Vanessa Vilela Berbel

Estudo da ONU, publicado em parceria entre a We Are Social e a Hootsuite, revelou que, em 2019, 53,6% da população de todo o mundo possuía acesso à internet. O estudo apontava, contudo, desigualdades de gênero no acesso ao mundo digital, estimando-se que a proporção de todas as mulheres do globo que usavam a internet era de 48%, contra 58% de todos os homens, à exceção da América Latina em que há quase paridade de gênero neste quesito.

Ainda em 2019, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que 82,7% dos domicílios nacionais possuíam acesso à internet, sendo que, destes, 99,5% valem-se de dispositivos móveis (smartfones). Com um celular na mão e a internet à disposição, não mais se pode controlar as expectativas de receptores e emissores nas trocas comunicativas, como se fazia nas interações face a face.

Antes dos meios de difusão, os emissores eram facilmente identificados. Difamar, humilhar ou injuriar alguém demandava que o (a) agressor(a) o fizesse cara a cara com o(a) agredido(a). Agora, no mundo digital, as faces se transmutam em perfis, muitos deles falsos, mas, ainda assim, determináveis e rasteáveis.

A pandemia do COVID-19 acelerou ainda mais a inclusão digital da população mundial e a redução da desigualdade de gênero ao acesso à internet; computa-se, em 2021, mais de 4,66 bilhões de usuários da Internet em todo o globo, ou seja, 59,5% da população mundial, dos quais 49,6% são mulheres e 50,4% homens.

Destes incluídos no mundo digital, 4,20 bilhões são também usuários de mídia sociais, o que equivale a mais de 53% da população total do mundo, sendo facebook, youtube e whatsapp as três plataformas mais utilizadas.

Calcula-se, em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários das mídias sociais a cada dia, os quais dedicarão de 51 minutos (média do Japão) a 4 horas e 5 minutos (média das Filipinas) diários ao uso das ferramentas digitais.

No Brasil, o usuário médio gasta 3 horas e 42 minutos em mídias sociais digitais, o que equivale a mais de um dia inteiro na semana. Se, em regra, a maioria se vale da ferramenta para conhecer conteúdos e interagir com famílias e amigos, alguns apropriam-se da facilidade para ataques de ódio, pelo que são chamados de “haters”.

Em 2021, no Brasil, são mais de 213.3 milhões de usuários da internet, em sua maioria mulheres (50.9%), com média de idade de 33.7 anos e alfabetizadas. Destes, 150 milhões são também usuários de mídias sociais, o que equivale a 70,3% da população brasileira, dos quais 130 milhões valem-se do Facebook, sendo 53,5% mulheres e 46,5% homens. Essas mulheres, maioria no mercado de consumido dos serviços das mídias sociais necessitam ter o direito à não violência também neste espaço de socialização humana.

Infelizmente, no mundo físico, pesquisa do Banco Mundial apontou que, em 2019, 35% da população feminina mundial sofreu violência psicológica e/ou física, 7% sofreu violência sexual e 200 milhões de mulheres sofreram mutilação genital. Em 2021, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) , uma a cada três mulheres sofreu violência, ou seja, 736 milhões de mulheres são submetidas à violência pelo simples fato de ser mulher.

Uma característica da violência de gênero é que ela não conhece fronteiras sociais ou econômicas e afeta mulheres e meninas de todas as origens socioeconômicas, pelo que as agressões sofridas no mundo físico veem sendo repercutidas no mundo digital; são ataques que objetificam a mulher, seu corpo, sua imagem e ameaçam-lhe a integridade física e psíquica.

Um estudo de 2018 realizado pela União Interparlamentar em 45 países europeus descobriu que mais da metade das mulheres parlamentares e funcionários parlamentares entrevistados (58%) sofreram ataques sexistas nas redes sociais, incluindo repetidos insultos misóginos e incitação ao ódio, fotomontagens de nudez e pornografia. Metade dos entrevistados (47%) sofreram ameaças de morte ou estupro. Na maioria dos casos (76%), os perpetradores eram homens anônimos (União Interparlamentar, 2018).

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Ligue 180) revelam mais de 5.520 denúncias de violência praticadas contra pessoas do sexo feminino e ocorridas no âmbito da internet, em sua maioria contra a integridade psíquica da vítima, tais como ameaças, constrangimentos, torturas psíquicas, calunias, injúrias e difamações. Destas denúncias de violência contra a mulher no âmbito digital, 78,14% foram praticadas por agressores do sexo masculino.

Sabe-se que as interações nas redes sociais são impulsionadas a partir de algoritmos capazes de compreender padrões de comportamentos dos usuários. São os algoritmos imunes à propagação de misoginias e conteúdos de ódio? Segundo Francis Haugen, não.

Haugen, ex-funcionária do Facebook, engenheira da equipe de integridade cívica, em 03 de outubro deste ano (2021) rompeu o anonimato em entrevista ao “Wall Street Journal” e “CBS News” e acusou a rede social de promover conteúdo nocivo e não fazer nada a respeito daqueles que os disseminam.

Na mesma toada, Marianna Springs, repórter da BBC, em matéria intitulada “Recebo xingamentos e ameaças online – por que é tão difícil combater isso” (Estado de Minas, 20/10/2021) relatou que, após receber diariamente mensagens abusivas nas redes sociais carregadas de expressões de ódio em referências a estupros e atos sexuais, decidiu criar um perfil fake de “trollagem” nas cinco redes sociais mais populares do mundo para ver se elas promoviam conteúdos misóginos. Para sua surpresa, a conta falsa recebeu recomendações de conteúdos de ódio contra mulheres, inclusive envolvendo violência sexual, o que demonstra a ausência de uma efetiva autorregulação das plataformas.

Entende-se, a partir destes fatos, a importância da existência de autorregulação e controle interno das mídias sociais para a tomada de iniciativas imediatas à suspensão das agressões (retirada do conteúdo e bloqueio do perfil), a partir da construção de um due dilligence obligations que permita remediar danos decorrentes de publicações indevidas sem ferir a liberdade de expressão e que, ao mesmo tempo, permita a rápida apuração e encaminhamento dos conteúdos aos órgãos da rede de enfrentamento à violência para punição efetiva dos agressores.

Contudo, a autorregulação não dispensa o controle externo, a partir de uma metarregulação, ou, em outros termos, uma “autorregulação regulada”, como explica Lucas Amato em seu artigo “Fake News: regulação ou metarregulação?” (2020). Nestes termos, caberá ao Estado cobrar das mídias sociais o desenvolvimento de mecanismos de responsabilização e os parâmetros de sancionamento necessários.

Portanto, compete ao Estado traçar as diretrizes gerais para viabilizar a construção normativa própria das mídias sociais quanto aos procedimentos internos de abertura de canais de reclamação e monitoramento de denúncias, desenvolvimento de procedimentos para a suspensão de contas inautênticas e suspensão das atividades de usuários que descumpram seus regramentos; todavia, ao mesmo tempo, deve instituir regras jurídicas claras quanto ao descumprimento destes deveres de fiscalização interna e vigilância, impondo a responsabilização destes fornecedores em caso de desídia no controle interno das práticas de integridade cívica e do encaminhamento dos casos delitivos às autoridades responsáveis pela rede de enfrentamento à violência.

Fontes:

AMATO. Lucas Fucci. Fake News: regulação ou metarregulação?. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 58, n. 230, p. 29-53 abr./jun., 2021

BRASIL. Ministério das Comunicações. Notícia: Pesquisa mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet — Português (Brasil) (www.gov.br), disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet, de 14.04.2021. Acesso em 24.10.2021

Inter-Parliamentary Union, 2018. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/gender-equality-index-2020-report/abbreviations?lang=nl. Acesso em 24.10.2021

WE ARE SOCIAL AND HOOTSUITE. Digital 2021: Global Overview Report. Disponível em: https://wearesocial-net.s3-eu-west-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/common/reports/digital-2021/digital-2021-global.pdf. Acesso em 24.10.2021

THE WORLD BANK. Gender-Based Violence (Violence Against Women and Girls) (worldbank.org). Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/socialsustainability/brief/violence-against-women-and-girls. Acesso em 24.10.2021

OMS e PNUD. Global, regional and national estimates for intimate partner violence against women and global and regional estimates for non-partner sexual violence against women, 2021. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devastadoramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia. Acesso em 24.10.2021

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