Fernando de Magalhães Furlan
Na semana passada, El Salvador, menor país da América Central continental e 3ª maior economia daquela região (PIB de US$ 25 bi, em 2020)[1], aprovou lei que oficializa a adoção do Bitcoin como moeda de curso oficial (moeda fiat ou moeda soberana) naquela jurisdição. Antes do Bitcoin, El Salvador já havia aberto mão de sua soberania monetária ao adotar o dólar estadunidense, em 2001.
Assim, a iniciativa de El Salvador de incluir o Bitcoin como moeda de curso forçado, uma “moeda” sobre a qual não terá qualquer controle sobre emissão ou circulação, não parece tão radical, se considerarmos que há duas décadas isso já acontece lá em relação ao dólar.
Ou seja, El Salvador não tem qualquer controle sobre a sua própria política monetária. Desta forma, qualquer medida anticíclica, para frear ou acelerar a economia, só pode ter caráter fiscal ou pelo aumento do nível de endividamento público (já alto)[2].
Lightning Network Strike[3], uma plataforma de processamento de pagamentos por criptografia, desenvolvido pela startup Zap Solutions, com sede em Chicago, é a tecnologia operacional por trás do anúncio de El Salvador.
Mas além da jogada política de um jovem presidente em primeiro mandato, a iniciativa tem também razões pragmáticas. Aproximadamente 20% a 25% do PIB do país são formados por remessas que emigrantes (cidadãos salvadorenhos vivendo no exterior) enviam de volta para o país. Isto representa 5 a 6 bilhões de dólares ao ano, uma quantia que não pode ser desprezada.
Além disso, historicamente esse montante transacionado internacionalmente pode ser tarifado em até 10% pelos serviços bancários/financeiros tradicionais e demorar vários dias para chegar a El Salvador. Em alguns casos, o destinatário tem até mesmo que realizar fisicamente a coleta da remessa.
Neste contexto, estamos falando de uma economia de 500 a 600 milhões de dólares ao ano, tanto para o cidadão, quanto para o país, pois a oficialização do Bitcoin será benéfica para as movimentações financeiras internacionais de salvadorenhos, pois a criptomoeda descentralizada/distribuída cobra uma taxa de cerca de apenas US$ 5 por transação.
Outro motivo por trás do anúncio, é o potencial que o Bitcoin pode ter em seu uso cotidiano, como meio de troca em transações pequenas, criando uma rede financeira aberta, que beneficiaria os cidadãos e empresas salvadorenhos. Lembrando que em El Salvador predomina o uso do dinheiro físico nas transações diárias, cerca de 70% das pessoas não têm conta bancária ou cartão de débito/crédito[4].
Contudo, há o grande desafio da volatilidade do preço do Bitcoin, que dificulta o seu uso cotidiano. Somente em 2021, o ativo mais que dobrou de valor e atingiu o recorde de US$ 64 mil, sendo negociado “atualmente” a US$ 37 mil, aproximadamente. Em 19 de maio deste ano, por exemplo, no espaço de algumas horas, o preço do Bitcoin caiu 30%.
Para evitar essas oscilações, foram criadas as chamadas stablecoins, que rastreiam moedas emitidas pelos governos (moedas fiat ou soberanas).
Além disso, uma série de criptomoedas menores está surgindo. No total, 10.000 estão listadas no CoinMarketCap[5], quase o dobro de um ano atrás. O Bitcoin ainda é responsável por 40% do valor total negociado em criptomoedas, em comparação a 70% em janeiro deste ano.
Além de adotar a criptomoeda como moeda oficial, o presidente de El Salvador informou que também instruiu a companhia estatal de eletricidade geotérmica do país a apresentar um plano para oferecer instalações para a mineração de Bitcoin com energia limpa e renovável, proveniente dos inúmeros vulcões do país[6].
As reações da comunidade financeira internacional, entretanto, já começaram. Kenneth Rogoff, professor de Harvard e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) afirmou que “os governos vão regulamentar e vencer o Bitcoin”[7]. Na mesma linha, o diretor de comunicações do FMI, Gerry Rice, disse que a adoção do Bitcoin como moeda de curso legal em El Salvador “levanta uma série de preocupações jurídicas e econômicas”, sem, contudo, identificá-las. Para o presidente do banco central da Suécia, Stefan Ingves, “o Bitcoin se tornou um ativo grande demais para escapar da regulação”[8]. Ele acredita que, à medida que o setor das criptomoedas crescer, naturalmente atrairá mais regulação. Isto porque a rápida expansão das criptomoedas no ano passado – US $ 2,4 trilhões em seu pico – atraiu a atenção jurídica e regulatória dos bancos centrais mundo afora.
Neste contexto de “estatização” do Bitcoin, também acompanhamos, recentemente, o prenúncio das moedas digitais soberanas, ou CBDCs (Central Bank Digital Currencies), moedas digitais dos bancos centrais que combinam a funcionalidade dos pagamentos eletrônicos com a acessibilidade universal do dinheiro, e prometem facilitar pagamentos e promover inclusão financeira. As CBDCs podem ser programadas, permitem maior controle sobre os fluxos financeiros no país e ajudam a reduzir os custos envolvidos na emissão de papel-moeda. Pelo menos 41 bancos centrais já se manifestaram sobre a possibilidade de emitir alguma forma de moeda digital até o fim de 2020, segundo registro do Banco de Compensações Internacionais (BIS).
A China desponta com testes que já somam dezenas de milhões de yuans digitais. O Brasil também faz parte do movimento e pode ter sua própria moeda digital nos próximos anos.
A moeda digital emitida por banco central (CBDC) é um passivo do banco, ao contrário das criptomoedas, que não são emitidas por nenhuma autoridade monetária, e tem conversibilidade garantida com as moedas nacionais convencionais. Além de funcionarem como reserva de valor, as moedas digitais de varejo podem ser utilizadas para realizar transferências via celular/tablet ou pagamentos off-line, por meio de dispositivos próprios, nos pontos de venda (points of sale – PoS).
As CBDCs podem ser uma alternativa segura, barata e eficiente para realizar pagamentos – domésticos e internacionais. Durante a pandemia, as medidas de isolamento social aceleraram a mudança de hábitos em direção aos pagamentos digitais. Ela acompanhou o aumento do e-commerce e outras formas de compras remotas, bem como a opção do público por métodos “sem contato”, nas transações financeiras.
Com a moeda digital, todos os cidadãos poderão ter uma conta junto ao banco central (ou receber uma espécie de token, código que equivale a uma quantia de CBDCs, para utilizar em qualquer estabelecimento). Assim, a CBDC pode vir a ser uma alternativa para incluir populações vulneráveis no sistema de pagamentos e reduzir o uso do dinheiro físico nos países em que o sistema bancário atual não atinge boa parte da população, como é o caso brasileiro.
As políticas emergenciais de distribuição de renda em resposta à crise do COVID-19 em vários países, confrontaram os governos com a necessidade de transferir dinheiro para o público de maneira rápida, segura e inclusiva, sem que as pessoas precisassem sair de casa.
As cédulas e moedas físicas não vão “sumir” imediatamente. Os bancos centrais devem seguir emitindo notas suficientes para atender à demanda daqueles que preferirem utilizar a moeda em meio físico. A ideia dos bancos centrais é que, conforme as pessoas se habituem às formas eletrônicas de guardar e transferir valores, a opção por uma moeda digital se torne natural. O papel dos bancos centrais será oferecer as duas opções para que empresas e indivíduos gradualmente substituam o papel-moeda pela moeda digital.
Por fim, um outro assunto relevante sobre o mundo cripto das últimas semanas foi o anúncio do Federal Bureau of Investigations – FBI relativo à recuperação de US$ 2,3 milhões de um resgate pago em Bitcoin aos hackers que fecharam a Colonial Pipeline, maior sistema de oleodutos para produtos petrolíferos refinados dos EUA, após identificarem a carteira virtual que haviam usado. Como todas as transações de Bitcoin são registradas em sua Blockchain, que é pública, deixam um rastro que permitiu identificar as IPs[9] de onde foram feitas as transações. Há, porém, criptomoedas que buscam fornecer maior anonimato, usando tecnologia de mascaramento. A Monero, por exemplo, tenta dificultar a vinculação de fluxos a uma identidade fixa, rastrear fundos ou observar o tamanho da transação.
[1] Fundo Monetário Internacional. Dados do país. El Salvador. Disponível em: https://www.imf.org/en/Countries/SLV. Acesso em: 17/06/2021.
[2] Fitch Ratings. Fitch Wire. El Salvador Budget Highlights Debt Risks, Funding Challenges. 06 Oct, 2020. https://www.fitchratings.com/research/sovereigns/el-salvador-budget-highlights-debt-risks-funding-challenges-06-10-2020. Acesso em: 17/06/2021.
[3] Lightning Network Strike. Zap Solutions. Disponível em: https://strike.me/. Acesso em: 17/06/2021.
[4] UOL Economia. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2021/06/09/congresso-aprova-lei-para-transformar-bitcoin-em-moeda-de-curso-legal-em-el-salvador.htm. Acesso em: 17/05/2021.
[5] CoinMarketCap. Disponível em: https://coinmarketcap.com/. Acesso em: 17/06/2021.
[6] Disponível em: https://exame.com/future-of-money/criptoativos/el-salvador-quer-minerar-bitcoin-com-energia-produzida-a-partir-de-vulcoes/. Acesso em: 17/06/2021.
[7] Disponível em: https://br.investing.com/news/cryptocurrency-news/governos-vencem-bitcoin-na-briga-por-liberdade-diz-professor-de-harvard-824171. Acesso em: 17/06/2021.
[8] Disponível em: https://www.moneytimes.com.br/presidente-do-banco-central-da-suecia-afirma-que-o-bitcoin-nao-ira-escapar-da-regulacao/. Acesso em: 17/06/2021.
[9] Sigla para Protocolo da Internet, ou (Internet Protocol) Esse protocolo funciona de forma semelhante ao CPF de uma pessoa física, permitindo que conexões e dispositivos sejam identificados a partir de uma sequência numérica. O IP que reconhece a comunicação entre dois dispositivos distintos, o TCP/IP ou o OSI. Já o protocolo que identifica conexões, ou seja, o CPF de um dispositivo conectado a internet é chamado de IP Address, ou endereço de protocolo da Internet. Cada aparelho ou dispositivo possui um IP fixo, enquanto a conexão com a internet gera IPs dinâmicos, também conhecido como IP externo.