José Américo Cajado de Azevedo

A Constituição de 1988 é habitualmente reconhecida como uma Carta garantista e protecionista dos direitos individuais e sociais insculpidos, essencialmente, em seus artigos 5º e 7º. Não por outro motivo é conhecida pela alcunha de Constituição Cidadã. A partir dessa premissa, formou-se um entendimento doutrinário e jurisprudencial que visa a proteger todos aqueles albergados sob sua égide de ameaças aos direitos e às liberdades.

Na esteira desse entendimento, o Estado avoca para si o papel de defensor dos direitos dos cidadãos, tratando-os, inúmeras vezes, como seres hipossuficientes e carecedores da proteção estatal. Como consequência, intervém nas relações entre particulares estabelecendo, muitas vezes, normas e procedimentos para convivência interpartes, como no caso dos regramentos a respeito da disponibilidade de direitos.

A impossibilidade de dispor do próprio direito busca, conceitualmente, proteger o cidadão de situações em que deve existir uma atuação do Estado no sentido de salvaguardar os interesses de seus abrigados. Estes interesses são indeclináveis, e sua perda pode significar um malefício maior, ou seja, o bem tutelado possui um predomínio sobre um eventual aniquilamento de sua garantia.

O Estado, com o intuito de satisfazer sua precípua missão de organizar a sociedade, busca identificar situações em que a perda de direito pode significar um dano irreparável, comprometendo a pacificação social. Como exemplo, pode-se imaginar uma hipérbole jurídica em que uma falha ocasionada por um advogado, como um prazo processual perdido, comprometa a satisfação por alimentos a um menor. Neste caso, embora haja revelia do infante, em razão da inércia de seu patrono, não são produzidos os efeitos jurídicos decadenciais para a parte, como anotado no Código Civil, permitindo a persecução dos interesses do desvalido[1].

O Estado acaba por ter a missão de ser o garantidor dos vulneráveis, uma vez que as desigualdades – sociais, econômicas, profissionais, etc. – são parte inerente à condição humana. Cabe ao governo – e está a se falar em sentido lato – a administração desse imbróglio, buscando atenuar as diferenças e criando modos de compensação para prejuízos circunstanciais.

É importante buscar o entendimento do conceito para avançar na análise das consequências. A palavra “indisponível” pode ser compreendida como (i) um qualificador que impede a perda ou a restrição de um direito ou, por outro lado, compreendida como (ii) impeditivo de renúncia (MARTEL, 2010, p. 337).

Enquanto o primeiro conceito oferece a possibilidade de tutela àquele que possui a expectativa do direito, como, exemplificativamente, nos casos de reconhecimento da paternidade biológica quando o pleiteante pode a qualquer momento de sua vida buscar a satisfação de seu direito, o segundo apresenta-se como uma tutela obrigatória, impositiva, fundada em uma premissa de hipossuficiência da parte, obstando a faculdade de negociar ou mesmo renunciar àquele eventual benefício, como se observa mormente na justiça trabalhista.

A disponibilidade, em sua essência, diz respeito ao direito ou ainda se estende às relações jurídicas subjacentes? Caso assim seja, à guisa de proteção, fica o cidadão impedido de beneficiar-se amplamente de sua liberdade, na medida em que é tolhido na coordenação de seus interesses. No entanto, nota-se forte tendência doutrinária defendendo a impossibilidade de transacionar direitos indisponíveis, entendimento este que é compartilhado por tribunais (COSTA e SANTOS, 2019, p. 219).

A indisponibilidade possui o condão de atrair a imprescritibilidade, daí porque se transforma em direito passível de ser exercido a qualquer tempo. A intenção de transacionar em relação ao direito, no entanto, deve ser analisada como real possibilidade e não como impeditivo do exercício pleno da vontade. No afã de criar uma proteção ao tutelado pode se produzir amarras ao integral desempenho da liberdade individual.

No caso de preservação de interesses difusos, a indisponibilidade do direito salvaguarda a coletividade, justificando a tutela estatal para proteger parcela da sociedade atingida em suas prerrogativas. Há que se ponderar, no entanto, em relação às questões relativas a direitos individuais, onde não há hipossuficiência econômica, social ou mesmo cognitiva, podendo a parte se posicionar favoravelmente quanto à transigência, especialmente em relação a uma expectativa de direito, quando ainda se mostra necessária a prestação jurisdicional para sua efetiva consumação.

O exercício de um direito e a impossibilidade de dele dispor ou transacionar são conceitos excludentes entre si. A indisponibilidade, no sentido de não se poder renunciar, transforma o direito em uma obrigação, sem que seja dada a opção de não querer exercê-lo, conflitando com a acepção mais elementar do verbete direito.

O debate adquire feições práticas se se tomar como exemplo a transação e, portanto, a disponibilidade de créditos trabalhistas. A possibilidade de se negociar esses créditos em discussão judicial pode representar aspectos positivos para os litigantes em ambos os polos, a depender do arranjo. A Justiça do Trabalho sempre foi resistente a essa espécie de acordo pelo risco de lesividade ao empregado, considerado a parte frágil da relação contratual. Tal entendimento está sedimentado em decisão do TST, de 2009, que afirma que “[a] cessão do crédito trabalhista decorrente da presente ação, (…), não interfere no andamento do processo ou na solução do litígio, uma vez que, a teor do art. 100 da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho (DEJT de 30/10/2008), ‘a cessão de crédito prevista no art. 286 do Código Civil não se aplica na Justiça do Trabalho’[2]. Neste sentido, não está resguardada a hipótese de um trabalhador, para receber imediatamente determinados valores, veladamente renunciar a direitos certos (COUTINHO, 2000, p. 15).

No entanto, brisas de modernidade parecem soprar no tribunal trabalhista, apontando novas possibilidades para negociação dos direitos laborais. Em recente julgamento, o Ministro Douglas Alencar exarou voto com o entendimento de que “(…) cabe afirmar que a cessão de crédito trabalhista é plenamente possível (CF, art. 5º, II c/c os arts. 286 a 298 do CC. 8º da CLT e 83, § 5º, da Lei 11.101/2005), disso resultando que os cessionários de eventuais créditos trabalhistas estão legitimamente habilitados a ingressar nas lides judiciais correspondentes, como sucessores ou assistentes litisconsorciais (CPC, art. 109, §§ 1ºa 3º c/c o art. 5º, LIV, da CF)[3].

A inflexão demonstrada se reveste de especial importância na medida em que se tem um país ávido pela recuperação a partir de um modelo mais moderno e dinâmico que possibilite novas interações no campo econômico. A possibilidade de transação de créditos não afeta somente as partes sinalagmaticamente. Permite ainda que outras facetas de uma negociação mais abrangente sejam favorecidas.

Tome-se como exemplo uma empresa com potencial atrativo de mercado, porém com significativos débitos, inclusive trabalhistas. Ela pode estar apta a se inserir em um processo de turnaround[4], tendo, no entanto, dificuldades negociais devido ao seu passivo. A possibilidade de transacionar seus débitos pode ser vantajosa tanto para sua própria recuperação, quanto para os trabalhadores em litígio que, ao passarem a ser credores de uma outra pessoa jurídica, de maior capacidade financeira, inserida em uma negociação mais ampla, têm aumentada a probabilidade de recebimento de seus créditos. Dessa forma, a inserção de um novo player no processo aumenta as condições favoráveis para o satisfatório deslinde de uma situação contenciosa, possibilitando o almejado resultado “ganha-ganha”.

É com essa visada que se deve contemplar as novas nuances das relações econômicas nos dias atuais. Se a proteção pretendida para o trabalhador fez sentido, na década de 1940 quando foi implantada a Consolidação das Leis Trabalhistas, pelo quadro histórico em que o país vivia ou, ainda, se foi necessária, em algum momento, uma intervenção do Estado para a proteção do cidadão nos casos de relações desproporcionais de poder, atualmente essa interferência deve ser mitigada e ponderada, de forma a possibilitar arranjos contratuais mais adequados às modernas relações negociais.

A indisponibilidade de um direito fundamental para impedir sua extinção e garantir sua persecução em qualquer momento da vida é regramento louvável e necessário, que irá asseverar a pacificação social. A vedação de transacionar um direito, no entanto, encontra-se em diferente diretriz, na medida em que obsta o pleno exercício da liberdade, especialmente nos casos em que não haja prejuízo para nenhuma outra parte.

Como encerramento, é importante refletir se o objetivo desejado pelo Estado, ao defender o cidadão em relação aos seus direitos, não está criando uma proteção – ou ainda pior, uma barreira – contra ele mesmo, impedindo-o de dispor de um direito, em prejuízo aos seus próprios interesses. A superproteção nesses casos pode, ao contrário do pretendido, deixar de ser um remédio, para tão somente ser o próprio causador do mal.

COSTA, Nilton César Antunes da; SANTOS, Rebeca Barbosa dos. A transação de direitos indisponíveis na mediação. Revista DIREITO UFMS, Campo Grande, MS, v.5, n.1, p. 208 – 232, jan./jun. 2019

COUTINHO, Aldacy Rachid. A indisponibilidade de direitos trabalhistas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 33, 2000.

MARTEL, Letícia de Campos Velho. Indisponibilidade de direitos fundamentais: conceito lacônico, consequências duvidosas. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 2, p. 334-373, jul./dez. 2010.


[1] Com a maioridade civil, ao completar 18 anos de idade, quando cessa o poder familiar, em relação aos alimentos passa a correr o prazo prescricional de dois anos para cobrar judicialmente os alimentos inadimplidos (artigo 206, § 2º do Código Civil).

[2] RR 632923-19.2000.5.04.5555. Publicado em 13/11/2009.

[3] ED-ED-AIRR – 820-23.2015.5.06.0221. Publicado em 17/08/2021.

[4] Turnaround é um processo de recuperação empresarial visando à restauração do equilíbrio financeiro e a volta à competitividade, buscando o restabelecimento de seu valor e a ressurreição da performance, por meio da implementação de uma reestruturação profunda e sem limites na empresa.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

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