Luiz Alberto Esteves

Um dos principais desafios das autoridades antitruste ao redor do mundo é julgar casos de conduta em mercados de saúde suplementar, principalmente casos envolvendo condutas anticompetitivas por parte de associações e cooperativas de profissionais médicos. As investigações e punições nestes casos têm se concentrado em três tipos de condutas anticompetitivas: (i) tabelamento de preços; (ii) negociações entre cooperativas de especialidades médicas e operadoras de planos de saúde; e (iii) unimilitância, que envolve a exigência por parte das associações e cooperativas da exclusividade na oferta de serviços por seus associados.

Essa temática recebe atenção crescente ao redor do mundo por conta da rápida reestruturação destes mercados nas últimas décadas, motivada principalmente pelos custos crescentes dos tratamentos médicos, seja por conta da crescente introdução de inovações tecnológicas, seja por conta da rigidez da oferta de profissionais altamente especializados nas áreas médicas. O desdobramento foi o crescimento exponencial do mercado de financiamento de saúde suplementar (o primeiro elo da cadeia da saúde complementar).

Os seguros são acionados quando os consumidores demandam serviços médicos no segundo elo da cadeia de saúde suplementar, formado pelos pacientes demandantes e pelos médicos ofertantes dos serviços. Contudo, os honorários pela remuneração dos serviços médicos neste mercado são negociados entre os médicos e as operadoras ofertantes de planos e seguros de saúde.

A implicação é que os honorários médicos estarão sujeitos a um processo de barganha, em que a parte que dispuser de maior poder de mercado (leverage) terá maior probabilidade de captura de frações maiores dos lucros gerados ao longo da cadeia de saúde suplementar. Por conta disso, a prática autônoma entre os profissionais da medicina tem se reduzido significativamente em favor de estruturas organizacionais cooperadas ou associativas. Tal argumento fornece as bases para a tese de defesa das cooperativas médicas junto às autoridades antitruste em casos de condutas anticompetitivas, ou seja, a tese do poder compensatório.

Por outro lado, há um conjunto de argumentos que fornecem as bases para a acusação de conduta anticompetitiva por parte de cooperativas médicas. Os principais argumentos são: (i) não há poder de mercado a ser compensado, uma vez que a concentração de mercado no mercado de operadores de planos de saúde é pequena; (ii) a maioria das cooperativas de especialidades médicas está localizada em grandes centros urbanos, onde a oferta de profissionais altamente especializados é bem maior do que em regiões menos densamente povoadas; e (iii) a tese do poder compensatório tem seus efeitos pouco conhecidos na literatura econômica.

O objetivo aqui é abordar esta temática sob uma perspectiva completamente diferente. Uma das limitações da análise econômica antitruste é tentar reproduzir, na integra, o mesmo arcabouço analítico comumente utilizado em relações competitivas (horizontais ou verticais, de concentração ou de conduta) envolvendo empresas comerciais (a partir daqui denominadas firmas capitalistas convencionais) para o caso de relações competitivas envolvendo associações, cooperativas de profissionais ou empresas gerenciadas pelo fator trabalho (a partir daqui denominadas firmas cooperadas).

Seria desejável que as autoridades e os profissionais da área de política da concorrência analisassem e endereçassem os casos de concentração e conduta por parte de cooperativas ou associações de profissionais tomando como referência a literatura econômica específica e especializada sobre o tema, aqui denominada de Economia das Firmas Cooperadas (ou Economia das LMFs ou Economia da Firma Democrática)[1].

Assim como todos os demais ramos da Economia, há controvérsia entre os principais autores desta linha de pesquisa, porém num aspecto todos parecem concordar: os incentivos das firmas capitalistas convencionais são completamente diferentes das firmas cooperadas. A literatura econômica tem despendido décadas de esforço analítico para fornecer argumentos teóricos e evidências empíricas minimamente satisfatórias para responder as seguintes questões: Qual a diferença entre o fator capital contratar o fator trabalho e o trabalho contratar o capital? Por que é mais comum encontramos o capital contratando o trabalho e não o contrário? A firma capitalista convencional é mais eficiente que a firma cooperada? As firmas cooperadas são capazes de suavizar ciclos econômicos?

Como já mencionado, o tema é repleto de controvérsias entre os vários estudiosos sobre o assunto, mas um segundo aspecto também parece ser unânime entre os economistas: em equilíbrio walrasiano, com mercados perfeitamente competitivos e completos, com informação perfeita e ausência de externalidades, não haveria qualquer diferença de incentivos entre uma firma capitalista convencional e uma firma cooperada, ou seja, seria completamente indiferente o capital contratar o trabalho, ou o trabalho contratar o capital.

Do parágrafo acima podemos concluir que a única situação na qual podemos colocar firmas capitalistas convencionais e firmas cooperadas em condições de similaridade analítica é exatamente quando a análise antitruste é teoricamente irrelevante e desnecessária, ou seja, sob condições de concorrência perfeita.

Sobre esse ponto é importante lembrar que todo o projeto de pesquisa envolvendo a análise de estrutura-conduta-desempenho (E-C-D) foi construído tendo em mente os incentivos que norteiam as ações das firmas capitalistas convencionais, ou seja, baseado na noção da maximização dos lucros por parte das firmas. Isso não significa que os cooperados também não queiram auferir o maior rendimento possível, mas neste caso, os interesses individuais são subordinados ao interesse coletivo. Em termos econômicos, isso significa dizer que nestes casos os recursos não são alocados pela lógica descentralizada dos mercados, denominada por Adam Smith como “mão invisível”, mas pela lógica da ação coletiva.

Um ponto importante acerca da distinção entre estes dois tipos de organizações diz respeito às suas funções objetivo: as firmas capitalistas convencionais tendem a perseguir a maximização do lucro econômico, enquanto as firmas cooperadas tendem a buscar a manutenção da estabilidade do emprego e do produto (em face às variações de preços e demais choques).

Em termos práticos e empíricos, isso significa que as empresas cooperadas tendem a apresentar uma curva de oferta praticamente inelástica (curva de oferta vertical), enquanto as firmas capitalistas tradicionais tendem a apresentar uma curva de oferta padrão (curva de oferta ascendente). Acerca deste ponto, o leitor perceberá que a hipótese de constituição de falsas cooperativas (cooperativas que se comportam como firmas capitalistas tradicionais) com objetivos meramente anticompetitivos pode ser testada empiricamente, por meio da estimativa da inclinação da curva de oferta da firma cooperada. Portanto, faz-se necessário alertarmos para o fato de que o uso de referencial teórico e analítico inadequado para a análise de condutas envolvendo firmas cooperadas pode aumentar significativamente as probabilidades de ocorrência de erros do tipo I e erros do tipo I


[1] Autores de tradição neoclássica e novo-institucionalista denominam tais tipos de empresas como LMFs (labor-managed firms). Já economistas de tradição marxista, tais como os marxistas analíticos e economistas radicais denominam tais empresas como firmas democráticas.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *