Luiz Alberto Esteves

Grandes avanços tecnológicos nas últimas décadas têm proporcionado o advento do que hoje denominamos de Economia Digital, também conhecida como Nova Economia. Trata-se de uma economia totalmente baseada em tecnologias de computação digital. Uma caracterização pormenorizada da Economia Digital pode ser encontrada em Neto, Bonacelli & Pacheco (2020)[1], que trabalham com a noção de Sistema Tecnológico Digital, formado pelo cluster Inteligência Artificial, Computação em Nuvem e Big Data.   

O desenvolvimento dessa Economia Digital tem proporcionado a criação de um número crescente de novos modelos de negócios, muitos deles amparados em inovações disruptivas, desenvolvidas à margem das disputas concorrenciais que costumam envolver os grandes incumbentes com modelos de negócios tradicionais. Um exemplo tem sido a atual dinâmica da indústria bancária e financeira constituída, por um lado, pelos grandes conglomerados incumbentes e, por outro lado, pela proliferação de Fintechs (empresas que desenvolvem soluções financeiras totalmente digitalizadas).

Tal movimento tem implicações óbvias e imediatas para discussões regulatórias e concorrenciais. Esse movimento tem causado bastante entusiasmo entre consumidores, autoridades, reguladores e formuladores de políticas públicas. Acredita-se que essa concorrência adicional, trazida por Startups e Fintechs, proporcionará amplas vantagens e benefícios aos consumidores, seja na forma de mais opções de escolhas, seja na melhor qualidade de serviços e preços menores. Mesmo considerando o fato de que soluções disruptivas também possam ser desenvolvidas e trazidas ao mercado por grupos econômicos da Economia Digital (Bigtechs), muito maiores que os incumbentes (grandes bancos e seguradoras, por exemplo), as razões para entusiasmo não são infundadas.

Reguladores têm colaborado ativamente com esse movimento. No caso brasileiro, por exemplo, O Banco Central do Brasil tem apostado na agenda do Open Banking e do Open Finance. O Open Banking, por exemplo, possibilita que usuários de produtos e serviços bancários possam compartilhar suas informações com diferentes instituições. Trata-se de uma medida de enorme impacto para a competição bancária, pois um dos principais ativos de um banco é seu acervo de dados de clientes, principalmente as informações que orientam as decisões de concessão de crédito, tais como os 5 C’s (caráter, capacidade, capital, condições e colateral).

O cenário parece bastante alvissareiro para os consumidores. Contudo, quando tratando de formulação de políticas públicas, cabe sempre lembrarmos de duas importantes citações. A primeira é atribuída à John Heywood, poeta inglês do século XVI: “Um homem pode muito bem levar um cavalo até a água, mas ele não pode obrigá-lo a bebê-la”. A segunda é comumente citada como um provérbio alemão: “O diabo mora nos detalhes”. A combinação dessas duas citações sugere que algo bastante alvissareiro pode se transformar em desapontamento e frustração.

Bom, é praticamente impossível anteciparmos todas as contingências que possam implicar em desapontamentos e frustrações. Contudo, nestas circunstâncias, cabe buscarmos o maior número de “pontos cegos” possíveis, ou seja, aqueles detalhes que possam escapar da visibilidade dos formuladores da política pública.

Uma possível fonte de desapontamento e frustração nestes casos pode originar-se do controle de concentrações por autoridades concorrenciais. Por exemplo, uma fração importante de inovadores disruptivos pode ser adquirida pelos próprios incumbentes (grandes instituições bancárias e financeiras, por exemplo), ou por grandes grupos econômicos de tecnologia (Bigtechs), enquanto ainda são empresas pequenas com modelos de negócios incipientes. Tais tipos de operações podem “escapar do radar” das autoridades antitruste, uma vez que as variações de concentração de mercado (Delta HHI) nestes casos costumam ser muito marginais.

Os guias de análise de atos de concentração das principais autoridades antitruste ao redor do mundo não são omissos quanto a esta temática, que costuma ser abordada no tópico “Eliminação de Mavericks”[2]. Contudo, há uma grande distância entre não ser omisso e providenciar um protocolo muito claro de como lidar com tais situações (o que não é nada fácil, definitivamente).  Essa dificuldade é abordada de forma bastante precisa por OWINGS (2013)[3], em artigo intitulado “Identifying a Maverick: When Antitrust Law Should Protect a Low-Cost Competitor”. O autor sugere o uso da Teoria da Inovação Disruptiva, desenvolvida originalmente por Clayton M. Christensen[4], para a identificação de comportamentos econômicos e estratégicos condizentes com a definição dos guias antitruste para Mavericks.

A proposta de OWINGS (2013) é bastante promissora, ao mesmo tempo em que a urgência para lidarmos com esse problema é crescente. O fato é que a medida de Delta HHI pode providenciar um teste de triagem (screening test) bastante poderoso para uma ampla maioria de atos de concentração. Contudo, seu poder pode ser bastante reduzido quando tratamos com fusões e aquisições no âmbito da Economia Digital. Talvez tenhamos que buscar soluções igualmente inovadoras para lidarmos com regulação e concorrência nestes mercados.    

[1] Neto, Bonacelli & Pacheco (2020). “O Sistema Tecnológico Digital: inteligência artificial, computação em nuvem e Big Data”, Revista Brasileira de Inovação, Campinas (SP), 19, e0200024: p. 1-31.

[2] Seção 4.3.1. (pág. 51) do Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE. O Guia define Mavericks como empresas “que apresentam um nível de rivalidade do tipo disruptivo. Geralmente são empresas com um baixo custo de produção e uma baixa precificação que força os preços de mercado para baixo ou empresas que se caracterizam por sua inventividade e estimulam a permanente inovação no segmento em que atuam. Nesse sentido, sua presença independente no mercado pode disciplinar os preços das empresas com maior market share”.

[3] Owings (2013). “Identifying a Maverick: When Antitrust Law Should Protect a Low-Cost Competitor”, Vanderbilt Law Review, 66 (1): p. 323-354.

[4] Christensen (2012). O Dilema da Inovação: Quando as novas tecnologias levam empresas ao fracasso. M. Books Editora: São Paulo, SP.

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