Fernando de Magalhães Furlan
“If the advocates must be specialists, can we wholly ignore
the need for some specialization in the judicial systems?”[1]
Chief Justice Warren Burger, 1982
O sopesamento da relação custo-benefício na concepção e operação de juizados especializados é não somente natural, mas também indicada para se evitar o dispêndio de tempo e recursos, humanos e financeiros, de maneira desnecessária ou inconsistente.
As características de exclusividade e limitação dos juizados e tribunais especializados criam diversos benefícios e custos. Esses benefícios e custos podem ser classificados em quatro linhas principais de raciocínio: “(a) desenvolvimento do capital humano judicial; (b) criação de jurisprudência e doutrina uniformes e previsíveis; (c) impacto do sistema legal na economia política; e (d) ganhos na gestão eficiente dos tribunais”[1].
Como, afinal, podemos avaliar se a especialização influencia o resultado do caso ou a qualidade e utilidade da decisão? Como a especialização promove a proficiência e o quanto ela é útil para o julgador?
Alguns comentaristas[2] argumentam que “depois da nomeação de um juiz para uma corte especializada específica, a sua proficiência tende a aumentar”. A repetição de casos semelhantes solidifica a compreensão do julgador em relação a subáreas específicas, e a diversidade de casos dentro da jurisdição especializada pode preencher as lacunas no conhecimento do julgador sobre o conjunto das matérias sob a sua responsabilidade.
Os juízes especializados tendem a se tornar hábeis em questões substantivas e processuais que envolvem determinadas matérias, especialmente as altamente técnicas. Disso certamente devem resultar decisões mais precisas. Algumas dessas matérias poderão exigir treinamento extralegal como, por exemplo, fundamentos econômicos, finanças, engenharia e ciências aplicadas[3].
Além disso, juizados especializados podem estimular o surgimento de advogados especializados que incentivem o julgador a se manter atualizado e com uma formação contínua. Por sua vez, os julgadores têm um forte incentivo para investir o tempo necessário para aprender mais sobre áreas do conhecimento jurídico nas quais eles permanecerão engajados.
Advogados e servidores são também falíveis e juízes especializados podem reduzir a probabilidade de “inadvertência simples”[4], numa determinada decisão. Isto é, por sua experiência e conhecimento conseguem compensar descuidos de advogados e auxiliares. Também podem reduzir a chance de uma parte ganhar ou perder um caso similar apenas por causa de um desequilíbrio na qualidade da advocacia. Além disso, a presença de mais de um julgador na mesma área de especialização e até no mesmo local físico permite um intercâmbio mais produtivo entre os juízes.
A utilidade do conhecimento especializado depende, naturalmente, do estágio do processo. “Presumivelmente, a especialização do julgador é mais importante nas fases iniciais do processo”[5], quando os fatos, depoimentos, testemunhas, documentos e todo o acervo dos autos estiver sendo colhido e as primeiras decisões sendo tomadas.
Isso porque não há decisão prévia a considerar, o julgador terá que construir o caso por conta própria. “À medida que o caso avance para instâncias recursais, a necessidade de conhecimentos especializados tende a diminuir”[6], pelo menos se o julgador de primeira instância houver expressado bem o seu raciocínio e a sua conclusão, bem como tratado corretamente evidências e testemunhos.
Embora se admita que alguma familiaridade com uma determinada área específica do direito possa ser útil para um juiz desempenhando funções recursais, acredita-se que os benefícios de conhecimentos mais específicos e especializados seriam apenas marginais nesse caso, ao contrário do que ocorre com juízes de primeira instância.
Legomsky pondera que quanto maior o escopo da escolha do julgador, mais essencial é a compreensão profunda dos objetivos de políticas públicas relevantes, a redução da inadvertência, a coerência e a minimização da dependência das habilidades dos advogados envolvidos na controvérsia[7].
Em fases posteriores da adjudicação, o papel tipicamente limitado de um tribunal de revisão, apelação ou recursos, em questões de fato e ponderação de evidências, diminui o valor da especialização.
Em relação a questões fáticas e colheita de evidências, típicas das instâncias iniciais de um processo, a especialização pode ser favorável pois[8]:
a. a familiaridade com matérias jurídicas interconectadas facilita a compreensão e a inquirição de especialistas e peritos;
b. permite melhor avaliação de informações e dados técnicos de áreas como a economia;
c. a repetição de temas correlatos melhora o entendimento de fontes recorrentes de evidência e permite ao julgador uma melhor avaliação da influência e legitimidade dessas fontes sobre a qualidade da evidência.
A especialização também promove a eficiência na medida em que permite a redução do tempo necessário para que os advogados esclareçam o julgador sobre aspectos básicos de uma determinada área de especialização[9]. Essa redução de tempo acaba tendo repercussões financeiras, tanto para o Erário quanto para as partes do litígio.
Para a juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor, “não há dúvida de que quando um juiz tem uma especialização em uma área ou campo do direito, esse juiz pode se preparar para audiências com menos tempo e pode resolver problemas mais rapidamente e talvez melhor”[10].
Nos Estados Unidos, atualmente 28 estados contam com cortes de negócios (business courts) ou cortes especializadas em litígios complexos[11]. As cortes de negócios têm sido principalmente “uma divisão de um tribunal maior, com jurisdição limitada a alguns tipos de disputas comerciais, presididas por apenas alguns juízes especializados, com ênfase na gestão agressiva de casos”[12].
Essas cortes de negócios foram criadas “sob a premissa da inovação, eficiência e flexibilidade, especificamente adaptadas às necessidades dessas jurisdições”[13]. Enquanto algumas cortes de negócios são fisicamente separadas, com o seu próprio e exclusivo magistrado, outras estão integradas a um registro geral baseado em critérios de distribuição pré-estabelecidos.
As variáveis mais comuns entre essas cortes de negócios dizem respeito a: (i) retenção de um montante mínimo de controvérsias sobre negócios para critérios jurisdicionais de inclusão e distribuição; (ii) aceitação de transferências de jurisdição em todo o estado, distrito ou região abrangida; ou (iii) se a inclusão deve se limitar a apenas uma região específica. Adicionalmente, as jurisdições que adotam cortes de negócios devem decidir se os casos serão automaticamente atribuídos a elas, com base apenas em critérios de especialização pré-estabelecidos, ou se uma transferência está subordinada a um pedido das partes ou a recomendação do magistrado responsável[14].
A maioria dos modelos de cortes de negócios incorpora um conjunto complexo de litígios econômico-empresariais a uma lista preexistente de controvérsias genéricas. Tal modelo tem sido preferido porque permite que juízes já estabelecidos possam se responsabilizar por essas demandas judiciais complexas, sem a necessidade de nomeação de juízes exclusivos para a corte de negócios, reduzindo custos[15].
Aspectos da eficiência comparativa podem parecer óbvios para qualquer advogado ou juiz sem a necessidade de verificação empírica. Entretanto, já é possível realizar análise comparativa de desempenho, com as introduções altamente bem-sucedidas de cortes de negócios em Nova York e em Chicago. Em Nova York, o julgamento de casos comerciais aumentou 35% em 1993 (ano em que os juízes especializados começaram a atuar) em relação a 1992, uma eficiência atribuída à introdução dos juízes especializados[16]. O resultado de tais eficiências é que, com os mesmos recursos, o trabalho de mais de quatro juízes generalistas pode ser realizado por três juízes especializados (uma redução inicial de 25%).
Em mercados regulados, por exemplo, em que se faz necessário um planejamento de longo prazo e, portanto, é demandado um grau elevado de segurança jurídica e previsibilidade, os benefícios da especialização na promoção da consistência das decisões judiciais se tornam ainda mais pronunciados[17].
O dinamismo e a constante evolução de certas áreas do conhecimento jurídico, inclusive aquelas relacionadas à economia e aos negócios, também advogam a favor da especialização.
De outra parte, o volume de litígios em determinadas áreas do conhecimento jurídico é altamente relevante para o estabelecimento de um órgão jurisdicional especializado.
O Grupo de Trabalho sobre a Implementação da Política de Concorrência da Rede Internacional da Concorrência (International Competition Network – ICN), por exemplo, publicou um documento de trabalho[18] durante a sua 6ª Conferência Anual em Moscou, Rússia, em maio de 2007. Nesse documento, a ICN reafirmou que “a falta de conhecimentos especializados sobre questões de concorrência pelo Poder Judiciário é uma questão crucial que afeta a implementação da política de concorrência, especialmente para os países em desenvolvimento”.
Quando um sistema de tribunais de jurisdição geral é premido pelo volume de casos, e todos os esforços razoáveis para reduzir o número total de casos já foram feitos, então três opções básicas se colocam[19]:
- criar juizados de jurisdição genérica;
- expandir o tamanho dos juizados de competência geral existentes; ou
- grupos selecionados de casos para juizados especializados.
Em relatório[20] publicado em 2016, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defende que a especialização do Judiciário é uma questão de grau e pode variar entre a especialização parcial e completa. A especialização judicial, de acordo com aquela organização plurilateral, pode implicar pelo menos três vantagens:
a) maior eficiência decorrente da repetição e padronização das tarefas, das competências e da experiência dos juízes que analisam e compreendem as evidências e os argumentos econômicos. A eficiência pode ser medida por meio de indicador de duração da revisão judicial. Tempos de revisão menores gerarão maior certeza nos mercados, e o estabelecimento de prazos de conclusão da revisão judicial é uma prática positiva;
b) a uniformidade das decisões é alcançada por meio da concentração de casos semelhantes e de áreas correlatas em cortes específicas. Uma maior especialização em assuntos determinados e uma redução do número de juízes responsáveis promoverão a uniformidade de forma natural. Quanto maior a uniformidade na interpretação em temas jurídico-econômicos, maior a certeza e a previsibilidade no mercado; e
c) a melhoria da qualidade das decisões é resultado do aumento da habilidade e da experiência na aplicação correta de ramos relacionados do direito às evidências de um caso. Além disso, quando os juízes discordam, ainda que parcialmente, ou invertem as decisões administrativas quando equivocadas, isso pode ter um efeito na qualidade das decisões emitidas pelas próprias autoridades administrativas.
Aquele relatório também enfatiza outros fatores que influenciam o desempenho das cortes judiciais, tanto de jurisdição geral quanto especializada, envolvidas com temas econômico-empresariais. Dentre eles destacamos:
a) especialistas (economistas e demais profissionais) internos ou externos podem ajudar os juízes a interpretar evidências econômico-gerenciais e avaliar o seu valor probatório. Idealmente, os especialistas devem defender as suas próprias posições econômico-gerenciais, e tais posições devem estar firmemente fundamentadas em conceitos e modelos econômicos e na razoabilidade gerencial;
b) as competências técnicas dos servidores do Judiciário são essenciais para o desenvolvimento de uma especialização em matérias econômico-comerciais. Essas competências podem ser desenvolvidas e apoiadas num robusto sistema de formação continuada nessas matérias. A perspectiva internacional também é essencial para se ter acesso às melhores práticas e experiências de outras jurisdições;
c) devem ser adotados sistemas de gestão sólidos para uma administração confiável e transparente dos processos judiciais, bem como para a produção sistemática de bases de dados e estatísticas sobre os resultados obtidos; e
d) o orçamento da corte é um meio eficaz para aumentar a performance e reduzir a duração dos litígios. A experiência internacional mostra que o investimento em infraestrutura e tecnologia da informação contribui para tanto.
A OCDE[21] pondera que quando as cortes e tribunais são de jurisdição geral e a concentração de casos da mesma natureza não for possível, os juízes podem usar outros meios para complementar os seus próprios conhecimentos e experiências, como, por exemplo, a realização de audiências de instrução e esclarecimentos com as partes, antes dos julgamentos, e a utilização de peritos econômicos ou profissionais especializados para ajudar a estruturar o processo de coleta de fatos e dados e o entendimento de questões complexas para facilitar a compreensão por juízes de jurisdição geral.
Afinal, mesmo que o volume de casos em áreas específicas do direito não seja muito grande, a carga de trabalho nas cortes e tribunais generalistas seria sensivelmente reduzida, desde que os casos transferidos fossem suficientemente complexos, o que disponibilizaria uma boa porção do tempo dos juízes generalistas.
Em estudo realizado com juízes generalistas e, em especial, juízes de falência (bankrupcy judges) nos EUA, que são certamente especialistas, Rachlinski, Guthrie e Wistrich descobriam que o nível de dependência do pensamento intuitivo dos juízes de falência era comparável ao do de juízes generalistas. Entretanto, os juízes de falência se saíram melhor em desconsiderar alegações que prejudicariam a qualidade da sua tomada de decisão. Tal resultado deixou aberta a possibilidade de que a especialização dos juízes de falência ajude a melhorar os processos pelos quais eles tomam decisões[22].
No contexto brasileiro, consoante levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[23] em 2009, as ações judiciais envolvendo agências reguladoras e CADE e que foram finalizadas, apresentaram tempo de processamento médio de 36 meses. Para as ações judiciais ainda pendentes de decisão há um prazo estimado de processamento de 50 meses.
Enquanto ainda em curso uma ação judicial, as decisões administrativas oscilam entre ter os seus efeitos suspensos (geralmente por meio de medidas liminares ou cautelares) e serem restabelecidas em diversos graus recursais. Em um cenário no qual o Judiciário dá margem à insegurança e à incerteza para depois confirmar decisões administrativas, o estudo do CNJ indaga se uma jurisdição específica para lidar com essas disputas, em um foro célere e especializado, não seria uma resposta.
[1] KESAN, Jay P.; BALL, Gwendolyn G. Judicial experience and the efficiency and accuracy of patent adjudication: an empirical analysis of the case for a Specialized Patent Trial Court. Harvard Journal of Law & Technology, Volume 24, Number, 2 Spring 2011 (24 Harv. J. L. & Tech. 393 2010-2011), p. 400.
[2] WOODWARD D. R.; LEVIN, R. M. In Defense of Deference: Judicial Review of Agency Action, 31 Administrative Law Review, 329, 332, 1979. Apud LEGOMSKY. Op. cit., p. 8.
[3] BRUFF, Harold H. Specialized Courts in Administrative Law. HeinOnline: 43 Admin. L. Rev. 329, 199. Available Through: Pence Law Library, Washington College of Law.
[4] LEGOMSKY, Stephen H. Specialized justice: courts, administrative tribunals, and a cross-national theory of specialization. New York: Oxford University Press, 1990, p. 9.
[5] Idem, p. 9.
[6] Ibidem, p. 9.
[7] Ibidem, p 22.
[8] Ver entrevista com o Juiz Jeffries da Alta Corte da Nova Zelândia (New Zealand High Court). Apud LEGOMSKY, Stephen H. Op. cit., p. 10.
[9] LUBBERS, Jeffrey S. A unified Corps of Administrative Law Judges (ALJs): A proposal to Test the Idea at the Federal Level, 65, Judicature 266, p. 274.
[10] MIDDLETON, Martha. Specialty courts: two more Justices speak out. American bar Association Journal (January), 69:23, 1983.
[11] BERGAL, Jenni. Business Courts Take on Complex Corporate Conflicts. The Pew Charitable Trusts, Oct. 28, 2015.
[12] PEEPLES, Ralph and NYHEIM, Hanne. Beyond the Border: An International Perspective on Business Courts. 17:4 Bus. L. Today, Mar/Apr 2008.
[13] PITTMAN, Spence C. Business Courts: Specialized Courts for Complex Business Litigation. 87 Okla. B.J. 805 2016, p. 806. Available through: Pence Law Library, Washington College of Law.
[14] DRAHOZAL, Christopher R. Business Courts and the Future of Arbitration. 10 Cardozo f. of Conflict Resol. 491, 496, 2008.
[15] PITTMAN, Spence C. Op. cit., p. 806.
[16]AMERICAN BAR ASSOCIATION. Business courts: towards a more efficient judiciary. Business Lawyer. 52.3 (May 1997): p. 947-963.
[17] CURRIE, David P.; GOODMAN, Frank I. Judicial Review of Federal Administrative Action: Quest for the Optimum Forum. Columbia Law Review, Vol. 75, Nº 1, January 1975,
[18] “Concorrência e Judiciário – Estudo de Casos” (Competition and the Judiciary. 2nd. Phase – Case Studies). International Competition Network. Competition Policy Implementation Working Group. 6th ICN Annual Conference Moscow, Russia. May-June 2007.
[19] CURRIE, David P.; GOODMAN, Frank I. Op. cit., p. 63.
[20] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialized and Generalist Courts), 2016.
[21] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialised and Generalist Courts), 2016.
[22] GUTHRIE, Chris; RACHLINSKI, Jeffrey J.; WISTRICH, Andrew J. The “Hidden Judiciary”: An Empirical Examination of Executive Branch Justice, 58 DUKE L.J. 1477, 1479 (2009).
[23] AZEVEDO, Paulo Furquim de; FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. As inter-relações entre o processo administrativo e o judicial, sob a perspectiva da segurança jurídica do plano da concorrência econômica e da eficácia da regulação pública. São Paulo: USP, 2011. Relatório da pesquisa. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relat_pesquisa_usp_edital1_2009.pdf>. Acesso em: 20.09.2022.
[1] “Se os advogados precisam ser especialistas, podemos ignorar completamente a necessidade de alguma especialização nos sistemas judiciais?” (Juiz Warren Burger, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, 1982 – tradução livre).