Marco Aurélio Bittencourt
A globalização, intensificada nas últimas décadas, transformou o mapa econômico mundial e tem sido frequentemente apontada como uma das principais causas do crescente desemprego e da alarmante concentração de renda observada em diversas nações. A narrativa comum sugere uma lógica aparentemente irrefutável: a intensificação da especialização produtiva em escala planetária inevitavelmente leva à realocação de empregos, com alguns países perdendo postos de trabalho em detrimento daqueles com vantagens comparativas. Essa dinâmica, argumenta-se, impulsiona a desigualdade, pois apenas uma parcela da população, altamente qualificada e inserida nos setores de ponta, colhe os frutos dessa nova ordem econômica.
Contudo, essa narrativa, embora contenha elementos de verdade, simplifica uma realidade complexa e, em última análise, desvia o foco de outros mecanismos subjacentes a esses problemas. É inegável que a globalização exerce pressão sobre os mercados de trabalho, expondo-os a uma competição acirrada. A busca incessante por eficiência e menores custos de produção pode levar à convergência dos preços de bens e serviços, o que impacta a rentabilidade de empresas em países com custos mais elevados. Os consumidores, em geral, se beneficiam dessa queda de preços, desfrutando de maior poder de compra.
A inovação, motor essencial do crescimento econômico na era globalizada, também desempenha um papel ambivalente. Embora crie novas oportunidades e impulsione a produtividade, sua natureza disruptiva frequentemente leva à obsolescência de profissões e à necessidade de requalificação em larga escala. Em um mercado idealmente competitivo, os ganhos extraordinários da inovação tendem a se diluir à medida que novas empresas adotam as tecnologias e os preços se ajustam à pressão da concorrência. No entanto, em muitos setores, a competição não é perfeita, e os ganhos da inovação podem se concentrar em poucas empresas e indivíduos, contribuindo para a desigualdade e para a crescente disparidade entre a renda do capital e a renda do trabalho.
A complexidade da experiência chinesa e a necessidade de regulação adaptada
A experiência da China oferece um caso complexo e revelador. Contrariando a tendência de perda generalizada de empregos frequentemente associada à globalização, o gigante asiático demonstra uma resiliência de algum valor em seu mercado de trabalho. Embora a questão da concentração de renda na China exija uma análise cuidadosa e diferenciada, considerando as particularidades do seu sistema político e econômico, o fenômeno do desemprego em larga escala parece ter sido mitigado de alguma forma.
A razão para essa aparente contradição reside, em grande parte, na atuação multifacetada do governo chinês. Reconhecendo os potenciais impactos negativos da globalização e da rápida modernização sobre o emprego, o Estado implementou uma série de mecanismos de intervenção e regulação do mercado de trabalho. Embora tais intervenções não sejam isentas de críticas – a imposição de certas condições para empresas, por exemplo, pode gerar ineficiências e distorções –, elas demonstram uma preocupação ativa em amortecer os choques da transformação econômica sobre a população trabalhadora e, em outra vertente, amortecer a inabilidade tecnológica dos que vêm do campo. A regulação chinesa, com suas particularidades (como o uso de políticas industriais seletivas e investimentos massivos em infraestrutura), revela uma estratégia deliberada de priorizar a estabilidade do emprego, mesmo que isso comprometa a eficiência em alguns casos e levante questões sobre a sustentabilidade de longo prazo. É importante notar, no entanto, que essa abordagem tem seus custos, podendo enfrentar desafios crescentes à medida que a China busca transitar para um modelo de crescimento mais baseado na inovação.
Essa abordagem, por mais imperfeita que seja, lança luz sobre a complexidade da questão e a necessidade de estratégias adaptadas a cada contexto, o que contrasta com a omissão ou a timidez de estratégias semelhantes em outras economias, especialmente em algumas nações da Europa e, em certa medida, nos Estados Unidos. O aumento exponencial da produtividade impulsionado pela inovação e pela adoção de tecnologias avançadas invariavelmente leva a uma redução da demanda por mão de obra nos setores modernizados, e talvez explique o encurtamento do setor industrial em sua participação no PIB algures e alhures. A ausência de políticas ativas para gerenciar essa transição pode ter como consequência o deslocamento de trabalhadores para setores menos produtivos, como serviços e comércio, onde a crescente oferta de mão de obra exerce uma pressão descendente sobre os salários e contribui para a precarização do trabalho. É crucial reconhecer que essa transição não é automática nem sempre bem-sucedida, e pode levar a um aumento da desigualdade.
A urgência de uma regulação inteligente e dinâmica no setor sofisticado
A regulação econômica, em sua essência, volta-se para a correção de falhas de mercado, com foco primordial em monopólios e oligopólios. No tocante aos monopólios, a intervenção estatal busca alinhar a precificação da empresa dominante a níveis socialmente ótimos. Duas estratégias principais emergem:
- Preço igual ao custo marginal: Idealmente, o Estado poderia fixar o preço do monopolista em seu custo marginal, refletindo o verdadeiro custo de produção da última unidade. Para garantir a sustentabilidade da empresa, dado que o custo marginal pode ser inferior ao custo médio total, mecanismos de compensação do custo fixo não recuperado seriam necessários, como subsídios direcionados. Essa abordagem maximiza a eficiência alocativa, mas demanda cuidadosa gestão e financiamento.
- Preço igual ao custo médio: Uma alternativa pragmática consiste em estabelecer o preço no nível do custo médio da empresa. Embora não alcance a mesma eficiência alocativa do preço igual ao custo marginal, essa estratégia assegura a viabilidade econômica do monopolista sem a necessidade de subsídios contínuos, cobrindo todos os custos de produção, incluindo o custo fixo, e permitindo um lucro normal.
No âmbito dos oligopólios, a regulação concentra-se na prevenção de coalizões e acordos anticompetitivos que prejudiquem consumidores e fornecedores. O objetivo é fomentar a competição, mesmo em mercados concentrados, através da fiscalização e punição de práticas como formação de cartéis, manipulação de preços e divisão de mercados.
É crucial ressaltar que ambas as formas de regulação devem ser permeáveis à possibilidade de ingresso de novas empresas e ao potencial de inovações disruptivas. A ameaça de nova concorrência e a emergência de tecnologias inovadoras atuam como importantes mecanismos de disciplina de mercado, limitando o poder das empresas estabelecidas e impulsionando a eficiência e a inovação. Uma regulação excessivamente rígida pode inadvertidamente barrar esses desenvolvimentos benéficos.
Mas agora, com a globalização e seus efeitos deletérios sobre o emprego, o enfoque se amplia. O problema, entretanto, não reside exclusivamente na globalização ou na inovação em si, mas sim na falta de estratégias e mecanismos de regulação adequados e dinâmicos para lidar com seus efeitos colaterais, particularmente no que concerne ao mercado de trabalho de alta tecnologia e inovação. A crença de que o mercado, por si só, será capaz de absorver os trabalhadores deslocados e gerar novas oportunidades semelhantes às que esses trabalhadores deslocados desfrutavam em ritmo suficiente se mostra cada vez mais frágil diante da velocidade e da magnitude das transformações tecnológicas e o aumento do contingente sem referência de trabalho e emprego.
A questão crucial que se coloca é: que tipo de regulação se faz necessária nesse setor sofisticado? A resposta não reside em um retorno a modelos protecionistas ultrapassados, mas sim na criação de um conjunto de mecanismos inteligentes e adaptáveis que conciliem a busca por inovação e eficiência com a proteção e a reinserção dos trabalhadores, buscando um equilíbrio complexo. A regulação deve ser vista não como um obstáculo à inovação, mas como um instrumento para garantir que seus benefícios concentrados se aliem, de alguma forma eficiente, aos danos causados aos trabalhadores.
O exemplo hipotético da introdução de transporte sem motorista pelo Uber ilustra o desafio. Uma transição abrupta que levasse à perda de emprego de milhares de motoristas teria graves consequências sociais e econômicas. Uma proposta, por exemplo, seria a de que os antigos motoristas se tornassem os proprietários dos veículos autônomos. O que essa proposta revela é que, buscando restringir a apropriação desmedida dos ganhos da inovação por parte dos idealizadores da plataforma e redistribuir esses benefícios àqueles que foram diretamente impactados pela mudança tecnológica, pode ter efeitos fundamentais na dinâmica da inovação. O ganho da inovação não estaria sendo dirigido a quem investiu nessa inovação, direta ou indiretamente. Portanto, a estratégia não atende ao requisito de eficiência, no sentido de que se está impondo uma restrição que fatalmente poderá aumentar custos para a empresa UBER e desincentivar futuros investimentos em inovação. É fundamental considerar cuidadosamente os incentivos à inovação e evitar medidas que possam sufocá-la, buscando, por exemplo, mecanismos de compensação que permitam às empresas recuperar seus investimentos em inovação.
Um outro exemplo seria a de adoção de um sistema de incentivo compulsório à poupança e participação dos trabalhadores nos ganhos da inovação. A proposta de um fundo de participação acionária, com garantias de recompra em casos de deslocamento tecnológico, é particularmente interessante, mas sua implementação requer um design cuidadoso para evitar distorções no mercado financeiro e garantir a viabilidade das empresas. Nesse contexto, a regulação pode assumir diversas outras formas, como as seguintes:
- Uma delas seria a imposição de um período de transição gradual para a adoção de tecnologias disruptivas, permitindo que os trabalhadores se requalifiquem e se adaptem às novas demandas do mercado. Mas de novo, tem o inconveniente de não ser eficiente, pois pode atrasar a adoção de tecnologias que aumentam a produtividade e a competitividade. Para mitigar esse problema, a regulação poderia ser acompanhada de incentivos à inovação e de políticas de mercado de trabalho ativas que facilitem a requalificação dos trabalhadores.
- Outra possibilidade seria a criação de fundos de apoio à transição profissional, financiados pelas empresas que se beneficiam da automação, para oferecer suporte financeiro e programas de treinamento aos trabalhadores deslocados. A proposta teria que ter atrativo a ser fornecido pela empresa, de tal forma a atrair os trabalhadores, como benefícios fiscais para as empresas que contribuem para os fundos, e programas de treinamento de alta qualidade e com certificação reconhecida pelo mercado para os trabalhadores. A gestão dos fundos poderia ser feita de forma tripartite, com a participação de representantes das empresas, dos trabalhadores e do governo, para garantir a transparência e a eficiência.
- A ideia de “duplicação da fábrica” ou “fatiamento empresarial” também merece exploração, com o objetivo de gerar mais oportunidades de emprego e diluir o poder econômico em setores com alta concentração de mercado. Mas essa seria uma decisão exclusiva da empresa que estaria afeta às condições beneficiadoras do governo, como incentivos fiscais e subsídios para a criação de novas unidades de negócio. No entanto, é importante considerar os possíveis efeitos negativos dessa medida, como a perda de economias de escala e a redução da eficiência, e buscar formas de mitigá-los.
Pelo resumo acima, nota-se claramente que o caminho da regulação não é trivial e está carregado de possibilidades de jogar as empresas num mar de ineficiências. Esse é o desafio da regulação.
Rumo a um novo contrato social na era da inovação inclusiva
Em última análise, o desafio não é frear o progresso tecnológico ou renegar os benefícios da globalização. O verdadeiro imperativo é construir um novo contrato social que reconheça os impactos disruptivos da inovação e da competição global e estabeleça mecanismos para mitigar seus efeitos negativos sobre o emprego e a distribuição de renda, promovendo uma inovação verdadeiramente inclusiva. Isso exige uma mudança de paradigma na forma como pensamos a regulação econômica. Em vez de uma visão puramente liberal, que confia cegamente na autorregulação do mercado, é necessário adotar uma abordagem mais proativa, estratégica e adaptativa, que envolva o diálogo entre governos, empresas, trabalhadores em ação conjunta com seus sindicatos e a sociedade civil na busca de soluções inovadoras e sustentáveis. A regulação deve ser vista como um processo de aprendizado contínuo, que se ajusta às novas realidades tecnológicas e econômicas, incorporando princípios de flexibilidade, transparência e responsabilidade.
A experiência da China, com suas imperfeições e controvérsias, oferece um ponto de partida para essa reflexão, demonstrando que a intervenção estatal, mesmo que de forma não ortodoxa, pode desempenhar um papel importante na promoção do emprego e na redução da desigualdade em um contexto de rápida transformação econômica. No entanto, é crucial aprender com os sucessos e fracassos da experiência chinesa, buscando modelos de regulação que sejam mais eficientes, transparentes e democráticos.
O debate sobre o futuro do trabalho na era da inteligência artificial e da automação avançada está apenas começando. A forma como as sociedades responderão a esses desafios definirá o futuro da distribuição de riqueza, da coesão social e da própria democracia. Ignorar a necessidade de uma regulação inteligente, adaptada aos novos tempos e orientada para a inclusão seria um erro com consequências potencialmente devastadoras. A análise simplista que atribui toda a culpa à globalização não pode nos cegar para a verdadeira responsabilidade: a de construir um futuro em que a inovação sirva ao bem-estar de todos, e não apenas de uma parcela privilegiada da população, com efeitos deletérios sobre a classe média. A pobreza é o limite da classe média!
Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br
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