes. Ou seja, em princípio é vedado ao Plenário do Cade decidir – fala-se aqui, obviamente, da razão de decidir – diferentemente do que decidiu anteriormente. Com efeito, Luiz Guilherme Marinoni diz que “não há coisa julgada sobre fatos” e que “a parte da decisão que constitui precedente é, tão somente, aquela que trata de uma questão de direito”[5].
É interessante notar que a proibição legal não veda a possibilidade da autoridade alterar seu entendimento. Todavia, para Gustavo Marinho de Carvalho, “teria o legislador infraconstitucional optado pela eficácia prospectiva pura, segundo a qual os efeitos da nova decisão valem apenas para casos futuros, ou seja, não atingem a parte envolvida, tampouco os fatos ocorridos antes da superação do precedente e que continuam a ser regidos pela interpretação anterior”[6]
O fundamento aqui é claro. O administrado, conhecendo uma decisão do Cade segundo a qual determinada postura foi permitida ou pelo menos não foi considerada como uma infração, tem o direito subjetivo de agir de acordo com a orientação emanada de tal decisão. Isto é decorrente da aplicação do princípio da segurança jurídica. O administrado não pode ser punido por ter agido, de boa-fé, da mesma forma que outro administrado agiu e tal ação não foi considerada como uma infração. Ou seja, a segurança jurídica deve prevalecer.
O observador arguto pode perguntar se o Cade é obrigado a, sempre, seguir seus precedentes e nunca mudar suas decisões. É claro que a Administração Pública pode – e deve – se adaptar a novas condições, novas ideias e novas circunstâncias econômicas e sociais. E, obviamente, a novas leis. Não podendo violar a segurança jurídica do administrado, resta saber como fazê-lo.
A contribuição que o articulista pode trazer ao debate resulta da aplicação do inciso XIV do art. 9º da LDC (que trata da competência do Plenário do Tribunal do Cade): “instruir o público sobre as formas de infração da ordem econômica”. Aqui, uma decisão do Plenário, com base no inciso II deste mesmo artigo – “decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei”, pode considerar a existência de infração apenas em tese (para não quebrar as eventuais primariedades) e não aplicar sanção. Mas nesta hipótese a decisão deve servir de parâmetro para os administrados.
Ou seja, a partir daquela decisão (que, repita-se, não resultou em caracterização de infração nem em sanção porque o administrado agiu de acordo com jurisprudência anterior) as condutas passarão a ser punidas. Observe-se, todavia, que só deverão ser punidas as condutas praticadas a partir desta decisão e não aquelas já praticadas, devendo cessar as condutas contínuas. Costuma-se encontrar subsidio legal para a modulação no § 3º do art. 927 do CPC: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”. Não devemos nos impressionar pela limitação do texto legal a determinados juízos pois o que vale é o princípio, a ideia, a decisão legislativa de proteger o interesse social e a segurança jurídica.
A limitação a determinados tribunais, como visto acima, foi eliminada pelos arts. 23 e 24 da Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), com a dada pela Lei 12.376/2010: “A decisão administrativa, controladora ou judicial, que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”; “A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”. O § único deste último artigo foi acrescentado pela Lei 13.655/2018: “Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”.
Como é possível constatar, as decisões proferidas pelo Cade podem mudar a sua própria jurisprudência desde que modulem suas decisões, de modo a não atingir situações já ocorridas no império das decisões anteriores. A modulação, para Teresa Arruda Alvim, “é, sem dúvida, figura jurídica cujo objetivo é criar segurança jurídica, sob o prisma subjetivo, i.e., protegendo a boa-fé e a confiança. Trata-se, sem dúvida, de um instituto que dá funcionalidade ao princípio”[7]. Mais adiante a mesma autora esclarece que “o tipo mais comum de modulação é o temporal. Usualmente, neste tipo de modulação retira-se a retroatividade da eficácia da decisão, ou seja, a força para alcançar o passado”[8].
Outra possível solução é a edição de normas infralegais que estabeleçam novo entendimento do Cade. Esta é, de fato, uma solução mais fácil que não demanda um artigo para sua explicação.
Desta forma, respeita-se a segurança jurídica do administrado – cuja função é, segundo Gustavo Marinho de Carvalho, “propiciar previsibilidade e estabilidade às pessoas” – e, ao mesmo tempo, permite-se a alteração da jurisprudência, tudo isso sem alteração legislativa, utilizando-se o arsenal legislativo já existente.
Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado e advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio fundador de Grinberg Cordovil
[1] “Comentários ao Código de Processo Civil”, RT, São Paulo, 2015, pág. 1832
[2] “Precedentes – da Persuasão à Vinculação”, RT, São Paulo, 2017, pág. 90
[3] “Precedentes Obrigatórios”, RT, São Paulo, 2013, pág. 106
[4] Obra e pág. citadas
[5] Obra citada, pág. 108
[6] “Precedentes Administrativos no Direito Brasileiro”, Contracorrente, São Paulo, 2015, pág. 177
[7] “Modulação”, RT, 2019, São Paulo, pág. 36
[8] Obra citada, pág. 141