Mauro Grinberg

Não há memória de medidas antecipadas de produção de prova no direito concorrencial administrativo brasileiro. Todavia, em se tratando de direito administrativo sancionador. Deveria haver, tal a sua importância. Há situações em que a prova pode e deve ser antecipada, sobretudo tendo em vista a possibilidade do seu perecimento. Podemos mencionar algumas dessas situações (a primeira é clássica): (i) oitiva de testemunha com doença terminal, degenerativa ou de qualquer forma inabilitante (inclusive pelo possível prejuízo da memória), (ii) oitiva de testemunha em vias de transferência para o exterior, sobretudo em locais de comunicação difícil (inclusive zonas de guerras), (iii) perícia em instalação que precisa de reforma para sua utilização normal, (iv) perícia em máquina cuja configuração deve mudar, (v) verificação (tecnicamente inspeção) em pontos de venda para constatação da presença de produtos importados (para definição do mercado relevante geográfico), (vi) provas (sobretudo documentais) em poder de terceiros, com risco de sua perda, (vii) manutenção de documentos contábeis que de outra forma podem ser inutilizados (de acordo com as regras tributárias), etc.

Obviamente há limites para a produção antecipada de prova, a começar pelo que consta do Tema Repetitivo 455 da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. Vejamos a redação do artigo mencionado: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes (…)”.

Não há limites para o tipo de prova a ser produzida, como bem esclarece Cândido Rangel Dinamarco: “Tanto a prova testemunhal comporta produção antecipada, quanto a pericial, o depoimento pessoal, a inspeção judicial ou mesmo a documental”[1]. Ao rol exemplificativo de Cândido Rangel Dinamarco devem ser acrescentadas a exibição de documento ou coisa, a prova econômica, enfim toda a gama de provas possíveis.

Com a sua proverbial clareza, diz José Rogério Cruz e Tucci que “trata-se, portanto, de expediente processual apto a constituir prova para eventualmente, no futuro, ser incorporada em outro processo (…) como mecanismo eficaz para que seja aferida a viabilidade de potencial e sucessiva investida judicial”.[2] Assim, uma das vantagens da produção antecipada de prova é evitar demandas ao se verificar, antecipadamente e se for o caso, que a prova é débil; trata-se claramente de uma medida de economia processual, ao se evitar possíveis demandas nas quais a prova não para em pé.

Os óbices à aplicação da matéria processual penal no direito administrativo sancionador devem desde logo ser desconsiderados, uma vez que tanto um como o outro são vertentes do direito sancionador. Como diz Alexandre Cordeiro, “o direito administrativo sancionador e o direito penal originam-se da mesma base, seja o direito administrativo originado do próprio direito penal ou ambos do Poder Punitivo Estatal. Para os Unitaristas o poder sancionador do Estado é um só, do qual nasce todo o poder repressivo do Estado”[3].

Mais ainda, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) prevista no art. 115 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) deve também nos remeter ao art. 381 do CPC e seus três incisos, para os quais “a produção antecipada da prova será admitida nos casos em que” “haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação”, “a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito” e “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.

Quanto à aplicação subsidiária do CPC, Gabriela Reis Paiva Monteiro pondera que “dada a sua aplicação subsidiária e supletiva, novos dispositivos do CPC/2015 poderão incidir sobre o processo administrativo sancionador de competência do Cade, seja para (i) completar suas lacunas ou omissões legais (função integrativa subsidiária) ou para (ii) complementar ou otimizar os seus dispositivos processuais (função integrativa supletiva)”[4]. Isso nos leva a entender que a medida de produção antecipada de prova no processo administrativo sancionador concorrencial é integrativa da LDC, preenchendo uma clara lacuna pois a prova obviamente não pode perecer e consequentemente prejudicar os legitimamente interessados.

Curioso é o fato da produção antecipada de prova não ter sido tratada no CPC como medida de tutela de urgência, como bem demonstram Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[5]. Mas também é importante salientar que a produção antecipada de prova se esgota em si mesma, como estabelece o § 2º do art. 382 do CPC: “O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas”. Fica claro que a prova, ainda que antecipada, só será tratada na ação – no caso o processo administrativo sancionador – que se lhe suceder, se for o caso.

Trata-se de uma forma de cognição sumária, “cunhada, inicialmente, para retratar um estado de coisas excepcional, em que a gravidade da situação , por si, exigia atuação imediata, se preciso à margem ou mesmo em violação dos meios ordinários”, segundo Leonardo Faria Schenk[6]. Para Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, um dos objetivos da cognição sumária é “assegurar a viabilidade da realização de um direito ameaçado por perigo de dano iminente”[7], restando claro que aqui se enquadra a produção antecipada de prova.

Com efeito, já decidiu a 3ª Seção do STJ, no Recurso em Habeas Corpus (portanto em matéria penal, embora aqui aplicável, como visto acima) 64.086-DF, julgado em 23/11/2016, sendo Relator o Ministro Rogério Schietti Cruz, que “se, por um lado, a jurisdição penal tem o dever de evitar que o acusado seja processado e julgado à revelia, não pode, a seu turno, ter seus resultados comprometidos pelo tardio depoimento de pessoas que, pela natureza de seu ofício, testemunham diariamente a prática de crimes, cujo registro mnemônico se perde com a sucessão de fatos similares e o decurso do tempo”. Poder-se-á dizer que esse tipo de crime não alcança o direito concorrencial; todavia, podemos fazer a equivalência da atividade de contadores, que diuturnamente processam informações contábeis, muitas vezes sensíveis e/ou confidenciais.

Para a produção antecipada da prova, de acordo com o art. 381 do CPC, “o requerente apresentará as razões que justificam a necessidade de antecipação da prova e mencionará com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair”. Quanto à participação de outras partes neste procedimento, estabelece o § 1º do mesmo artigo que “o juiz determinará, de ofício ou a requerimento da parte, a citação de interessados na produção da prova ou no fato a ser provado, salvo se inexistente caráter contencioso”. Aqui há uma característica interessante do processo administrativo sancionador concorrencial, constante do § único do art. 1º da LDC, segundo o qual “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”.

A consequência aparenta (apenas aparenta) ser óbvia pois, se a coletividade é a parte, e se, no processo administrativo sancionador concorrencial, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é não apenas o acusador como também o julgador, deveria o Cade ser a única parte interessada. Obviamente o Ministério Público Federal (MPF), como fiscal da lei, deve fazer parte do procedimento pois não se pode falar de interesse público sem a sua participação. Mas não é possível deixar de lado, na produção antecipada de prova, os possíveis terceiros interessados, cuja gama é extremamente difícil de condensar mas cuja consideração a autoridade concorrencial não pode evitar.

Normalmente a consideração deverá levar em conta, por exemplo, os participantes do mesmo mercado relevante, cujo interesse pode ser claro. Se a prova antecipada for a oitiva de testemunhas, toda a gama de interessados pode comparecer, fazer (se for o caso) a contradita e perguntas, sob pena da prova não valer contra quem foi chamado. Mas deve ficar evidente que a produção antecipada de prova deve ser feita pela autoridade concorrencial, em aplicação subsidiária da legislação processual civil.

O desafio é grande mas não pode a autoridade concorrencial deixar de enfrenta-lo se e quando houver o pedido. Este, contudo, deve ser claro não só quanto à prova que quer ver produzida antecipadamente e quanto aos motivos da antecipação, mas também quanto às partes que podem ser interessadas, uma vez que qualquer uma delas poderá impugnar a produção da prova quando esta for usada.  Por exemplo, na prova testemunhal, um interessado poderá alegar que ela não vale contra si porque, não tendo sido chamado, não pode fazer a contradita nem perguntas à testemunha.

Vale continuar a trazer o STJ, no Agravo Regimental no Habeas Corpus 557.840-TO, julgado em 05/03/2020, Relator o Ministro Ribeiro Dantas: “A produção antecipada de provas, que visa à garantia da efetividade da prestação jurisdicional em razão do risco de seu perecimento, deve ser justificada em elementos concretos dos autos. Demais disso, o ato deve ser realizado com a presença de membro do Ministério Público e de defesa técnica, preservando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa”.

Falar em contraditório e ampla defesa em matéria de produção antecipada de prova traz aparentemente uma contradição com o § 4º do art. 382 do CPC: “Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso (…)”. Explica, entretanto, Maria Elizabeth de Castro Lopes: “Ao prever a citação dos interessados (§ 1º) a lei está possibilitando seu ingresso nos autos para arguir matéria de conteúdo processual ou descumprimento, pelo autor, dos requisitos da petição inicial, notadamente os requisitos para a antecipação”[8]

Finalmente, e ainda com o STJ, deve ser trazido o Recurso Especial 2.037.088-SP, julgado em 07/03/2023, Relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze, que “a disposição legal contida no art. 382, § 4º, do Código de Processo Civil não comporta interpretação meramente literal, como se no referido procedimento não houvesse espaço algum para o exercício do contraditório, sob pena de se incorrer em grave ofensa ao correlato princípio processual, à ampla defesa e ao devido processo legal”. Donde se deve observar que a defesa possível em casos de produção antecipada de prova é meramente procedimental, ou seja, dirigida apenas à possibilidade ou impossibilidade de sua realização, não se podendo entrar no mérito e na consequência da prova antecipadamente produzida.

De tudo o que se encontra acima exposto, é forçoso concluir que o Cade não deve se esquivar da produção antecipada de prova, não só em decorrência da aplicação subsidiária do CPC mas sobretudo em razão da importância do instituto. Não há dificuldade legal pois o CPC autoriza, sendo que o Ricade (Regimento Interno do Cade) pode ser alterado pelo próprio órgão – de acordo com o art. 9º, XV, da LDC – para acomodar legalmente a situação. O que não se pode é perder provas que podem se desfazer em decorrência do decurso do tempo.


[1] “Instituições de Direito Processual Civil”, Vol. III, Malheiros, SP, 2017, pág.112

[2] “Produção antecipada de prova e o devido processo legal”, Consultor Jurídico, 11/08/2023

[3] “Teoria normativa da culpabilidade no direito antitruste”, Jota, 09/08/2017

[4] “O Novo CPC Entrou em Vigor. E Agora? Considerações Iniciais sobre a Aplicação Subsidiária e Supletiva do CPC/2015 no Processo Antitruste Sancionador”, Revista de Defesa da Concorrência, Vol. 4pát., nº 2, 2016, pág. 158)

[5] “Código de Processo Civil Comentado”, RT, São Paulo, 2021, pág. 989

[6] “Cognição Sumária”, Saraiva, São Paulo, 2013, pág. 136

[7] “Prova e Convicção”, RT, São Paulo, 2015, pág. 83

[8] “Comentários ao Código de Processo Civil”, org. de Cassio Scarpinella Bueno, Saraiva, São Paulo, 2016, pág. 271


Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, ex-Presidente e atual Conselheiro do Ibrac, Mestre em Direito, advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil Advogados


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