No dia 26 de outubro de 2022, a Superintendência-Geral do CADE decidiu pelo arquivamento de dois procedimentos administrativos instaurados para apurar possível infração de gun-jumping envolvendo duas diferentes operações de M&A de venda de ações do Cruzeiro Esporte Clube SAF e da Botafogo SAF. A justificativa para ambos os arquivamentos foi a mesma: os grupos econômicos envolvidos nas operações das Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) não atingiram os critérios mínimos de faturamento estipulados no art. 88 da Lei n. 12.529/2011[1]. Para se entender melhor esses casos, bem como o que estava em jogo, os riscos e os procedimentos dessas operações, façamos um overview sobre o tema.
Merger and Acquisition (M&A) é uma expressão da língua inglesa cuja tradução literal seria “fusão e aquisição”.Entretanto, no direito norte-americano, merger corresponderia ao instituto que aqui conhecemos como incorporação, previsto no art. 227 da LSA. Por outro lado, acquisition seria um gênero de operações societárias que envolvem transferência de propriedade[2]. Na prática, as pessoas que atuam ou estão diretamente envolvidas em processos de M&A utilizam essa sigla como um gênero de operações de investimento envolvendo participações societárias. Esses processos de M&A, que já se transformou em um mercado contendo agentes e empresas especializadas nessas atividades, movimentaram no Brasil cerca de R$ 595,56 bilhões em 2021[3].
Nessas operações, geralmente estão diretamente envolvidos o comprador (das ações, quotas ou ativos), vendedor (das respectivas ações, quotas ou ativos) e a empresa-alvo (na qual o vendedor detém participação societária). Outros agentes podem estar envolvidos, como companhias de seguro[4] e bancos de investimento[5].
Geralmente, as partes objetivam com um M&A a ampliação de seu portifólio, sua consolidação no mercado e/ou obtenção de ganhos de sinergia. É claro que as partes podem ter outros objetivos, como a obtenção de uma dada tecnologia.
Importante destacar que não existe um único tipo de operação de M&A, mas sim diversos, como fusão (art. 228 da LSA e art. 1.119 do CC), incorporação de ações (art. 252 da LSA), aquisição de participação societária, joint venture, cisão (art. 229 da LSA), incorporação (art. 227 da LSA e art. 1.116 do CC) e drop down.
Existem outros tipos de operações da M&A muito comuns, como a transformação do tipo societário (art. 1.113 do CC) e trespasse (art. 1146 do CC). Entretanto, as operações de M&A não precisam estar tipificadas em uma legislação, pois se encontram dentro do ramo do direito privado onde vigora o princípio da licitude dos contratos atípicos (art. 425 do CC) e, especificamente no direito comercial, o direito dos acionistas na livre circulação de suas ações[6].
No dia a dia do M&A, cada operação é única, pois existem particularidades de cada mercado e de cada uma das partes envolvidas. Em que pese essas particularidades, existe um certo “processo de M&A”[7]. Esse processo, também chamado de “arte do M&A” em homenagem a um dos clássicos livros da matéria, geralmente envolve: prospecção da empresa-alvo para verificar sua rentabilidade e função estratégica; celebração do Protocolo Antitruste e/ou do Non Disclosure Agreement para regrar o troca de informações sensíveis bem assim proteger a confidencialidade do M&A na fase da due diligence[8]; celebração da Letter of Intent, Memorandum of Understanding ou Term-Sheet, quedefinem o preço da operação, seu objeto, condições para operação e, por vezes, regras de não-concorrência, não-aliciamento e outras obrigações laterais, bem como passos seguintes, como a realização de due diligence e do contrato definitivo; realização da due diligence sobre a empresa-alvo e seus respectivos sócios a fim de identificar os ativos, riscos, passivos, contingências e outros dados relevantes que possam impactar a operação; celebração do contrato definitivo, o qual, de forma definitiva e vinculante, prevê as partes, regras de interpretação, objeto, preço, condições precedentes, declarações e garantias, indenizações, obrigações acessórias, hipóteses de rescisão, solução de controvérsias e outros temas; fechamento da operação (closing), no qual há o pagamento do preço pelo comprador e a transferência de propriedade do objeto da operação pelo vendedor, após cumpridas as condições precedentes; integração das sociedades, ou seja, momento pós-fechamento no qual, além da integração da cultura da sociedade investidora e investida, são nomeados os novos diretores e/ou os membros do Conselho de Administração da empresa alvo, caso aplicável.
Atualmente e graças a Lei nº 14.193/2021 (Lei da SAF), essa arte amplia-se para operações envolvendo as SAF. Trata-se de companhia cuja atividade principal consiste na prática de futebol, feminino e masculino, em competição profissional (art. 1º da Lei nº 14.193/2021 – Lei da SAF).
São diversos os motivos que levaram os legisladores a criarem esse tipo societário. Dentre esses motivos, podemos destacar: gestão pouco profissional dos clubes; elevado endividamento e baixa receita, especialmente pós-pandemia da COVID-19; predominância do formato associativo sem fins lucrativos nos clubes motivado por interesses de seus dirigentes e para benefícios tributários, que, por consequência, inviabiliza responsabilização desses dirigentes, limita as formas de financiamento junto ao público, não gera transparência e não possui acesso à recuperação judicial ou extrajudicial em razão deste tipo societário[9].
Esses motivos, embora não sejam exaustivos e definitivos, levaram à criação da figura societária da SAF pela Lei da SAF, a qual inovou, resumidamente, nos seguintes aspectos:
Em que pese o art. 11 da Lei nº 8.672/1993 (Lei Zico) e o art. 27, § 9º da Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé) já autorizarem a transformação dos clubes em sociedades empresárias, poucos clubes realizaram essa transformação até a chegada da Lei da SAF.Com 1 ano de vigência, 24 clubes já se transformaram em SAF e muitos ainda buscam essa transformação[12].
Grandes clubes, como Cruzeiro, Botafogo e Club de Regatas Vasco da Gama (Vasco), já se tornaram SAF. O principal motivo foi por necessidade de investimentos e pagamento de dívidas. Entretanto, a grande maioria das transformações em SAF foram realizadas por pequenos e médios clubes[13].
Temos conhecimento de quatro operações envolvendo SAFs já realizadas em pouco mais de 1 ano de vigência da Lei. A operação entre Vasco e 777 Partners, na qual esta adquiriu 70% das ações do Vasco pelo preço de até R$ 700 milhões[14]. A operação entre Cruzeiro e Ronaldo Luis Nazário de Lima, mais conhecido como Ronaldo Fenômeno, que adquiriu 90% das ações do Cruzeiro pelo preço de R$ 400 milhões[15]. A operação entre Botafogo e John Textor, em que foi realizada compra de 90% das ações do Botafogo por John Textor pelo preço que pode ultrapassar R$ 1 bilhão, considerando os aportes futuros[16]. Por fim, a mais recente operação, porém pendente de fechamento, foi celebrada entre o Esporte Clube Bahia e City Football Group, na qual o grupo se comprometeu a aportar R$ 1 bilhão em até 15 anos mediante a aquisição de 90% das ações do clube[17].
Nessas operações envolvendo SAF, certos temas são, e devem merecer, especial atenção dos investidores e das sociedades investidas, por exemplo:
Um tema importante que não tem sido dada a merecida atenção nas recentes operações realizadas envolvendo SAF diz respeito à necessidade de submissão do ato de concentração ao CADE quando atingido os critérios de faturamento das partes e/ou de seus grupos econômicos (art. 88 da Lei nº 12.529/2011). O CADE notificou o Cruzeiro, Vasco e Botafogo para obter maiores informações sobre as operações realizadas por eles e, conforme mencionado acima, houve o arquivamento dos procedimentos envolvendo os M&A do Cruzeiro e do Botafogo
O presidente do CADE, Alexandre Cordeiro Macedo, e Chefe de assessoria técnica da presidência do CADE, Dario da Silva Oliveira Neto, já se manifestaram publicamente sobre a necessidade de submissão dessas operações ao CADE quando atingido o critério de faturamento, especialmente para se analisar as possíveis restrições verticais dessas operações, pois dificilmente um M&A envolvendo SAF implicará sobreposição horizontal, já que a Lei nº 14.193/2021 veda que um agente possua controle sobre duas ou mais SAF.[22] De todo modo, na história do CADE, nunca houve uma reprovação justificada exclusivamente por restrições verticais que a operação poderia originar.
Por fim, importante destacar que algumas regras na Lei da SAF e na Lei Pelé, que não foram ainda revogadas, podem travar e/ou desincentivar IPOs de SAF, como 1) o controlador de uma SAF não pode ser controlador de outra SAF (art. 4, caput da Lei da SAF), 2) o acionista com mais de 10% de participação em uma SAF, se for acionista em outra SAF, perde seu direito de voto na assembleia de ambas (art. 4, § único da Lei da SAF) e 3) o acionista de uma SAF não pode ser acionista, simultaneamente, de outra SAF disputante da mesma competição (art. 27-A da Lei Pelé).
O mercado europeu de futebol, que é o mercado mais desenvolvido nesse âmbito, não possui restrições desse tipo. Vários times europeus (p. ex.: Manchest United, Borussia Dortmund, Benfica, Porto, Sporting, Roma, Lazio, Juventus e Ajax) estão listados em diferentes bolsas de valores (p. ex.: New York Stock Exchange, Bolsa Italiana, Bolsa de Frankfurt, Bolsa de Londres, Bolsa de Amsterdam, Euronext Lisboa), sendo que existem times que possuem uma estrutura societária bem complexa. Por exemplo, o Estatuto Social (Articles of Incorporation) do Manchester United está registrado nas Ilhas Cayman, com ações negociadas na NYSE, mas é um time de futebol inglês.
Portanto, é inegável o fato de que a Lei da SAF inovou e fortaleceu o mercado brasileiro de futebol, deixando-o mais competitivo e atraente a investidores nacionais e estrangeiros. Nesse sentido, operações da M&A serão, e já estão sendo, os melhores meios para captação desses investimentos. Entretanto, sendo operações que sequer uma vez foram analisadas pelo CADE, é preciso uma atenção especial sobre esse tema, evitando e/ou mitigando os riscos concorrenciais.
[1] Para acesso à íntegra da notícia, veja: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/cade-arquiva-procedimentos-referentes-a-investigacoes-sobre-as-aquisicoes-das-saf-do-botafogo-e-do-cruzeiro. Acesso em: 27/10/2022.
[2] REED, S. F.; LAJOUX, A. R.; NESVOLD, H. P. The Art. Of M&A: A Merger Acqusition Buyout Guide. 4º Ed. [S. l.]: McGrawHill, 2007, p. 4.
[3] Veja o Relatório Anual do Transactional Track Record (TTR) sobre o mercado transacional brasileiro referente ao ano de 2021, que considerou somente as operações que tiveram seus preços divulgados: https://blog.ttrecord.com/relatorio-anual-sobre-o-mercado-transacional-brasileiro-2021/. Acesso em: 18 out. 2022.
[4] As companhias de seguro podem estar envolvidas para garantir as contingências de responsabilidade do vendedor ou do comprador que surgirem pós-fechamento da operação, ou até mesmo para garantir o pagamento de multa pela quebra de uma declaração ou garantia do vendedor. Essa prática é recente e, por isso, ainda não é muito comum no Brasil, ao contrário do que ocorre no mercado de M&A nos EUA. Veja notícia sobre o tema: http://riscosegurobrasil.com/editorias/seguro-de-fusoes-e-aquisicoes-ganha-forca-e-chega-ao-brasil/. Acesso em: 18 out. 2022
[5] Os bancos de investimento podem se envolver em processos de M&A como financiador da operação, muitas vezes concedendo crédito ao comprador para realizar o pagamento preço da operação, ou até mesmo concedendo crédito ao vendedor para quitar dívidas da empresa-alvo que o comprador não deseja assumir pós-fechamento da operação.
[6] COMPARATO, Fábio K.; FILHO, Calixto Salomão. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 6 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2014, § 46. COELHO, Fábio Ulhoa. Novo Manual de Direito Comercial. 31 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 78.
[7] REED, S. F.; LAJOUX, A. R.; NESVOLD, H. P. Op. Cit., p. 9.
[8] Importante destacar que o Protocolo Antitruste, particularmente, visa evitar (ou mitigar) riscos concorrenciais, como gun-jumping ou troca indevida de informações concorrencialmente sensíveis anteriormente à aprovação do CADE, regrando de forma mais minuciosa a forma de compartilhamento de informações entre as partes durante o processo de M&A.
[9] Veja também os motivos mencionados no Parecer nº 129, de 2021, do senador Carlos Portinho sobre o projeto de lei que foi convertida na Lei da SAF: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8979014&ts=1634829038417&disposition=inline. Acesso em 18 out. 2022.
[10] Para uma análise sobre as debêntures-fut, veja: https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/353427/a-debenture-fut-criada-pela-lei-rodrigo-pacheco. Acesso em: 18 out. 2022.
[11] Recente decisão do TST confirmou o entendimento de que esse Regime só pode ser concedido a clubes que se transformarem em SAF. Veja notícia: https://oglobo.globo.com/blogs/panorama-esportivo/post/2022/09/tst-decide-que-regime-centralizado-de-execucoes-so-pode-ser-concedido-a-clubes-que-se-transformarem-em-saf.ghtml. Acesso em: 19 out. 2022.
[12] Veja notícia nesse sentido: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2022/08/11/apos-um-ano-de-lei-brasil-ja-tem-24-clubes-saf-e-ha-previsao-de-expansao.htm. Acesso em: 19 out. 2022.
[13] Veja matéria: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/modelo-de-saf-se-torna-atraente-para-clubes-menores-no-futebol-brasileiro,93109e139b0ef3856b4b5e00247ff740dqx5dllh.html. Acesso em: 19 out. 2022
[14] Veja matéria: https://www.lance.com.br/vasco/transacao-entre-vasco-e-777-partners-e-concluida-e-empresa-transfere-a-saf-aporte-de-r-120-milhoes.html. Acesso em: 21 out. 2022.
[15] Veja matéria: https://exame.com/negocios/ronaldo-oficializa-compra-de-90-da-saf-do-cruzeiro/. Acesso em: 21 out. 2022.
[16] Veja matéria: https://www.fogaonet.com/noticias-do-botafogo/bloomberg-botafogo-comprado-john-textor-mais-1-8-bilhao/. Acesso em: 21 out. 2022.
[17] Veja matéria: https://ge.globo.com/ba/futebol/times/bahia/noticia/2022/10/14/prazo-investimento-e-governanca-veja-detalhes-da-proposta-do-grupo-city-para-a-saf-do-bahia.ghtml. Acesso em: 21 out. 2022.
[18] Para uma análise sobre a diferença entre direito de imagem e direito de arena, veja: https://www.tst.jus.br/-/entenda-as-diferencas-entre-direito-de-arena-e-direito-de-imagem. Acesso em: 21 out. 2022.
[19] Sobre o tema, veja-se: https://trivela.com.br/copa-do-mundo/como-comecou-o-fifagate-maior-escandalo-da-historia-da-fifa/
[20] O caso Watergate foi um escândalo político ocorrido em meados de 1972 nos Estados Unidos cujas investigações posteriores culminaram com a renúncia, em agosto de 1974, do presidente Richard Nixon, do Partido Republicano. “Watergate”, de certo modo, tornou-se um caso paradigmático de corrupção. No total, cerca de 69 pessoas foram indiciadas, com 48 delas — a maioria oficiais do governo Nixon — sendo condenadas pela justiça norte-americana.
[21] Para informações sobre o tema, veja: https://ge.globo.com/blogs/bastidores-fc/post/2020/05/27/cinco-anos-atras-primeiras-prisoes-do-fifagate-comecaram-a-mudar-o-futebol.ghtml. Acesso em: 21 out. 2022.
[22] Veja o artigo de opinião das autoridades do CADE: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/08/fusao-e-aquisicao-as-safs-devem-pedir-autorizacao-previa-ao-cade.shtml. Acesso em: 21 out. 2022.
EDUARDO GABAN MOLAN. Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor Doutor de Direito Econômico nos programas de pós-graduação da FDRP/USP, PUC/PR e UEL. Diretor-Presidente do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (IBCI – www.ibci.com.br). Visiting Fulbright Scholar at the New York University (2010-2011). Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Concorrência e Inovação da PUC/SP. sócio do escritório de advocacia de Nishioka & Gaban Advogados.
GUILHERME DOS SANTOS. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Advogado associado do escritório de advocacia Nishioka & Gaban Advogados.
Obs.Clique no artigo e interaga com com o professor Eduardo Molan Gaban.
EDUARDO MOLAN GABAN. O Professor Doutor de Direito Econômico e Direito Penal Econômico nos programas de pós-graduação da FDRP/USP e PUC-PR, Diretor do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação – IBCI. Líder do Núcleo de Pesquisa em Concorrência e Inovação da PUC-SP e sócio de Nishioka & Gaban Advogados publicará mensalmente artigos de relevante interesse em suas áreas de pesquisa e atuação. Contato: gaban@nglaw.com.br
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