Lucia Helena Salgado
O DoJ (Departamento de Justiça norte-americano) anunciou no final de março de 2024 ter dado entrada em ação contra a Apple por práticas que têm conduzido à monopolização e à manutenção do monopólio.
A acusação básica é a monopolização do mercado de smartphones, com práticas que retêm os consumidores, – impedem a compatibilização com produtos, acessórios e aplicativos produzidos em outros sistemas operacionais e deterioram a comunicação e interoperabilidade com smartphones de outros fabricantes. Essas práticas tornam elevado o custo de troca por parte dos consumidores do iphone da Apple por outras marcas de smartphone.
Recentemente (2023), o DoJ entrou em outra disputa judicial, dessa feita com a Google, também pela monopolização e manutenção de monopólio do mercado de propaganda digital, enquanto o FTC (Federal Trade Commission), desde o início da administração Biden em 2021, vem questionando judicialmente aquisições tanto da Meta (dona do Facebook, Instagram e Whatsapp) quanto da Microsoft.
Essa mudança de rota radical na condução da política antitruste nos Estados Unidos, de décadas de “bigness is beautiful” para um retorno às origens do “bigness is awful” tem sofrido derrotas no Judiciário e pode vir a ser abandonada no caso do retorno de Donald Trump à Casa Branca.
Contudo, o atual caso DOJ vs. Apple guarda particularidades que vale a pena detalhar. A primeira, mais simples e circunstancialmente importante, é que a investigação sobre as práticas adotadas pela Apple para manter inexpugnável sua posição de mercado (mais de 60% do mercado norte-americano de smartfones), teve ainda em 2019, no curso da administração Trump. O fato serve como indicador da possibilidade da continuidade desse caso, mesmo com mudança do comando do governo federal, da administração democrata para a republicana.
O segundo ponto a salientar é a coincidência de temas do caso Apple com outros leading cases que marcaram a história do antitruste, a começar pelo caso Xerox passando por Kodak, Nespresso na França e Apple (na Europa e agora nos EUA)[1]. Em todos os casos, estamos falando de um modelo de negócios alicerçado sobre a fidelização dos consumidores, processo iniciado com uma inovação (de produto ou serviço) que conquista a adesão e confiança de número expressivo de consumidores, tornando o empreendimento viável no novo front de mercado. Tal adesão baseia-se na conveniência, qualidade e disponibilidade do novo bem/serviço e é reforçada pela propaganda que acentua a diferenciação daquele produto – sempre associado a uma marca – com relação a qualquer candidato a substituto.
A partir dessa base, que em organização industrial conhecemos por “a vantagem do pioneiro”, o ofertante constrói barreiras que lhe permitem cobrar preços elevados e mantê-los em patamar elevado sem preocupação de que poderia perder seu público (e com ele seu faturamento), mantendo-se protegido da concorrência pela falta de disposição de seus clientes de se aventurarem a experimentar produtos/serviços de outros ofertantes, em função das inconveniências associadas ao custo de troca.
Até aí, estamos diante de uma estratégia bem-sucedida de criação de mercado por inovação e construção (real e/ou imaginária) de diferenciação, que atende tanto aos anseios de lucratividade como aos desejos dos consumidores.
Saliente-se que novos mercados foram criados pelas inovações: máquinas reprográficas da Xerox substituíram carbonos e mimeógrafos; rolos de filmes e kits de revelação disponíveis no comercio varejista popularizaram a fotografia, antes restrita a estúdios profissionais; a máquina de café Nespresso trouxe para dentro dos lares e escritórios europeus (principalmente franceses) o requinte do café expresso italiano; por fim chegamos ao iphone, cuja inovação consistiu em reunir em um único dispositivo inovações fundamentais desenvolvidas por anos de pesquisa e desenvolvimento com financiamento público (no âmbito de universidades e do complexo industrial de defesa norte-americano): a internet, o gps, a tela de cristal líquido, dentre outras.
Todos esses produtos e serviços inovadores, ultrapassados os dois estágios iniciais já descritos, consolidaram-se adotando um modelo de negócios que vincula a oferta principal à oferta de produtos e serviços adjacentes, de extrema utilidade – muitas vezes, cruciais para a própria utilidade do produto principal. No caso Xerox, era (sobretudo, mas não somente) o toner; no caso Kodak, eram os insumos de revelação; no caso Nespresso, as cápsulas de café, e agora no caso Apple, os carregadores, fones, relógios inteligentes e aplicativos que, ou não são acessíveis a usuários em outros aparelhos (como a carteira eletrônica), ou não permitem uma conectividade de qualidade (como o aplicativo de mensagens de texto, que funciona mal com smartphones que não o iphone).
Está aí o ponto central da questão antitruste associada a esse modelo de negócios: uma vez estabelecida a dominância, com a captura e retenção de parcela expressiva do mercado – senão a totalidade dele – o impulso inovativo inicial arrefece, porque qualquer inovação com potencial disruptivo porá em risco a dominância conquistada. A empresa dominante passa a inviabilizar o surgimento de alternativas, seja impedindo a interoperabilidade, seja adquirindo rivais potenciais, eliminando seu potencial criativo.
No presente caso, é estatisticamente insignificante o número de usuários nos Estados Unidos dispostos a trocar de smartphone – e por conseguinte, de sistema operacional, de acesso a facilidades exclusivas como a Apple Wallet e de compatibilidade com smartwatches e outros acessórios – do iphone para um mais barato, pela perda de conveniência e os custos com a necessidade de aquisição de outros acessórios, o que caracteriza um quadro de clientela locked in.
A defesa já trazida à luz pela Apple é ingênua senão anacrônica: que ela não seria dominante – muito menos monopolista – pois o DoJ estaria equivocadamente considerando o mercado relevante geográfico como sendo os Estados Unidos, quando sua participação global é em torno de 20%. É nos Estados Unidos, mercado onde o Iphone foi originalmente introduzido, que o poder de mercado da Apple é exercido, e justamente as barreiras estratégicas criadas pela empresa são os elementos que inviabilizam o estabelecimento sustentável de concorrentes.
Contudo, o caso para o DoJ é para lá de complicado: levantar evidências de que o modelo de negócios da Apple além de prejudicar a curto prazo os consumidores, extraindo renda de monopólio, prejudica a dinâmica da economia norte-americana, ao arrefecer o desenvolvimento e introdução de inovações, o mecanismo que mantém a liderança tecnológica daquela economia, é tarefa para lá de desafiadora.
Por outro lado, espera-se que a Apple vá defender ao limite seu modelo de negócios, como tem feito na Europa, ao contestar na Corte Europeia decisão da Comissão que recentemente a multou em bilhões de euros pela não adoção da padronização universal de conectores em seus smartphones.
Se a “dependência de trajetória” se manifestar também neste caso, veremos uma longa batalha sem vencedores e derrotados: em algum momento um acordo será fechado, a empresa fará algumas concessões, o governo valorizará o resultado obtido e no curso da disputa, distraída pelo processo da preocupação em combater a concorrência potencial, a Apple acabará por se defrontar com rivais que encontrarão espaço para apresentar novas alternativas, novos encantos para os consumidores norte-americanos. Cenário promissor, em que se mantém vivo o impulso da inovação tecnológica.
[1] A lista complete de casos similares incluiria IBM e Microsoft, porém ambos carregam diferenciais sendo em um caso que o mercado de computadores dominado por IBM foi desconstruído pelo surgimento de tecnologia disruptiva, e no outro que a inovação representada pelo navegador de internet não ter sido introduzida pela Microsoft e sim pela rival vítima de práticas exclusionárias, a Netscape.