Fusão ou ilusão? O futuro da concorrência no ar

Fusões, aquisições, joint-ventures, todo tipo de associação entre empresas traz como consequência a elevação de concentração em mercados.

Cristiane Alkmin J. Schmidt, Cleveland Prates e Lucia Helena Salgado[1]

É comum que essas operações passem pelo crivo do autoridade antitruste das jurisdições onde ocorrem, que tem como objetivo impedir que estes “atos de concentração econômica” sejam prejudiciais ao consumidor final. No Brasil, o responsável por proteger a concorrência e o bem-estar do brasileiro chama-se Cade.

No dia 15/01/25, um Memorando de Entendimento (MoU) foi assinado entre a Gol e Azul, sinalizando uma possível fusão. A Gol, que estava em apuros financeiros, entrou com pedido de recuperação judicial (Chapter 11 nos EUA) no início de 2024, devendo sair desta situação em maio/junho. A Azul optou por fazer uma reestruturação em sua dívida. Ou seja, as duas, que tinham dívidas de cerca de R$30 bi cada uma, estão se reorganizando financeiramente, uma vez que, operacionalmente, elas são sólidas, estáveis e apresentam margem operacional melhor até que a LATAM[2].

É fato que a pandemia teve um impacto direto sobre a saúde financeira das empresas aéreas no mundo todo, uma vez que as pessoas pararam de viajar. Por isso, vários governos deram ajuda financeira e fiscal para o setor por um tempo determinado. Não obstante, nenhum deles propôs ou apoio fusões no setor. Ao contrário, nos EUA, por exemplo, a Jetblue foi obrigada a desistir da aquisição da Spirit com AA e com a Spirit, depois da manifestação contrária de um dos órgãos americanos antitruste (o DOJ). Na Europa, a IAG (dona da Ibéria e British) foi impedida de adquirir a Air Europe. No Brasil, a sugerida operação criaria uma empresa com mais de 60% de mercado e, dadas as condições estruturais do setor brasileiro, é forçoso reconhecer que caso aprovada uma operação dessas, o consumidor seria prejudicado.

Aliás, estudo do Cade[3] de 2017 já apontava que o nível de concentração vigente no mercado de aviação comercial era preocupante. De acordo com o órgão, o setor aéreo no Brasil apresenta um conjunto de condições que limita a competição. Barreiras legais à entrada, limitação de infraestrutura em aeroportos coordenados e altos níveis de investimento para a operação, por si só, criam um ambiente oligopolizado, com elevada concentração: são três grandes empresas que dominam os principais aeroportos. Some-se a isso o fato de o setor envolver características de economia de rede, que dificultam a entrada de um competidor efetivo no curto prazo. Não por menos existe a Anac, órgão regulador, que deve dirimir ou minimizar as falhas de mercado.

Dada a elevadíssima probabilidade de exercício de poder de mercado pela nova empresa originada, qualquer concentração estrutural pode trazer sérios prejuízos ao brasileiro que viaja de avião. Logo, a única justificativa para a aprovação dessa fusão seria a comprovação irrefutável de que a “não-fusão” (contrafactual) prejudicaria ainda mais o consumidor, o que nos obrigaria a avaliar dois aspectos: (i) as eficiências geradas; e (ii) a possibilidade de uma das firmas (ou as duas) falirem.

No primeiro caso, há que se analisar de forma minuciosa se as “eficiências” sugeridas seriam cumulativamente: (1) específicas da operação: (2) verificáveis por meios razoáveis e prováveis: (3) repassadas ao consumidor; e (4) passíveis de se materializarem em menos de 2 anos. Como se percebe, os pré-requisitos não são triviais. Falar de “economia nas compras”, por exemplo, não é algo por si só aceitável, na medida que se caracterizariam apenas como economias pecuniárias, ou seja, uma disputa de margem ao longo da cadeia do setor.

Mais absurda ainda seria apresentar a defesa pela “tese da empresa falida”[4], que, pela jurisprudência americana e brasileira, precisaria passar pelos seguintes requisitos: (1) a firma (supostamente falimentar) deveria ser incapaz de resolver suas obrigações financeiras no futuro próximo; (2) ela não seria capaz de se reorganizar de forma bem-sucedida, sob o capítulo 11 da Lei Americana de falências? (3) haver a comprovação de que a empresa fez esforços sem sucesso para conseguir alternativas razoáveis de aquisição de ativos da firma falida, de forma menos danosa à competição, para manter seus ativos tangíveis e intangíveis no mercado e; (4) haver a confirmação de que sem a aquisição, os ativos da firma falida sairiam do mercado. Sendo a resposta “não” logo para o primeiro quesito, ainda que seja o mesmo para o resto, resta claro que não se trata de um caso como este.

Vale lembrar que tanto o argumento de “eficiências” quanto o da firma falida tornam-se ainda menos aceitáveis quando existe a possibilidade da recuperação das duas empresas dar-se por meio de crescimento orgânico do mercado.  O setor, em 2024, apresentou a maior taxa média de ocupação desde 2002 (de 84%), início deste registro histórico. Já o volume de passageiros teve um aumento de 5% em 2024, com relação a 2023, chegando a 93,4 milhões transportados, número próximo dos 95 milhões de 2014 (quantidade mais elevada observada até hoje).

Em suma, apesar de não haver argumentos econômicos que justifiquem esta fusão, nota-se que, desde 15/01/25 a (con)fusão está no ar!


[1] Economistas e ex-conselheiros do CADE

[2] Dados dos DREs das três empresas corroboram essa afirmação.

[3] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/mercado-de-transporte-aereo-de-passageiros-e-cargas-2017.pdf

[4] Massimo Motta. Competition Theory: theory and practice, seção 5.1.

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