José Américo Azevedo*
Catharina Araújo Sá**
Como preâmbulo da análise que se pretende, importante visitar algumas asserções:
i) a agência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime jurídico que assegura a autonomia em face da Administração direta e que é investida de competência para a regulação setorial[1]. Sua instituição é justificada não apenas pela necessidade de regulação dos serviços públicos concedidos aos particulares, mas também pela necessidade de controle de determinadas atividades privadas relevantes, destacadas pela lei[2];
ii) a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq – tem como competência regular, supervisionar e fiscalizar as atividades relacionadas à prestação de serviços de transporte aquaviário e de exploração da infraestrutura aquaviária e portuária[3];
iii) o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade – tem como atribuições analisar e posteriormente decidir sobre as fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam colocar em risco a livre concorrência, além de investigar, em todo o território nacional, e posteriormente julgar cartéis e outras condutas nocivas à livre concorrência[4]; e
iv) o direito concorrencial e o direito regulatório possuem atuações complementares: enquanto o direito concorrencial abrange todos os setores da economia, a regulação atua de maneira mais restrita em mercados específicos, as agências reguladoras atuam no âmbito de cada setor em que receberam atribuições[5].
Para compreensão e contextualização dos conceitos, peregrinemos pela planície da realidade prática.
O setor portuário brasileiro movimentou em 2020 mais de 1,15 bilhão de toneladas em carga, sendo os principais produtos o minério de ferro, petróleo e derivados, soja, contêineres e milho. Desta movimentação, 810 milhões de toneladas são relativas à navegação de longo curso, divididas em 80% em exportações e 20% em importações[6]. É possível verificar, portanto, a relevância do modal na matriz logística do país.
Com esses números superlativos, a operação portuária, no que diz respeito à movimentação intraportos de cargas, adquire uma importância financeira tamanha que se torna pertinente a avaliação dos impactos decorrentes da cobrança das atividades de estiva.
A cobrança de “THC2” (terminal handling charge 2) ou “SSE” (serviço de segregação e entrega) é um tema famoso referente ao mercado portuário discutido no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
O THC é preço cobrado pelos serviços de movimentação de cargas desde o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário no caso da importação e entre o portão do terminal portuário e o costado da embarcação na exportação. O SSE/THC2, por sua vez, incide somente nas importações e diz respeito ao valor cobrado pela movimentação da carga que sai do contêiner na pilha do terminal portuário até outro terminal retroportuário, onde estão os armazéns – de propriedade do operador portuário ou independentes – nos quais a carga será armazenada. Tal serviço está previsto na Resolução Antaq nº 34/2019, que revogou a Resolução Antaq nº 2.389/2012, a qual não deixava claro se o SSE/THC2 já estaria sendo remunerado pelo THC e, portanto, ao ser cobrado novamente, estaria ocorrendo uma dupla cobrança, de onde surgiu a sigla THC2.
A principal mudança trazida pela Resolução Antaq nº 34/2019, foi a previsão para a cobrança de SSE/THC2 de forma expressa, além de afirmar, em seu art. 9º, que na importação o SSE/THC2 “não faz parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daquelas cujas despesas são ressarcidas por meio de THC”.
Nesse sentido, a nova resolução buscou demonstrar que o serviço de segregação e entrega ou THC2 não seria remunerado pela THC e, portanto, sua cobrança seria legítima, apesar de muitos entenderem que na prática se trata do mesmo serviço e o operador portuário não foi capaz de demonstrar que o THC e o THC2 são serviços distintos. Ademais, a norma legal também aborda sanções às práticas consideradas abusivas ou ilegais e, nesse sentido, prevê um preço máximo a ser cobrado pelo SSE/THC2.
Após a publicação da Resolução Antaq, ocorreu apenas um julgamento de mérito pelo Tribunal Administrativo do Cade envolvendo a cobrança do referido título[7]. Os processos administrativos em andamento no Conselho discutem se a cobrança em função do serviço de segregação e entrega pelo operador portuário tem o condão de gerar efeitos anticoncorrenciais.
O operador portuário é a pessoa jurídica pré-qualificada para execução de operação portuária do porto organizado. Atua, no que concerne à movimentação de cargas no porto, em duas etapas. A primeira delas é descarregar os contêineres dos navios para colocar na pilha e ao realizar este serviço, o operador portuário cobra um valor a título de THC, que não é questionado no Cade. Em um segundo momento, o operador portuário movimenta a carga da pilha até o seu próprio armazém ou armazéns de terceiros. É justamente este segundo momento que é alvo de cobrança do SSE/THC2 e de questionamentos levados ao Cade por empresas que atuam no setor.
Para se compreender a dinâmica adotada pela autarquia, importante se faz abordar alguns posicionamentos proferidos no Processo Administrativo envolvendo a cobrança de SSE/THC2 julgado pelo Tribunal Administrativo em 2021, a fim de verificar como o Conselho se posicionou após a publicação da Resolução Antaq nº 34/2019.
O Conselheiro Relator Luiz Hoffmann, cujo voto apresentado foi o vencedor[8], se manifestou no sentido que os valores da cobrança do SSE/THC2 já estariam sendo remunerados por meio do THC. Destacou que é incontroverso que o operador portuário não cobra quando presta o serviço de armazenagem, ou seja, quando leva a carga para o seu próprio armazém, atuando de forma verticalizada. Ademais, destacou que o operador portuário não demonstrou que incorre em custos adicionais para poder fazer a cobrança de SSE/THC2 dos armazéns de terceiros (recintos alfandegados).
Nesse sentido, concluiu que o operador portuário abusa da posição dominante que detém, uma vez que é monopolista na cobrança de THC e aproveita dessa posição para fazer outra cobrança em duplicidade com caráter discriminatório – o SSE/THC2, sem qualquer justificativa econômica razoável. Ou seja, para o Relator, a Resolução Antaq nº 34/2019 não apresentou fato novo apto a ensejar a mudança de entendimento do Conselho, que já vinha condenando a cobrança de SSE/THC2 antes da vigência da referida Resolução.
Sobre este mesmo julgamento, o voto do Conselheiro Luis Braido[9] acompanhou o Conselheiro Relator Luiz Hoffmann apenas em suas conclusões. O Conselheiro comparou os arts. 9º das Resoluções Antaq nº 2.389/2012 e nº 34/2019[10] e concluiu que os dispositivos permitem as mesmas práticas, ou seja, permitem que o operador portuário abuse de sua posição dominante ao cobrar pelo SSE/THC2. Também destacou que o operador portuário, que atua em posição de monopolista, cobra pelo valor de SSE/THC2 apenas quando presta este serviço para concorrentes e não cobra quando atua de forma verticalizada e essa situação gera efeitos anticoncorrenciais.
Cabe salientar a posição divergente levantada pela Conselheira Lenisa Prado[11]. Para ela, o THC e o THC2 são diferentes tipos de serviço e englobam duas relações jurídicas distintas. Enquanto o primeiro trata de uma contraprestação exigida para todos os contêineres que são retirados dos navios, o segundo se refere à movimentação horizontal de cargas apenas para contêineres solicitados e não indiscriminadamente como ocorre com a THC. Assim, para a Conselheira, por se tratar de serviços diferenciados, não ocorre cobrança em duplicidade. Há que se ressaltar, no entanto, que esse posicionamento ficou vencido por não restar comprovada a distinção e individualização das atividades, nem justificativa econômica razoável para a realização da cobrança.
Apesar dos posicionamentos contrários ao Relator apresentados no Tribunal Administrativo, a maioria entendeu que a cobrança do SSE/THC2 pelo operador portuário é uma conduta anticoncorrencial, uma vez que o operador portuário abusa de sua posição dominante para realizar a cobrança. Pode ser observada uma completa assimetria de oportunidades, na medida em que o operador lança mão de estratégia heterodoxa, cobrando a tarifa para transportar a mercadoria para um armazém concorrente e não o fazendo quando suas instalações serão utilizadas, majorando, artificialmente, o custo para a concorrência.
O caso narrado evidencia com clareza a linha tênue que divide as competências da agência reguladora e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Existe, e é indubitável, uma interseção entre as atribuições de cada órgão, uma vez que a regulação setorial, na maior parte das vezes, impacta diretamente na esfera concorrencial, podendo ser o Cade instado a dirimir conflitos causados por ações anticompetitivas.
A priori, doutrinariamente, caberia às agências reguladoras a prevalência em relação à regulamentação da atividade econômica, em homenagem ao princípio da especialidade, como afirma OLIVEIRA:
Em razão da especialidade, deveria ser reconhecida, em princípio, a competência das agências reguladoras para promoção da concorrência nos setores econômicos regulados, salvo previsão legal em contrário ou celebração de instrumentos jurídicos específicos (ex.: convênios) entre o CADE e as autarquias. Em relação aos serviços públicos, em que não há livre-iniciativa e incidem exigências distintas daquelas encontradas nas atividades econômicas em geral (ex.: exigência de solidariedade etc.), não haveria que falar em atuação do CADE, mas, sim, das agências reguladoras.[12]
Outros exemplos de esbarros entre os órgãos podem ser encontrados na dinâmica da economia contemporânea. Vale dizer, à guisa de paradigma, que deve permanecer claro que enquanto as agências tratam de regulação setorial, inclusive em mercados que carecem de concorrência, o Cade, imbuído do espírito de autoridade em defesa da concorrência, deve agir de forma transversal, permeando todos os setores, porém, tão somente, nas circunstâncias em que a competitividade econômica se mostrar ameaçada por uma conduta anticoncorrencial.
Como alento e demonstração de crença no respeito à estrutura institucional do país, merece destaque o Memorando de Entendimentos nº 01/2021 firmado entre o Cade e Antaq, que objetiva a cooperação e atuação integrada entre as autarquias para estabelecer procedimentos que possibilitem a análise de indícios de abusividade e condutas anticoncorrenciais na cobrança de SSE/THC2. A assinatura deste Memorando sugere a possibilidade de eliminar ou, pelo menos, mitigar os conflitos entre decisões das autarquias, trazendo maior segurança para os agentes envolvidos. A estabilidade sobre essa questão, por sua vez, poderá conferir maior equilíbrio ao setor como um todo, tornando-o mais atrativo para investidores e granjeando um maior número de interessados.
Pode-se concluir que a insegurança jurídica, proveniente do conflito de entendimentos entre o Cade e agências reguladoras, pode ser reduzida quando for estabelecida a metodologia para divisão de atribuições, o que facilitaria a caracterização dos casos nos quais se faz necessária a regulação técnica e operacional, bem como aqueles que estariam sujeitos à análise de defesa da concorrência.
Não obstante a existência de competências concorrentes, o que deve ser buscado é a interação e o diálogo interinstitucional, determinando, de forma conjunta, a amplitude da intervenção do Estado na atividade econômica. A partir de uma meta alinhada não somente com as atribuições de cada órgão, mas também – importante – com a política econômica estatal, devem ser estabelecidas ações individuais e/ou conjuntas com vistas à persecução de um mesmo fim, qual seja, o estabelecimento de um ambiente onde prospere a livre iniciativa e a ampla concorrência visando ao impulso da economia do país.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.
[3] Disponível em:
<https://www.gov.br/antaq/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/copy_of_competencias>
Acessado em 22.12.2021.
[4] Disponível em:
<https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/competencias>
Acessado em 22.12.2021.
[5] FARACO, Alexandre Ditzel. Direito concorrencial e regulação. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, out./dez. 2013. Disponível em: <https://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=98881>.
Acessado em 22.12.2021.
[6] Estatístico Aquaviário 2.1.4 – 2020. Disponível em:
<http://anuario.antaq.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=painel%5Cantaq%20-%20anu%C3%A1rio%202014%20-%20v0.9.3.qvw&lang=pt-BR&host=QVS%40graneleiro&anonymous=true>
Acessado em 22.12.2021.
[7] Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Decisão publicada no DOU de 10 de fevereiro de 2021.
[8] CADE. Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto do Relator Conselheiro Luiz Hoffmann. 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yPyE8wIxrlV2F7dRUaYhWER3Tf7h6wP-LpvbXxH26q5AgMNpgrFhzVd8_xrzShRwUMxl4ziJ2GP0OL_znsaIdkq>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.
[9] CADE. Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto Vista Conselheiro Luis Braido, 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yP3O0a1GMZdlGqMAhNzTD2ftrt02zuieE4WDcb19wfaFhNjif7D9gKvFAiLFK1oICa5MoJsHYmd1VZPbkNNCu90>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.
[10] “Resolução Antaq 2389/2012 […] Art. 9º Os serviços de recebimento ou de entrega de cargas para qualquer outro modal de transporte, tanto dentro quanto fora dos limites do terminal portuário, não fazem parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso” e “Resolução Antaq 34/2019 […] Art. 9º O SSE na importação não faz parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso. Parágrafo único. No caso em que restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal na cobrança do SSE, a Antaq poderá estabelecer o preço máximo a ser cobrado a esse título, mediante prévio estabelecimento e publicidade dos critérios a serem utilizados para sua definição”.
[11] Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto Vista da Conselheira Lenisa Prado. 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yMtn-M9J6Btqm0_LpFfVrdZH0lf5FszZFutDobaLvg_VoUdm9mcJjWs-h9cOl2c-VwC6x76hsqZtw4X4I1RI6yQ>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.
[12] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.
* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.
Colaborador na plataforma WebAdvocacy.
Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.
** Catharina Araújo Sá é trainee do escritório Vilanova Advocacia, graduada em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB). Cursou o XVIII Curso de Extensão em Direito da Concorrência (UnB). Ex-estagiária da Coordenação-Geral de Análise Antitruste 8 (CGAA8) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Atuou na área de concorrencial e compliance em uma das maiores bancas de advocacia do País.