José Américo Cajado de Azevedo*
O Senado Federal aprovou no último dia 03 de novembro em dois turnos, a PEC 10/2017, conhecida como PEC da Relevância, que cria um filtro para a admissão dos recursos especiais que serão julgados pelo STJ.
Em 23/08/2012, os deputados Rose de Freitas e Luiz Pitiman apresentaram à Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional nº 209/2012 acrescentando o § 1º no artigo 105 da Constituição Federal, que trata da competência do Superior Tribunal de Justiça, enunciando a necessidade de demonstração da relevância de questões de direito federal infraconstitucional para admissibilidade de recurso especial.
No ano seguinte, o Senado Federal apresentou uma PEC, com idêntico teor, inclusive referenciando-se à proposta da Câmara em sua justificação, que recebeu o nº 17/2013. Em 2017, a PEC da Câmara foi aprovada naquela Casa, subindo para o Senado sob o nº 10/2017. Ao final de 2018 a PEC nº 17/2013 foi arquivada devido ao encerramento da legislatura, não afetando, porém, a tramitação da PEC nº 10/2017.
Uma primeira ponderação que merece ser examinada se refere à razoabilidade da iniciativa, uma vez que o STJ se encontra abarrotado de processos, devido à facilidade de acesso ao julgamento do tribunal e à ausência de filtro que selecione as demandas realmente pertinentes que merecem uma nova análise. Somente em 2019 o STJ recebeu mais de 384 mil processos, tendo sido proferidas quase 504 mil decisões terminativas. Em uma aritmética elementar, dividindo-se as decisões pela quantidade de ministros, tem-se a disparatada média de mais de 15 mil decisões por ministro somente em um ano, sem se considerar eventuais vacâncias ou ausências de ministros, posições de direção no Tribunal, dentre outros fatores, o que elevaria este número.
Assim, merece atenção a necessidade de implementação de um instituto que desafogue esse ônus, permitindo uma prestação jurisdicional de melhor qualidade, em benefício da coletividade. Neste aspecto, o Supremo Tribunal Federal, bem como o Tribunal Superior do Trabalho já possuem ferramentas para a otimização da carga laboral.
No TST, o instituto da transcendência foi instalado a partir de lei ordinária, inicialmente através da Medida Provisória nº 2.226/2001 e regulamentada pela Lei nº 13.467/2017. Não foi necessária uma Emenda Constitucional para criar o filtro utilizado na corte trabalhista. Ficou assim definida:
§ 1º São indicadores de transcendência, entre outros:
I – econômica, o elevado valor da causa;
II – política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal;
III – social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado;
IV – jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista.
Observa-se a intenção do legislador em deixar expressa sua proposta, definindo, com clareza, o que deve ser verificado na análise. Ainda assim, por razões ideológicas ou pela falta de entendimento do fundamento do artigo, subverte-se a essência do comando, não sendo aplicado de maneira uniforme nos 27 gabinetes do Tribunal.
A louvável iniciativa de inserção do instituto da justiça trabalhista, próximo ao writ of certiorari estadunidense, esbarra em questões operacionais que pervertem seu sentido, empobrecendo a prestação jurisdicional e, ao contrário de trazer alguma segurança jurídica, se transforma, muitas vezes, em uma loteria, cujo ganhador é aquele que tem seu recurso de revista admitido.
Somente à guisa de exemplo, existem ministros que defendem que a hipossuficiência de um empregado reclamante é suficiente para impulsionar o recurso de revista sem a análise do valor da causa como quer a lei, ou seja, todo empregado que ingressar com uma reclamação trabalhista, que tiver reconhecida a hipossuficiência (ao contrário do “elevado valor da causa” como disposto na legislação) e que, porventura, tenha seu processo alçado em sede de recurso de revista, este terá sua transcendência econômica e social reconhecida. Põe-se por terra a existência do instituto da transcendência.
No STF, a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário inserida constitucionalmente através da EC nº 45/2004 foi, ainda, regulamentada pelo CPC em seu artigo 1035, que se encontra transcrito, secundado pelo regimento Interno do STF no artigo 322.
Código de Processo Civil
Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1º Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.
Observa-se que, embora diga quais são os aspectos – em sentido amplo – que devem ser analisados como expressivos, o regulamento não define parâmetros objetivos dos critérios para essa verificação, deixando à discricionariedade da Corte a admissibilidade do recurso. Ocorre que, após essa primeira avaliação, alguns temas são alçados a outro patamar – também denominados como afetados em repercussão geral – que irá criar uma maior vinculação à decisão proferida, ou seja, temas com menos ou mais repercussão geral ou, de outra forma, decisões erga omnes.
Tal sistemática cria uma gradação de importância nas decisões emanadas pela Corte Suprema. Não obstante estes dois patamares, algumas decisões ainda se transformam em súmulas, e aquelas mais relevantes em súmulas vinculantes. Esta metodologia acaba por enfraquecer, lato sensu, a força dos julgados do STF, pois, todos os recursos admitidos como extraordinários deveriam possuir o condão de se tornarem vinculantes horizontal e verticalmente. Neste sentido, o Regimento Interno do STF estabelece, em seu artigo 187, que “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos”. A hierarquização das decisões acaba por não ser saudável à autoridade do STF como Corte Constitucional.
Demais disso, cabem algumas reflexões a respeito do procedimento proposto na PEC da relevância. Duas questões de importância fulcral saltam aos olhos. A primeira diz respeito à forma como o legislador ordinário irá definir e delimitar o conceito de “relevância”. A segunda é a inaplicabilidade automática e autônoma do comando, na medida em que, ao colocar a expressão “nos termos da lei”, transfere à esfera infraconstitucional a estruturação do regramento. Estes dois pontos são de fundamental pertinência para se implementar o almejado filtro que irá possibilitar desafogar o STJ, permitindo que a Corte se debruce sobre as questões realmente significativas, não se tornando somente um tribunal de terceira instância de temas subjetivos.
Caso o Superior Tribunal resolva aplicar diretamente o comando legislativo, sem que haja uma regulamentação, a possibilidade de uma catástrofe se anuncia. Serão trinta e três cabeças utilizando de uma norma imatura, não em uma reunião colegiada para definir sua aplicação, mas em entendimentos jurisdicionais que darão azo a trinta e três entendimentos, na maioria das vezes díspares.
Há que se refrear o afã da aplicação imediata da norma para que se tenha uma regulamentação que atenda à exegese da PEC, trazendo segurança jurídica e a consequente pacificação social.
Um aspecto de essencial interesse decorrente da aprovação da emenda constitucional, é a definição do que deve ser considerado “relevante”. No STF existe a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. No TST, por sua vez, foi instituída a transcendência, não como requisito formal de admissibilidade, mas como pressuposto prévio necessário ao seguimento do recurso de revista. Além disso, as formas de emprego dos filtros diferem, quer no conceito, quer no procedimento de sua aplicação.
A delimitação do sentido do termo “relevância” para a observância do pretendido instituto é fundamental para a recepção do comando e para seu pleno e satisfatório aproveitamento. Os aspectos a serem analisados, como a relevância econômica, social, política e jurídica, para ombrear aos critérios estabelecidos pelo STF e pelo TST, devem estar plena e objetivamente definidos, de forma a não permitir o conflito de avaliação na admissibilidade do recurso.
Não está a se encouraçar a liberdade de julgamento do magistrado, encapsulando sua autonomia decisória. Porém, como balizador para o filtro, devem ser estabelecidos, claramente, os limites de admissibilidade dos recursos especiais, sob pena de a iniciativa decair por imperfeição em sua utilização. Sem embargo, será, de toda forma, atribuição dos Ministros, em análise de admissibilidade, o pleno acatamento do comando para a obtenção de resultados efetivos.
Há que se observar, porém, que a inação ou a morosidade no procedimento legislativo poderá retardar ou até inviabilizar a ideia. Para se ter um parâmetro a respeito desse assunto, como já mencionado, o instituto da transcendência foi inserido na Consolidação das Leis Trabalhistas em 2001, quando, em seu artigo 896-A, caput, definiu que “[o] Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”. No entanto, somente com o advento da Reforma Trabalhista, em 2017, é que se regulamentou a matéria, ou seja, mais de uma década e meia para que se pudesse dar concretude a uma instrução. Corre-se o risco de se repetir a história, de maneira perniciosa e prejudicial ao Judiciário brasileiro e à sociedade em geral.
Se se analisar que somente para definir que deverá existir o critério de relevância já se transcorreram mais de oito anos, e não se tem uma previsão de quando chegará a termo, pode-se inferir o tempo que será necessário para que o Legislativo apresente e discuta um regramento consolidado e aplicável, capaz de gerar efeitos concretos no mundo da prestação jurisdicional. Há, ainda, um longo caminho a ser percorrido no interior dos salões verde e azul do Congresso Nacional, até que o STJ possa obter a ferramenta necessária para descarregar seus escaninhos de matérias irrelevantes que visam somente a procrastinar o trânsito em julgado de uma decisão, muitas vezes sabidamente desfavorável.
Pode-se observar que cada Tribunal procurou, e vem procurando, dispositivos para desafogar suas prateleiras. Desafortunadamente, essas ferramentas são totalmente diferentes estre si, não havendo uma coordenação para uniformizá-las, fazendo com que em cada Tribunal haja diferentes procedimentos, trazendo a impressão de que, quando se está nos corredores dos tribunais superiores em Brasília, existem vários e distintos Poderes Judiciários. Este, porém, é um tema que merece um capítulo próprio.
A questão da relevância, no STJ, deverá fugir das armadilhas que podem surgir no caminho de sua criação. O diálogo entre os Poderes, de forma institucional, é saudável e em nada afeta os princípios republicanos. O acompanhamento mais próximo da tramitação da PEC junto ao Senado Federal, podendo utilizar-se, inclusive, da isenção do Conselho Nacional de Justiça devido à sua diversificada composição, poderia ser uma medida proativa em benefício do Judiciário.
Além disso, poderia o CNJ enviar ao Congresso Nacional, após a aprovação da PEC, uma sugestão de Projeto de Lei que pudesse balizar os parlamentares quanto aos anseios do Poder Judiciário em relação à aplicação do instituto. Ocorreria uma interação saudável entre os Poderes, visando ao mesmo fim, qual seja, o melhor atendimento à sociedade brasileira.
De toda forma, o ajuste fino das questões procedimentais poderá estar contido no Regimento Interno do STJ, que possui a prerrogativa de detalhar os aspectos operacionais e tornar aplicável uma determinação legal.
O que não se pode perder de vista é que existe, ainda, um longo caminho a ser trilhado, não se vislumbrando, em um horizonte próximo, a aplicação do instituto da relevância. Está a se falar em anos, quiçá décadas, até que o STJ possa lançar mão de uma importante ferramenta que, ao fim e ao cabo, irá beneficiar a justiça brasileira.
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JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.
Colaborador na plataforma WebAdvocacy.
Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.