Notícias do Norte: as recentes batalhas do antitruste nos Estados Unidos
Lucia Helena Salgado
Nos Estados Unidos dos anos Joe Biden, a FTC (Federal Trade Commission), sob a condução de Lina Khan, vem procurando resgatar o espírito original do antitruste – a defesa do processo concorrencial, combatendo a concentração do poder econômico. A agenda de trabalho da autoridade incorpora hoje a reflexão de professores de Economia e Direito – como Fiona Scott-Morton, Carl Shapiro, Robert Pitofsky e Tim Wu – que há anos vêm apontando as falácias da doutrina borkiana que há quatro décadas domina as decisões antitruste no Judiciário estadunidense.
Em estudos acadêmicos, debates públicos e investigações protagonizadas pelo Congresso, esses professores vêm alertando há tempos: é preciso retornar às origens do antitruste na América, quando há um século se percebeu que a onda de concentração e conglomeração industrial corroía as bases da democracia e os valores do próprio capitalismo: a liberdade de empreender, de escolher, de deter propriedade.
O lendário Juiz Hand, integrante da Suprema Corte norte-americana na primeira metade do século XX, definiu – em uma das clássicas decisões da Corte, o caso Alcoa – o espírito da legislação antitruste: “Nós temos falado apenas das razões econômicas que proíbem o monopólio; mas como já indicamos, há outras baseadas na crença de que grandes consolidações industriais são inerentemente indesejáveis, à parte os resultados econômicos. Nos debates no Congresso, o próprio Senador Sherman (…) mostrou que entre os propósitos do Congresso em 1890 estavam o desejo de pôr um fim às grandes agregações de capital por força da vulnerabilidade do indivíduo diante delas.” Essa lição perdeu-se com o tempo, mas vem sendo resgatada.
O programa posto em marcha pelo FTC a partir de 2021 é tão ambicioso quanto arriscado, visto que esbarra em dois obstáculos poderosos: um Judiciário predominantemente composto por juízes treinados na doutrina de Chicago e o prazo muito curto – a princípio um mandato de quatro anos – para retomar a rota da defesa do processo concorrencial, após décadas de desvio.
Ao contestar aquisições do grupo Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), da Microsoft e práticas adotadas pela Amazon, Lina Khan e equipe demonstram que não se intimidam com o tamanho do desafio que enfrentam; assim como diante de uma super maioria ultraconservadora na Suprema Corte disposta a rever avanços civilizatórios, a minoria progressista tem proferido votos dissidentes que ficarão registrados na História, os esforços do FTC para conter a super dominância das Big Tech, mesmo que não alcancem sucesso, são já estímulos à consciência crítica.
Até o momento, já transcorrida a metade do mandato de Joe Biden e, por conseguinte, de Lina Khan à frente da FTC, três contestações a práticas e aquisições das Big Tech foram apresentadas ao Judiciário, vejamos cada uma delas.
Ainda em 2021, a FTC apresentou denúncia contra a Facebook Inc. (agora Meta Platforms Inc.), de que a empresa vem mantendo o monopólio nas redes sociais por anos de conduta anticompetitiva. A denúncia alegou que a Facebook vem se engajando em sistemática estratégia de eliminação da concorrência por meio da aquisição de rivais em ascensão, como o Instagram em 2012 e a aquisição em 2016 do aplicativo de mensagens WhatsApp e por meio da imposição de condições anticompetitivas a desenvolvedores de softwares para afastar ameaças a seu monopólio.
A denúncia foi rejeitada ainda em primeira instância, pois de acordo com o despacho do juiz responsável, a FTC não havia demonstrado a condição de monopolista da Facebook.
Em paralelo à denúncia da FTC contra a Facebook Inc., em dezembro de 2020, 48 estados e territórios norte-americanos liderados pelo estado de Nova York haviam feito idêntica denúncia contra a companhia, centrando nas aquisições de Instagram e WhatsApp. A alegação havia sido que Facebook/Meta monopolizaria o mercado de mídias sociais por meio de um esquema de “buy or bury” (comprar ou enterrar) suas rivais. A ação coletiva foi negada em 1ª instância em junho de 2021 – entendendo o juiz que as promotorias estaduais levaram tempo demais, indevidamente, para apresentar a queixa –, e em abril deste ano, um painel de três juízes do Tribunal de Recursos do Circuito do Distrito de Columbia confirmou a rejeição da ação.
O motivo legal arguido no caso da denúncia pelas promotorias não se aplica ao governo federal (FTC), que ainda aguarda a decisão de 2ª instância na rejeição da ação.
A despeito do baque inicial, a FTC persiste no cumprimento de sua agenda, tendo interposto duas ações em junho último, respectivamente contra a Microsoft Inc. e a Amazon.
A ação contra a Microsoft é uma clássica petição de bloqueio de aquisição, com pedido de liminar para suspender os efeitos da aquisição da Activision Blizzard em dezembro de 2022. A aquisição é um passo estratégico para a Microsoft manter sua posição no mercado relevante de jogos eletrônicos. O acesso a jogos apresenta crescimento mais expressivo através de aparelhos celulares, não mais por meio de computadores e consoles, onde se consolidou a posição de Microsoft por meio de sua plataforma Xbox. A empresa, contudo, não vinha se mostrando capaz de desenvolver programas para serem rodados em celulares, de onde o interesse na Activision Blizzard, produtora de campeões globais como Call of Duty e OverWatch.
O pedido de bloqueio da operação pauta-se na teoria do dano do fechamento de mercado a concorrente, diante das condições e incentivos para que a Microsoft restrinja – ou mesmo bloqueie – o acesso de Sony e Nintendo, suas rivais no mercado de jogos eletrônicos, aos jogos mais populares entre os usuários. A Microsoft chegou a manifestar intenção de manter o acesso da Sony aos jogos, mas a preocupação persistiu, dado que o compromisso se restringiria às atuais, não abrangendo futuras, versões dos jogos. Ademais, a conduta de exclusão já foi adotada pela Microsoft por ocasião da recente compra da ZeniMax/Bethesda SoftWorks, quando a adquirente tornou os também populares jogos Redfall e Starfield exclusivos da plataforma XBox, além do jogo Indiana Jones, ainda a ser lançado em 2023.
No Reino Unido a operação de aquisição da SoftWorks foi bloqueada, decisão que a Microsoft segue contestando, enquanto na União Europeia a empresa obteve autorização para seguir com a operação.
No entanto, a FTC enfrentou nova derrota na sexta-feira dia 15 de julho, tendo seu pedido de suspensão da operação de compra (temporary restrainct order and injunction) negada pelo 9º Circuito do Tribunal de Apelações.
Pavimentando seu caminho para a conclusão da aquisição, cujo prazo acordado é 18 de julho próximo, a Microsoft anunciou no dia seguinte à rejeição da suspensão da operação nos Estados Unidos, ter firmado com a Sony acordo com validade de dez anos. Em mensagem pelo Twitter, o responsável pela divisão de jogos da Microsoft deu notícia de que “a Microsoft e a PlayStation [Sony] assinaram acordo vinculativo para manter Call of Duty no PlayStation após a aquisição da Activision Blizzard.”
A decisão da CMA (Competition and Market Authority), autoridade em Competição e Mercados britânica será revista pelo Tribunal de Apelações em 17 de julho, véspera do fechamento da operação; o recente anúncio da Microsoft sobre seu acordo com a Sony poderá impactar na decisão do Tribunal.
Finalmente, a FTC aciona a Amazon por sua prática conhecida na literatura econômica antitruste como obsfuscation e cancelation trickery, ao obrigar os usuários a assinarem serviços Prime não demandados e dificultar o processo de cancelamento. A teoria do dano baseia-se no entendimento de que a companhia abusa de seu poder de mercado usando achados da ciência comportamental para extrair extra-rendas de usuários, desenhando interfaces manipulativas, coercitivas e enganadoras, levando consumidores a aderirem e renovarem automática e involuntariamente a subscrição dos serviços Prime.
Este é um caso que – independente do resultado – em breve deverá se tornar referencial, por trazer à tona problemas antitruste típicos da economia digital e por assinalar a importância da incorporação da análise em economia comportamental à defesa da concorrência.
Sigamos acompanhando as batalhas travadas pela FTC, como sempre muito ensinamento poderemos retirar, tanto de suas derrotas como de eventuais vitórias, para nossa própria reflexão sobre a condução do antitruste no Brasil.