Eduardo Molan Gaban*
Gabriel de Aguiar Tajra**
Os acelerados passos das Big Techs no que tange às transformações de produtos e serviços no mercado digital, bem como de seus respectivos efeitos disruptivos à concorrência, impulsionaram uma verdadeira corrida internacional de adaptação normativa por parte das autoridades antitruste. Corrida esta protagonizada não só para harmonizar assimetrias regulatórias decorrentes do anacronismo legislativo, mas também, e principalmente, para adequar os instrumentos de análise e aplicação normativa aos casos futuros.
Os Estados Unidos estudam mais uma relevante alteração legislativa, denominada de Competition and Antitrust Law Enforcement Reform Act of 2021 (acrônimo: CALERA)[1]. Apresentada pelo senador Amy Klobuchar, chefe do Subcomitê de Políticas Concorrenciais, Antitruste e de Direitos Consumeristas, trata-se de uma reforma substancial condizente à abordagem do Partido Democrata, mais intervencionista, que, nas palavras do próprio senador, busca “resolver um problema concorrencial massivo”[2].
Para tanto, a proposta legislativa busca alterar normativas anteriores, especialmente o Clayton Act, uma das principais normas norte-americanas voltadas à repressão de práticas anticompetitivas. Ainda, pretende aprimorar o arcabouço normativo de controle de estruturas a partir de novos parâmetros de análise de atos de concentração de notificação obrigatória, indicação de possíveis presunções e elementos de investigação em sede de práticas anticompetitivas, inclusive mediante proteção da figura dos denunciantes (whistleblowers), implementação de nova estrutura administrativa e orçamentária.
As alterações normativas ao controle de estruturas são possivelmente algumas das mais relevantes do CALERA. Assumiu-se que, por um lado, aquisições e fusões (concentração de mercado) têm o potencial de reduzir a competitividade empresarial, a inovação e mesmo a qualidade dos produtos e serviços. Por outro, entendeu-se que os Estados Unidos vivenciaram verdadeira consolidação de entendimentos jurisprudenciais favoráveis à não intervenção. Isso por meio de atribuição de foco quase exclusivo aos efeitos sobre preços de produtos e serviços (consumer-welfare approach), deixando de lado presunções de dominância, análise de efeitos estruturais de longo prazo etc.
A proposta de substituição da atual regra exigida para rejeição de atos de concentração, isto é, a “prova de substancial diminuição da competição”, passaria a ser “demonstração de criação de riscos apreciáveis capazes de materialmente reduzirem a competição”. Essa mudança será substancial e, se aprovada, facilitará a proibição de concentração econômica pelas autoridades antitruste norte-americanas. Há ainda algumas outras hipóteses de rejeição de atos de concentração, como a “formação de estruturas monopsônicas”, especialmente relevante aos mercados digitais.
Outras alterações relevantes abarcam a seção 7 do Clayton Act (Unlawful Acquisitions), desta vez voltadas às presunções de geração de efeitos negativos em atos de concentração. Além de criar várias hipóteses de rejeição de atos de concentração, o CALERA também amplia consideravelmente as hipóteses de inversão do ônus probatório no tocante à demonstração de efeitos de operações de concentração econômica. Nesse sentido, recairá majoritariamente sobre os players o ônus de demonstrar efeitos quando a operação de concentração econômica: a) resultar em acréscimo significativo da concentração de mercado; ou b) permitir que a empresa adquirente unilateralmente e com lucratividade venha a exercer poder de mercado; ou c) aumente materialmente a probabilidade de interação coordenada entre competidores.
Especificamente, serão averiguados pontos sensíveis como controle de ativos relevantes, poder de decisão ou poder de voto tanto por parte do grupo econômico adquirente quanto da empresa adquirida e, não menos importante, market share das partes.
A título de exemplo, se impugnada na justiça pelas autoridades antitruste norte-americanas, o juiz deve declarar que uma operação pode representar risco apreciável de diminuir materialmente a concorrência, ou tende a criar monopólio ou monopsônio no mercado ou afetando o mercado se: a) a empresa adquirente possuir mais de 50% do market share, tanto pelo lado da oferta como demanda;b) quaisquer das empresas possua, isoladamente, poder de mercado significativo e como resultado da operação venha a adquirir controle sobre ativos que aumentem a probabilidade de abusarem de sua posição dominante; c) a aquisição resulte na combinação de ativos e entidades que tenham probabilidade razoável de impedir, limitar ou prevenir efeitos disruptivos no mercado em análise; d) a adquirente acabe por possuir ações com direito a voto ou ativos da empresa adquirida totalizando valor superior a US$ 5 bilhões.
Os Estados Unidos atingiram o patamar de US$10 trilhões desde 2008 em operações de fusões e aquisições[3]. Os novos padrões de análise propostos pelo CALERA abrem margem a uma maior rigorosidade pela autoridade antitruste norte-americana, especialmente em face das exigências decorrentes do mercado digital e da ascensão de concentrações por contratos associativos (isto é, que não envolvam diretamente fusões ou aquisições).
As alterações no controle de estruturas não foram as únicas de grande efeito. O mesmo ocorreu em relação às práticas anticompetitivas. Segundo CALERA, consideram-se exclusionárias as condutas que criam desvantagens materiais aos competidores ou limitam suas habilidades de competição. De forma similar ao realizado para o controle de estruturas, foram adotados parâmetros e presunções de dominância também para o controle de condutas, especialmente no que tange ao critério de market share (superior a 50% ou poder de mercado significativo).
Nesse sentido, se acusada de prática anticompetitiva, o ônus da prova recairá sobre a empresa, que deverá demonstrar a preponderância de efeitos positivos ao mercado e à concorrência em contraposição aos fatos imputados.
Ainda em sentido similar ao controle de estruturas, em conjunção à presunção mencionada, as autoridades não serão mais obrigadas a: a) quantificar os danos aproximados da conduta anticompetitiva; b) provar a recusa em contratar; c) demonstrar que os preços estabelecidos no mercado eram inferiores aos preços de custos de concorrentes (para as hipóteses de preços predatórios); ou d) demonstrar a irracionalidade da conduta atacada.
Mesmo práticas que sejam adotadas para garantir conformidade à lei ou aquelas atinentes à aplicação e cumprimento forçado de direitos de propriedade intelectual e industrial seriam passíveis de configurar indícios de práticas anticompetitivas, não tão somente se analisadas por si só, mas em conjunto à possível estratégia de dominação de mercado em curso.
A CALERA ainda trouxe algumas inovações referentes a estrutura administrativa, aplicação de penas e proteção de denunciantes (whistleblowers). Em relação a estes últimos, a normativa procura estender às normas antitruste os mecanismos de não-retaliação já existentes nos programas de whistleblowers em vigor (por exemplo, no âmbito da Security and Exchange Commission – SEC). Especificamente, proibição de demissão, suspensão das atividades profissionais ou qualquer outra forma de discriminação a empregados que disponibilizem informações relevantes à autoridade antitruste ou que atuem como testemunhas ou partícipes na investigação.
No caso dos denunciantes não coautores, outra inovação interessante são os incentivos criados para denunciação, dentre as quais o pagamento de recompensa àquele que voluntariamente apresentou informações originais às autoridades que viabilizaram a recuperação de ativos até o limite de 30% sobre o montante da pena aplicada.
Em concomitância à previsão de denunciações com incentivos monetários, a CALERA também renovou o parâmetro das penalidades. Se aprovado, o antigo teto de US$ 100 milhões será substituído por penalidades de até 15% sobre o faturamento anual da empresa investigada, ou 30% sobre o faturamento no mercado em análise.
No que concerne à estrutura das administrativa, a CALERA aumentou consideravelmente a distribuição orçamentária da Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (“USDoJ”) e do Federal Trade Commission (“FTC”). Os valores anuais passarão de US$ 166,8 milhões e US$ 331 milhões referentes ao no de 2020, para US$ 484,5 milhões e US$ 651 milhões, respectivamente representando um acréscimo de 190,5% e 96,7%.
Além robustecer o orçamento das autoridades (USDoJ, Antitrust Division e da FTC), a CALERA inova criando subdivisão independente para estudos de mercado e revisão atos de concentração passados e aprovados por ambas as autoridades, o Competition Advocate (ou Advogado da Concorrência), o qual, embora passe a funcionar dentro da estrutura da FTC, possuirá independência funcional e equipe própria, se reportando à presidência da FTC.
As alterações propostas quebram paradigmas, isso é fato. Em consonância ao movimento “Hipster Antitruste”, ampliam-se as margens de discricionariedade, bem como levanta-se um maior espectro metodológico a partir de efeitos estruturais e sócio-políticos, como questões atinentes a desigualdades sociais, salário e mobilidade de funcionários, concentração do poder político e portabilidade ou interoperabilidade de dados[4].
Será a tão esperada revolução do antitruste?
[1] Disponível em: https://www.congress.gov/117/bills/s225/BILLS-117s225is.pdf.
[2] Disponível em: https://www.klobuchar.senate.gov/public/index.cfm/2021/2/senator-klobuchar-introduces-sweeping-bill-to-promote-competition-and-improve-antitrust-enforcement.
[3] Segundo dados levantados pelo próprio Congresso Americano na emenda.
[4] DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan. Direito Antitruste e Poder Econômico: o movimento populista e “Neo-brandeisiano”. In: Justiça Do Direito, v. 33, n. 3, 2019, p. 235.
[*] Doutor em Direito (PUC-SP), Diretor do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (IBCI), membro de Nishioka & Gaban Advogados, contato: gaban@nglaw.com.br
[**] Graduado em Direito (USP), Pesquisador do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (IBCI), membro de Nishioka & Gaban Advogados, contato: gabriel.tajra@nglaw.com.br