Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde o último Peer Review da OCDE, é uníssono entre doutrinadores brasileiros e estrangeiros a relevância que o enforcement concorrencial privado possui com relação ao aprimoramento da persecução pública. No Brasil, apesar da previsão normativa do Art. 47 da Lei 12.529/2011 possibilitar sua propositura, deficiências sistêmicas do sistema judiciário brasileiro e a dificuldade de equiparar as reparatórias concorrenciais ao sistema de reparação cível tradicional originaram um absoluto desestímulo ao crescimento deste tipo de demanda em território nacional.

Dentre as dificuldades desta equiparação, está a problemática de quantificação do valor do dano, uma vez que a captura do sobrepreço proveniente de condutas colusivas exige um robusto contrafactual, produzido a partir de exercícios econométricos não apenas complexos, como absolutamente distantes da realidade dos julgadores.

A metodologia acima descrita, contudo, possibilita unicamente o cômputo do sobrepreço em decorrência de condutas de natureza colusiva, ou seja, cuja ocorrência prejudica os demais entes da cadeia que precisarão absorver este aumento. Não obstante, é necessário relembrarmos que o Art. 47 não realiza qualquer delimitação de objeto, isto é, quanto a que tipo de infração econômica poderia vir a ensejar a propositura de uma ação reparatória privada. Do contrário, o artigo refere-se, de forma genérica, às “práticas que constituam infração à ordem econômica”, ou seja, incluindo-se também práticas de natureza unilateral, cujo cálculo do dano possui uma lógica diametralmente distinta.

Estas peculiaridades acentuaram ainda mais a coleção de desincentivos para que particulares ingressassem com estas ações no Brasil. Assim, em que pese a esperança de que o PL 11.275/2018 possa resolver parte relevante destes problemas – como as calorosas discussões sobre o prazo prescricional aplicável – a reparação de danos em sede de condutas unilaterais está ainda um passo atrás neste processo.

Enquanto isso, cinco dias atrás, na Inglaterra, teve início uma ação coletiva ajuizada em face do grupo Meta, hoje controlador do Facebook, cujos pedidos reparatórios somam aproximadamente 2,3 bilhões de libras. Trata-se de um pedido de reparação de danos com base no alegado abuso de posição dominante da plataforma Facebook durante o período de outubro de 2015 a dezembro de 2019, quando 44 milhões de usuários ingleses haveriam sido afetados por uma política de coleta de dados que, apesar de agressiva, como defendem os advogados da causa, seria essencial para que os usuários pudessem acessar os benefícios da rede social.

Retomando a discussão acerca das limitações para a difusão deste instrumento, para além do cálculo em si, há outras diferenças importantes e que vêm sendo mapeadas pela literatura estrangeira[1], como o grau de impacto da infração com relação aos competidores, o momento do dano, a duração e diferenciação do efeito sobre diferentes tipos de consumidores.

Com relação ao grau de impacto, além de prejudicar os demais entes ao longo da cadeia produtiva, condutas unilaterais possuem repercussões patrimoniais tanto para os consumidores diretos do infrator, quanto para os competidores[2], que atuam na mesma fase da cadeia. Isto ocorre porque, diferentemente do cartel, cujo intuito é apropriar-se de excedentes, similarmente ao fenômeno do monopolista, condutas unilaterais, como a utilização de preços predatórios, podem inicialmente inclusive beneficiar o consumidor, que se beneficiará de preços melhores.

Entretanto, uma vez que o incumbente tem sucesso ao excluir ou até mesmo coibir a entrada de novos competidores, a elevação de preços e possível deterioração da qualidade dos produtos é certa – caso contrário, não haveria racionalidade na conduta. Dessa maneira, a cobrança de lucros cessantes como reparação privada é não apenas mais óbvia, como também mais fácil de ser quantificada.

Sobre o momento do dano, diferentemente dos cartéis, as fases de implementação das condutas unilaterais são bastante demarcadas e geralmente remontam um fechamento, seguido por um atrito, onde ocorre a retirada dos demais concorrentes do mercado, e, em seguida, a recuperação, seguida pelo crescimento deste incumbente no mercado. Essas fases terão impacto direto não apenas na duração do efeito sobre concorrentes e consumidores, como também na forma com que são afetados, uma vez que, em razão do tratamento diferenciado com relação a consumidores específicos (por exemplo, oferecendo compensação a alguns deles), é possível que consumidores não sejam afetados de forma homogênea

Certamente, a proliferação da utilização de vieses comportamentais especialmente no contexto das plataformas digitais pode acentuar este fenômeno, ocasionando um desnível no grau de afetação dos consumidores com relação à prática, o que precisará ser levado em conta no momento de quantificar o dano.

No que diz respeito à duração do efeito – em que pese as calorosas discussões que debatem uma extensão de efeitos no contexto dos cartéis em licitação – ao passo em que o efeito do cartel normalmente não se sustenta por muito tempo após o encerramento da prática colusiva (o que também dependerá de características próprias de cada mercado, como a elasticidade da demanda, por exemplo), condutas unilaterais poderão implicar em saídas forçadas ou entradas impedidas, o que possibilita que os efeitos da infração perdurem por muito tempo após a cessação da conduta.

Ora, todas estas distinções carecem de um tratamento próprio e chamam atenção para a necessidade de fortalecer o enforcement concorrencial privado também com relação às condutas unilaterais – o que pode não apenas assumir a forma de tutelas reparatórias, como ressaltaram Camargo e Violada (2021)[3], mas também, no formato das chamadas “stand-alone suits”, de tutelas declaratórias, desconstitutivas, inibitórias ou mesmo reintegrativas.

Com o crescimento na quantidade de casos envolvendo infrações unilaterais e discutindo complexidades adicionais no que diz respeito às características inerentes às plataformas, observemos as cenas dos próximos capítulos. Mardsden (2013)[4], ao referir-se sobre a interação entre os dois tipos de enforcement, manifestou o entendimento de que o ideal seria que sua interação seguisse um modelo de engrenagens, como um veículo híbrido, que pudesse alternar suas baterias de acordo com a necessidade naquele momento. Ainda há muita estrada pela frente até que o Brasil possa atingir este “estado da arte” de aplicação do Direito Concorrencial, mas é possível que os novos desafios trazidos com a proliferação de condutas unilaterais possam acelerar este processo.


[1] MAIER-RIGAUD, Frank P.; SCHWALBE, Ulrich. Quantification of Antitrust Damages. In: ASHTON, David; HENRY, David. Competition Damages Actions in the EU: Law and Practice, 2013.

[2] Sobre este tema, a American Bar Association, em publicação que trata sobre a prova nas ações reparatórias, igualmente ressalta tal diferenciação: “Thus, exclusionary condut cases may be brought by either a rival or a customer (or class of customers). In this way, exclusionary conduct cases differ from price-fixing cases, in which competitors to the price-fixing conspirators typically do not have a claim to antitrust injury”, in: AMERICAN BAR ASSOCIATION. Proving antitrust damages: legal and economic issues. 3a Ed. Chicago: 2017, p. 275.

[3] GOMES, Adriano Camargo; VIOLADA, Kelly Fortes. Private enforcement do direito concorrencial: a tutela dos direitos nos casos de conduta unilateral. In MOTTA, Ricardo; OLIMPIA, Anna. Concorrência: um olhar contemporâneo sobre condutas unilaterais. São Paulo: Editora Singular, 2021, p. 125-142.

[4] MARSDEN, Philip. Public-Private for effective enforcement: some “hybrid” insights? In: FABBIO, Philipp, MARSDEN, Philip; WALLER, Spencer Weber. Antitrust Marathon V: When in Rome Public and Private Enforcement of Competition Law. European Competition Journal, Vol. 9, Número 3, 2013, p. 510-511.

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