José Américo Cajado de Azevedo*
Abrem-se as cortinas. Cena 1. Frédéric Bastiat, um expoente entre os economistas franceses, com um viés liberal e intimamente associado à defesa da liberdade do indivíduo contra toda espécie de autoridade, especialmente a estatal, em 1850, alguns meses antes de sua morte, escreveu[1]:
Os órgãos sociais também são constituídos de modo a se desenvolver harmonicamente ao ar livre. Fora com os curandeiros e organizadores! Fora com seus anéis, suas correntes, seus ganchos e suas tenazes! Fora com seus métodos artificiais! Fora com suas obras públicas, seus falanstérios, seu governamentalismo, sua centralização, seus impostos, suas escolas públicas, suas religiões oficiais, seus bancos gratuitos ou monopolizados, suas regras, suas restrições, sua moralização e sua equalização pelos impostos.
Na mesma toada vociferou: “[q]ue se rejeitem os sistemas; que se coloque, por fim, a liberdade à prova”. Eloquente manifestação para um tema que, embora garganteado outrora, ainda encontra insistente eco no pensamento contemporâneo em relação ao papel do Estado e da sociedade nas definições econômicas. Fim do ato.
Cena 2. O Governo Federal brasileiro criou, em 1962, uma autarquia, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), vinculada ao Ministério da Justiça, com atribuições mais modernamente definidas pela Lei nº 12.529/2011, cuja missão é “zelar pela livre concorrência no mercado, sendo a entidade responsável, no âmbito do Poder Executivo, não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência”[2]. Cai o pano.
Como conciliar a livre iniciativa extrema pregada nos grotões ultraliberais com a ação intervencionista estatal que fiscaliza a concorrência? Esse é, ao fim e ao cabo, o dilema que se apresenta, em estado bruto, para se buscar o ponto de equilíbrio entre a ação privada e governamental, no que se refere ao empreendedorismo nos dias atuais.
É senso comum, apoiado em evidências, que empreender em nosso país atrai, per si, uma carga de responsabilidades e compromissos que somente alguns poucos players estruturados terão condições de suportar e superar as agruras que serão submetidos nas questões concorrenciais, tributárias, trabalhistas, dentre tantas outras que se apresentarão no deslinde das atividades.
Inovações legislativas, muitas vezes imbuídas de um aspecto de proteção aos direitos fundamentais, aparecem descontextualizadas, trazendo, não obstante o valor social, e porque não humanitário, uma oneração desmesurada para o empreendedor, em boa parte das vezes, modesto trabalhador que busca uma forma de realizar uma legítima atividade profissional.
Neste condão, projetos de lei são apresentados com o fito de proporcionar ao cidadão benefícios pontuais, eventualmente importantes, mas que não têm uma visão sistêmica da estruturação econômica em que estão inseridos. Transformam-se, dessa forma, em extravagâncias demagógicas que, diversamente de trazer proveitos ao cidadão, penaliza-o, indiretamente, ainda mais.
Assim, por exemplo, traz-se à lume os projetos de lei: (i) PL 2637/2011[3], que “[i]nstitui a obrigatoriedade de ascensorista em edificações comerciais e prédios públicos não residenciais com elevador”; ou (ii) o PL 1838/2020[4] que “[d]ispõe sobre a obrigatoriedade de higienizar ambientes fechados de acesso coletivo e áreas públicas e privadas, para reduzir o risco de transmissão de doenças infectocontagiosas e dá outras providências”.
Ainda mais acentuada a imisção de parcela do Legislativo na livre iniciativa, chega ao ponto de propor um esdrúxulo projeto de lei que visa a proibir o uso de nome de empresas em expressões de língua estrangeira (PL 5632/2020)[5].
Na via inversa, no entanto, setores liberais, inclusive com representação no Congresso Nacional, se organizam a fim de “desregular a regulação”, ou seja, instituir ordenamentos que desonerem os que empreendem em uma atividade econômica. Exemplo disso é o Projeto de Lei Complementar 217/2020 institui o Código de Defesa do Empreendedorismo[6], que estabelece direitos e deveres para o microempreendedor no desenvolvimento da atividade econômica, de modo a modificar o Estatuto da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006).
A proposta estabelece como direitos básicos das empresas a interpretação mais favorável das normas relativas ao poder de polícia; a presunção de baixo grau de risco para todas as suas atividades econômicas; a disponibilização de canal de atendimento na internet para a realização de todos os atos necessários à legalização, inclusive para obtenção de protocolos, certidões, licenças, permissões e alvarás, dentre outros.
Com o propósito de fomentar a discussão sobre o tema, congressistas se organizam em frentes parlamentares como a da Micro e Pequena Empresa, a do Setor de Serviços, a do Comércio, Serviços e Empreendedorismo, para o Desenvolvimento Regional Sustentável, de Apoio ao Mercado de Varejo e E-Commerce, em Defesa da Desoneração da Folha de Pagamento, do Brasil Competitivo, do Empreendedorismo, dentre tantas outras. É a maneira, por conceito, mais democrática de construção de esforços, uma vez que cada parlamentar foi eleito diretamente pela população com um propósito programático e ideológico que irá perseguir dentro do Congresso.
É possível observar o interesse que o assunto desperta, já que se trata de matéria que afeta intrinsecamente toda a economia do país. Poder-se-ia discutir, interminavelmente, a respeito do liberalismo extremado versus o intervencionismo estatal, sob a ótica dos sistemas econômicos que deveríamos estar inseridos ou do tamanho do Estado na vida dos cidadãos. Porém, o que se extrai de uma análise desapaixonada é que – mais uma vez – o ideal é perseguir o conceito budista do caminho do meio.
O viés liberal, confiando nos impulsos capitalistas do mercado, e adotando a cultura estadunidense do self made man – que em tradução livre pode ser compreendido como o homem que se fez por si mesmo, por conta própria –, pressupõe que a meritocracia irá sobrepujar todas as condicionantes estruturais adversas que serão apresentadas ao empreendedor, mesmo ao se deparar com barreiras, pernósticas especialmente para os de menor poder concorrencial. Não leva em consideração, portanto, as desigualdades preexistentes ou mesmos as assimetrias, informacionais ou procedimentais, que permeiam o ambiente econômico.
Assim, não se pode ter a ilusão de que exista, em qualquer local do universo social e econômico, uma possibilidade de igualdade de oportunidades, onde o empreendedor encontrará terreno fértil para o estabelecimento de suas premissas comerciais, em iguais condições com todos os players do mercado. Esse é o mundo real, distante da utopia da plena concorrência e do livre mercado!
Em outro sentido, deleitam-se os defensores do Estado protetor, com tendências intervencionistas, imaginando que é possível, tal como fantasiado por George Orwell em seu clássico 1984, um Grande Irmão comandando os andares da economia e, por fim, da ampla iniciativa.
O porto seguro, mais uma vez e sempre, é o equilíbrio!
A liberdade empreendedora, e aqui vale o reforço à palavra liberdade, deve ser constantemente perseguida. Não é admissível, dentro de um sistema democrático, o tolhimento àqueles que buscam empreender, e que trazem, sem qualquer dúvida, benefícios para a sociedade e para o mercado em sentido lato.
Por outro lado, porém, a adequada estruturação do sistema concorrencial não permite prescindir da atuação estatal, coibindo práticas anticompetitivas que poluem o ambiente de negócios e afetam, prejudicialmente, a economia do país. Deste modo, a visão regulatória refreando ações anticoncorrenciais, eliminando barreiras a novos entrantes, estimulando práticas comerciais que beneficiem o consumidor final, deve ser amplamente adotada e encorajada, pois, em sua essência, o Estado é responsável por propiciar o melhor ambiente para o desenvolvimento de negócios, atuando ou se abstendo de atuar diretamente.
A partir da perspectiva atribuída a Voltaire de que “quand je peux faire ce que je veux, voilà la liberté” (quando posso fazer o que quero, eis a liberdade), F. A. Hayek[7], clássico economista liberal alemão, ponderou:
A questão, pois, é como garantir a maior liberdade possível a todos. Isto pode ser feito restringindo uniformemente a liberdade de todos por meio de regras abstratas que evitem a coerção arbitrária ou discriminatória de ou por outras pessoas e impedem cada um de invadir a esfera de liberdade de qualquer outro. Em suma, fins concretos comuns são substituídos por regras abstratas comuns. O governo é necessário apenas para fazer valer essas regras abstratas e, por meio delas, proteger o indivíduo contra a coerção, ou a invasão da sua esfera de liberdade, por outros.
Humberto Ávila[8] complementa com uma interessante análise sobre o papel do Estado:
(…) o Estado também assume a tarefa de induzir o comportamento dos cidadãos para que se conformem às finalidades públicas. Ultrapassa-se, pois, uma concepção de Estado Liberal, passa-se pelo Estado Providência (gerador de prestações), pelo Estado Propulsivo (fixador de planos) e pelo Estado Reflexivo (fixador de programas), para se chegar ao Estado Incitador (produtor de influências), em cujo âmbito estão estabelecidos vínculos de coordenação e de cooperação.
Remetendo a uma perplexidade praticamente existencial, temos as reflexões acerca de quem é o Estado; o que esperamos dele; e qual deve ser seu tamanho. Essas perguntas, comumente respondidas de acordo com as oportunidades e as conveniências, são fulcrais para a percepção do que se quer para o futuro do nosso país.
[1] BASTTIAT, Frédéric (1801-1850). A lei: por que as esquerdas não funcionam? As bases do pensamento liberal. Trad.: Eduardo Levy.Barueri-SP, Faro Editorial, 2016.
[2] Disponível em https://www.gov.br/pt-br/orgaos/conselho-administrativo-de-defesa-economica#:~:text=O%20Cade%20tem%20como%20miss%C3%A3o,a%20cultura%20da%20livre%20concorr%C3%AAncia. Acessado em 12.10.2021.
[3] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/526012. Acessado em 12.10.2021.
[4] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2248001. Acessado em 12.10.2021.
[5] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2267965. Acessado em 12.10.2021.
[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2260548. Acessado em 12.10.2021.
[7] HAYEK, Friedrich A. von (1899-1992). Os erros fatais do socialismo. Trad.: Eduardo Levy. Barueri: Faro Editorial, 2017.
[8] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016.
* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.
Colaborador na plataforma WebAdvocacy.
Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.