Eduardo Molan Gaban

A Lei Antitruste Brasileira (Lei n. 12.529/2011), em seu artigo 36, tipifica as infrações à ordem econômica e, embora as condutas ali previstas também caracterizem infrações a outras leis[1], é esta que em regra contém as sanções pecuniárias mais significativas[2], conforme artigos 37 e seguintes.

O artigo 33 da Lei Antitruste garante, ainda, uma ampla legitimação passiva na responsabilização dos agentes econômicos por condutas anticoncorrenciais e ilícitos concorrenciais de modo geral[3], ao prever que “[s]erão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, quando pelo menos uma delas praticar infração à ordem econômica”.

Assim, o texto atual admite a solidariedade entre integrantes do grupo econômico quando ao menos uma das empresas pratica infração. Caracterizada a existência de grupo econômico, no âmbito do qual determinada entidade praticou infração, seria aplicável a regra da responsabilidade solidária aos demais integrantes[4].

Para além da solidariedade do grupo econômico, a lei permite ainda que a responsabilidade pelo ilícito concorrencial seja estendida à pessoa do sócio, conforme redação do artigo 34, caput e parágrafo único:

Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A redação do parágrafo único é expressa ao estabelecer que a falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica autorizam a “desconsideração”, ou seja, a retirada do véu da personalidade jurídica para cobrança da sanção administrativa imposta pelo CADE diretamente dos sócios.

A partir desta previsão, denota-se que a mera insolvência da pessoa jurídica autoriza que se atinja o patrimônio do sócio, independentemente da necessidade de demonstração do abuso de poder ou desvio da finalidade, como originalmente preveem as teorias clássicas subjacentes ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como, por exemplo, a teoria ultra vires societatis.

Tal norma assemelha-se às hipóteses previstas no Código de Defesa do Consumidor, no Direito do Trabalho e no Direito Ambiental, às quais se aplicaria a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica[5].

E, de fato, a redação do artigo – em seu parágrafo único – contém apenas o termo “desconsideração”, sem remeter ao instituto previsto no artigo 50 do Código Civil, atualmente alterado com a edição da Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019), que adota a teoria maior, em que a responsabilização do sócio pelos débitos da pessoa jurídica somente pode ocorrer “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.

Contudo, o emprego do termo “desconsideração” pode causar certa confusão no intérprete da lei. Tanto é verdade que parcela da doutrina[6] defende que, no âmbito da Lei Antitruste, aplica-se a teoria maior da desconsideração, prevista no Código Civil, inclusive com a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código de Processo Civil (artigos 133 a 137), sob pena de violação dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.

No entanto, no caso da Lei Antitruste, em especial o parágrafo único do artigo 34, denota-se que a real intenção do legislador é garantir uma verdadeira responsabilidade subsidiária do sócio, com o redirecionamento da execução, à semelhança do Código Tributário Nacional, em seus artigos 134 e 135.

Sobretudo porque o artigo 94[7] da Lei Antitruste prevê expressamente a aplicação da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal) para cobrança da multa pecuniária aplicada pelo CADE.

Nesse sentido, ante a adoção pela Lei Antitruste de legislação específica para reger o procedimento de execução da sanção pecuniária (Lei de Execução Fiscal), resta afastada a incidência das normas do Código de Processo Civil – e, via de consequência, a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para a responsabilização da pessoa do sócio.

Trata-se de uma questão de direito positivo: a moldura normativa existente é da aplicação da norma específica em relação à norma geral nos casos de conflito (lex specialis derogat lex generali). E, uma vez que a Lei de Execução Fiscal permite a adoção de um caminho mais simplificado para o redirecionamento da execução, o Estado e o Contribuinte não estão obrigados a seguir o caminho mais tortuoso (incidente de desconsideração da personalidade jurídica) previsto no Código Civil.

No âmbito das execuções fiscais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já fixou o entendimento de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é incompatível com o procedimento da Lei n. 6.830/1980, visto que, pelo princípio da especialidade, a aplicação do Código de Processo Civil é subsidiária nos casos em que a demanda é regida por lei específica[8].

Com isso, independe de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica a pretensão da Fazenda Pública de redirecionar a execução fiscal para alcançar pessoa distinta daquela contra a qual a execução fiscal foi originariamente ajuizada, já que o artigo 4º, incisos V e VI, da Lei de Execução Fiscal explicita a possibilidade de ajuizamento da execução fiscal contra o responsável legal por dívidas, tributárias ou não, das pessoas jurídicas de direito privado e contra os sucessores a qualquer título[9].

Este entendimento se estende às execuções fiscais das sanções pecuniárias aplicadas pelo CADE, à medida que a Lei Antitruste prevê diretamente as hipóteses de redirecionamento do débito à pessoa do sócio (artigo 34, parágrafo único).

Nesta lógica, em caso de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, é desnecessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para execução da multa por ilícito concorrencial em face do sócio, que poderá ser diretamente responsabilizado, sem a necessidade de demonstração do abuso de poder ou desvio de finalidade, havendo verdadeiro caráter de responsabilidade subsidiária.

Ao fim e ao cabo, verificar-se algo semelhante ao que se passa com a natureza: a água escolhe o seu percurso de acordo com o terreno que atravessa. Isto é, embora seja defensável a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica para o caput do artigo 34, da Lei Antitruste, a previsão de seu parágrafo único torna o “terreno” mais propício à aplicação pura e simples da responsabilização subsidiária dos sócios, dispensando-se quaisquer das teorias de desconsideração da personalidade jurídica e seus conhecidos custos de transação processuais de implementação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). Recurso Especial n. 1.786.311/PR.  Min. Rel. Francisco Falcão. Brasília/DF. Data do julgamento: 15/10/2019. Data da publicação: 18/10/2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.775.269/PR. Min. Rel. Gurgel de Faria. Data do julgamento: 07/04/2020. Data da publicação: 14/04/2020

CARVALHOSA, Modesto et. al (org.). Tratado de Direito Empresarial: Direito Concorrencial. Vol. VII. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999.

FARACO, Alexandre Ditzel. Responsabilidade solidária no grupo econômico por infrações da ordem econômica. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 126-139, 2022.

GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.

TOMAZETTE, Marlon. Arts. 49-A e 50 do Código Civil com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica. In: GABAN, Eduardo Molan et. al. (org.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivim, 2020, pp. 391-416.


[1] Por exemplo, a Lei n. 8.137/1990, que previne os crimes contra a ordem econômica; o Código de Defesa do consumidor (Lei n. 8.070/1990) e a Lei de Licitações (Lei n. 14.133/2021).

[2] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 170.

[3] Ibidem, p. 175.

[4] FARACO, Alexandre Ditzel. Responsabilidade solidária no grupo econômico por infrações da ordem econômica. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 126-139, 2022.

[5] Há quem aponte três teorias para a aplicação da desconsideração no direito brasileiro: teoria maior subjetiva (fundada na fraude e no abuso do direito), teoria maior objetiva (fundada na confusão patrimonial) e teoria menor (fundada no mero inadimplemento da obrigação). Nesse sentido: COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 44.

[6] Neste sentido: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. Volume VII – Direito Concorrencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 94-95; e TOMAZETTE, Marlon. Arts. 49-A e 50 do Código Civil com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica. In: GABAN, Eduardo Molan et. al. (org.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivim, 2020, pp. 391-416.

[7] Art. 94, Lei n. 12.529/2011. A execução que tenha por objeto exclusivamente a cobrança de multa pecuniária será feita de acordo com o disposto na Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). Recurso Especial n. 1.786.311/PR.  Min. Rel. Francisco Falcão. Brasília/DF. Data do julgamento: 15/10/2019. Data da publicação: 18/10/2019.

[9] O entendimento da 1ª Turma do STJ é que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica será necessária apenas nas hipóteses em que não haja previsão legal autorizando o redirecionamento para pessoa diversa da qual a execução foi originariamente ajuizada. (STJ, EREsp n. 1.775.269/PR, Min. Rel. Gurgel de Faria. Data do julgamento: 07/04/2020. Data da publicação: 14/04/2020).

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