Maxwell de Alencar Meneses
A vida imita a arte, e, embora não sejam uma unanimidade, as histórias do universo de histórias em quadrinhos (HQs) da DC Comics, ou Detective Comics, especialmente as do universo do Batman, um mega bilionário em uma cruzada para influenciar o mundo em uma sociedade tão corrupta e com um sistema de justiça disfuncional, revelam a verdade, principalmente no que se refere ao personagem Harvey Dent, o Two-Face (Duas-Caras, em português), um promotor de justiça que se torna criminoso e está sempre dividido, literalmente, entre um lado bonito e bom e o lado terrível e mau. O vilão já era binário ou digital.
As plataformas digitais aparentam ser assim. Atente para o curioso fato de que, por princípio, o termo digital advém de como tudo, em última instância, é compreendido pelas máquinas em termos de zeros (0), que correspondem a uma faixa de tensão elétrica de 0 a 0,8V, e uns (1), que correspondem a uma faixa de 2,0V a 5,0V. O intervalo do “centro”, entre 0,8V e 2,0V, é chamado de faixa indefinida (não confiável).
O presidente-executivo da Meta, Mark Zuckerberg, mais conhecido pelo Facebook, se mostrou de fato um ‘two-facebook‘. O comitê judiciário da Câmara dos EUA publicou uma carta da Meta em que Zuckerberg admite que cedeu a pressões do governo americano para censurar os americanos, especialmente em assuntos de interesse da administração Biden-Harris, como a história dos problemas com a justiça de Hunter Biden (ZANFER, 2024). Ou seja, uma ‘face’ de bonzinho, como plataforma livre para troca de ideias e informações, e uma segunda ‘face’ sombria que manipula conteúdos de acordo com o regime no poder, afetando a concorrência, neste caso eleitoral, cabendo questionar quais outras condutas análogas, de cerceamento e privilegiamento de conteúdos, ocorrem em outros mercados.
Mais recentemente, após o Facebook ter rotulado a foto do agora eleito presidente Trump, após a tentativa de assassinato em 13 de julho passado, como informação falsa, o próprio Zuckerberg teria ligado para Trump para se desculpar e o chamou publicamente de badass (CONKLIN, 2024). Em uma expressão regional, seria alguém de coragem e resistência. Um outro ‘two-facebook‘, face ao fato de que já havia banido Trump de suas plataformas por dois anos (WAGNER, 2024).
Aqui no Brasil, em maio do ano passado, as Big Tech publicaram alertas direcionados aos brasileiros sobre os riscos do Projeto de Lei 2.630/20, conhecido como PL das Fake News ou PL da Censura. Por isso, tornaram-se alvo de um inquérito arquivado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho deste ano, após manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o posicionamento da Polícia Federal, que teria cogitado crime de abolição violenta do Estado de Direito. A PGR indicou que a motivação das empresas teria sido ‘meramente econômica’ (CURVELLO, 2024). O advogado do Google considerou o arquivamento como resultado da constatação de que a empresa apenas deu sua opinião. Ao contrário deste artigo, que não representa a opinião de nenhuma instituição em particular, nem mesmo do autor, mas apenas uma análise de uma entre várias possíveis linhas de pensamento acerca desses fatos.
Esse poder das plataformas é tão visível, mas talvez não seja nada de realmente novo, apenas o deslocamento da capacidade de manipular a informação que sempre existe em quem detém o poder. Poder, em ciência política e sociologia, como se sabe, é a capacidade de influenciar, liderar, dominar ou, de alguma forma, impactar a vida e as ações de outros na sociedade. (MUNRO, 2023).
Pode-se dizer que, em Brasília, existem duas praças dos Três Poderes. A primeira, de âmbito federal, é um tanto incompleta — ou, ao menos, um dos poderes parece oculto, presente de forma sutil por meio das vans de uplink de TV via satélite, agora reduzidas a mochilas de transmissão (backpacks de live streaming).
Já a segunda, a Praça distrital dos Três Poderes (Praça do Buriti), revela de forma mais evidente o Poder Executivo, o Legislativo, o Judiciário e, curiosamente, um quarto poder: o da comunicação, representado pela organização fundada por Assis Chateaubriand.
Para quem achar um certo exagero essa menção ao império de Chatô, o Rei do Brasil — alcunha dada pelo biógrafo Fernando Morais a Chateaubriand — note que essa concentração de poder guarda consonância com as raízes do antitruste no Brasil. Nesse sentido, relata Cabral (2020, p. 210–211):
“No que pertine ao setor jornalístico, Agamemnon Magalhães procurou não transparecer que a lei atacaria com especial ênfase esse setor, o que havia dado ensejo às críticas de que o Decreto-Lei nº 7.666/1945 atentava contra liberdade de expressão e de imprensa. Notou-se com a “Lei Malaia” – e Agamemnon Magalhães não fazia questão de esconder – que a lei desvelava um propósito subjetivo, tendo um alvo certo: Assis Chateaubriand e os seus Diários Associados.”
Nos tempos atuais, o rei é Bezos, o dono do Washington Post, combatido por Lina Khan. Ele afirmou, em editorial[1] do seu jornal, que a credibilidade da imprensa está baixa, que os jornalistas estão entre as profissões menos confiáveis e que a percepção de viés é um problema.
Ou seja, seu poder está diluído não pelas ações do FTC, mas pela pluralidade de canais de informação concorrentes digitais. Como disse o professor de Direito de Harvard, Yochai Benkler, em seu livro A Riqueza das Redes: “A economia da informação em rede torna os indivíduos mais capazes de fazer as coisas por si mesmos e para si mesmos, além de torná-los menos suscetíveis à manipulação por outros do que eram na cultura da mídia de massa.” (BENKLER, 2006, p. 130, tradução própria[2])
De todo modo, após inovar ao não endossar a campanha de nenhum candidato à Presidência dos EUA, o dono da Amazon mostrou outra face ao participar da posse de Trump, destacando-se mais do que os políticos e juntando-se aos principais barões das plataformas digitais. Desta feita, revelam-se suas faces de influência e concorrência.
Nada de realmente novo sob o sol, algo que se pode facilmente inferir da abordagem da Profª Dra. Amanda Flávio, colunista do WebAdvocacy. Em certas ocasiões[3], a professora tratou da alardeada necessidade urgente de regulamentação específica das plataformas digitais, utilizando o recurso pedagógico da maiêutica socrática: perguntas que levam o público a perceber a verdade por conta própria ou, pelo menos, a questionar suas certezas. Algo muito mais eficaz do que simples afirmações.
Os questionamentos tangem os aspectos de logística, comunicação em massa, finanças, todos com seus respectivos alter egos modernos digitais, e conforme (EVANS; SCHMALENSEE, 2016) embora as plataformas turbinadas sejam mais poderosas do que as anteriores que estimularam o nascimento do antitruste americano, elas seguem os mesmos princípios econômicos de suas predecessoras.
Além da questão do novo ou antigo, já ilustrada pelo cenário do início do antitruste no Brasil, outras questões derivadas ou correlacionadas tornam-se patentes ao serem evocadas pela Dra. Amanda: as plataformas digitais devem ou não ser reguladas? Deve-se criar uma agência reguladora para esse fim? Trata-se de uma característica de um mundo mais complexo ou não?
Quanto à complexidade, Luhmann, tido como um dos principais estudiosos da sociologia, também elaborou questionamentos, segundo Neves e Neves (2006):
“Mas o que é complexidade? Pergunta-se Luhmann. Neste ponto, Luhmann introduz a figura do observador no sistema complexo: “Complexidade não é uma operação, não é nada que um sistema faça ou que nele ocorra, mas é um conceito de observação e de descrição (inclusive de auto-observação e auto-descrição)” (apud Luhmann, 1999: p. 136).
Em outras palavras, assim como se diz a respeito da beleza, a complexidade está nos olhos de quem a vê. De acordo com John Milton: “A mente é seu próprio lugar e, dentro de si, pode fazer um inferno do céu e um céu do inferno.” Dessa forma, o mundo pode sempre ser visto como complexo por quem o vive naquele instante, dentro do contexto de desenvolvimento cultural e científico de seu próprio tempo. Avaliar o passado como mais simples do que o presente, após os problemas terem sido enfrentados e as soluções construídas, reflete o adágio: é fácil ser engenheiro de obra pronta.
Ainda em paráfrase à sugestão proposta pela docente da UnB, busca-se responder às demais perguntas. Nesse sentido, ao avaliar a pertinência da regulação das plataformas digitais sob a ótica da destruição criativa de Schumpeter, percebe-se um forte alinhamento com a realidade atual. Um exemplo disso é a recente queda vertiginosa da Nvidia e de outros grupos poderosos ligados à inteligência artificial, impulsionada pelo surgimento out of the blue da chinesa Deep Seek. Esse fenômeno reforça a teoria do economista, segundo a qual os problemas visados pelo antitruste tendem a se dissipar naturalmente em razão da própria dinâmica do capitalismo.
Nota-se, em consonância com esse efeito Deep Seek, que o modelo regulatório que paira sobre o Brasil se baseia no DMA Europeu (AUER; MANNE; RADIC, 2023), o qual, por sua vez, tem como objetivo proteger o decadente mercado europeu contra duas faces: EUA e China (KOVACEVICH, 2022).
O cenário delineado aqui, portanto, denota que as faces de influência e concorrência das plataformas digitais vêm mimetizando eventos pretéritos, sem novidades em sua essência; meramente reformulações de falhas e condutas, sob as quais, até hoje, pairam dúvidas sobre a efetividade do antitruste em resolvê-las.
Decerto, o ferramental atual de quem quer que seja a avaliar condutas abusivas não será mais apenas máquinas de escrever e outras ferramentas, agora rudimentares, mas o conhecimento da ciência da computação em nível suficiente e equiparado de armas com os seus jurisdicionados. Talvez esse seja, de fato, o verdadeiro problema: o gap de capacitação entre a iniciativa privada e, em geral, o atraso estatal em se imbuir de conhecimentos equiparados.
[1] BEZOS, J. The hard truth: Americans don’t trust the news media. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/opinions/2024/10/28/jeff-bezos-washington-post-trust/>. Acesso em: 29 out. 2024.
[2] No original: “The networked information economy makes individuals better able to do things for and by themselves, and makes them less susceptible to manipulation by others than they were in the mass-media culture.”
[3] CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA – CADE. Seminário Internacional – Regulação e Concorrência – 2o dia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PeIbALhT_MA>. Acesso em: 20 jan. 2025.
LEGAL GROUNDS INSTITUTE. Regulação de plataformas digitais e o PL 2768: necessidade ou excesso? | Núcleo de Mercados Digitais. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=iJDvud8BOJ8>. Acesso em: 20 jan. 2025.
AUER, D.; MANNE, G. A.; RADIC, L. Jogando o Jogo da Imitação na Regulação de Mercados Digitais – Uma Análise Cautelar para o Brasil – International Center for Law & Economics. Disponível em: <https://laweconcenter.org/resources/jogando-o-jogo-da-imitacao-na-regulacao-de-mercados-digitais-uma-analise-cautelar-para-o-brasil/>. Acesso em: 31 jan. 2025.
BENKLER, Y. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. [s.l.] Yale University Press, 2006. p. 130
BEZOS, J. The hard truth: Americans don’t trust the news media. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/opinions/2024/10/28/jeff-bezos-washington-post-trust/>. Acesso em: 29 out. 2024.
CABRAL, M. A. M. A construção do antitruste no Brasil. [s.l.] Editora Singular, 2020. p. 210–211
CONKLIN, A. Trump says Mark Zuckerberg called to apologize about photo of assassination attempt. Disponível em: <https://www.foxnews.com/us/trump-says-mark-zuckerberg-called-apologize-about-photo-assassination-attempt>. Acesso em: 12 nov. 2024.
CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA – CADE. Seminário Internacional – Regulação e Concorrência – 2o dia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PeIbALhT_MA>. Acesso em: 20 jan. 2025.
CURVELLO, A. C. PL das Fake News: Moraes arquiva ação contra Google e Telegram. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/moraes-arquiva-acao-contra-google-e-telegram-por-campanha-contra-pl-das-fake-news/>. Acesso em: 7 nov. 2024.
ESCOLA SUPERIOR DO MPU. Seminário Internacional “Regulação e Concorrência no Mercado Digital 2024” – Dia 1. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OeJ3x6dcT-Y>. Acesso em: 20 jan. 2025.
EVANS, D. S.; SCHMALENSEE, R. Matchmakers : the new economics of multisided platforms. Boston, Massachusetts: Harvard Business Review Press, 2016.
FRANCE PRESSE. Lei da União Europeia que regula big techs entra em vigor; entenda. Disponível em: <https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2024/03/07/lei-da-uniao-europeia-que-regula-big-techs-entra-em-vigor-entenda.ghtml?form=MG0AV3>. Acesso em: 29 jan. 2025.
KOVACEVICH, A. Why Europe’s Digital Markets Act Will Strain Transatlantic Relations. Disponível em: <https://cepa.org/article/why-europes-digital-markets-act-will-strain-transatlantic-relations/>.
LEGAL GROUNDS INSTITUTE. Regulação de plataformas digitais e o PL 2768: necessidade ou excesso? | Núcleo de Mercados Digitais. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=iJDvud8BOJ8>. Acesso em: 20 jan. 2025.
MUNRO, A. Power | political and social science | Britannica. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/power-political-and-social-science>.
NEVES, C.; NEVES, F. O que há de complexo no mundocomplexo? Niklas Luhmann e aTeoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, v. ano 8, jan/jun 2006, n. 15, p. 182–207, 6 jan. 2006.
WAGNER, K. Trump Says Meta CEO Mark Zuckerberg Has Called Him Multiple Times Lately. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2024-08-02/trump-says-meta-s-zuckerberg-has-been-calling-him-a-lot-lately>. Acesso em: 12 nov. 2024.
ZANFER, G. Mark Zuckerberg diz que governo Biden pressionou Meta a censurar conteúdos sobre Covid-19. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/mark-zuckerberg-diz-que-governo-biden-pressionou-meta-a-censurar-conteudos-sobre-covid-19/>. Acesso em: 7 nov. 2024.
Maxwell de Alencar Meneses. Cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis. Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.
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