Rodrigo Zingales*

Por quase dez dias ininterruptos os caminhoneiros brasileiros paralisaram o país, em maio de 2018, com a chamada “greve dos caminhoneiros”. O principal objetivo dessa greve foi o de protestar contra os preços elevados dos combustíveis e a política então adotada pela Petrobras de realizar reajustes quase diários e sem qualquer previsibilidade baseada em uma suposta “paridade internacional de preços”[1].

Na ocasião, foram bloqueadas rodovias em praticamente todos os estados da Federação, incluindo o Distrito Federal, com grande impacto no abastecimento de bens essenciais, duráveis e não duráveis. Além dos prejuízos causados à sociedade e à economia do país durante a greve, que se estimam superiores a R$ 30 bilhões, esta greve demonstrou ao Governo e à população brasileira a real importância que os combustíveis e os próprios caminhoneiros têm para o país.

No final de 2020 e início de 2021, as pressões dos caminhoneiros em relação ao preço dos combustíveis retomou com grande força, tendo o Governo do Presidente Jair Bolsonaro tomado, no início de fevereiro, algumas medidas para tentar controlar e reduzir os preços do diesel e da gasolina ofertados aos consumidores finais.

Os três principais alvos dessas medidas foram: (i) a Petrobras e sua política de preços; (ii) a elevada carga tributária, com maior ênfase à forma de cobrança do ICMS; e (iii) a necessidade de informações mais transparentes aos consumidores finais sobre os preços em diversos elos da cadeia.

Não há dúvidas que as medidas apresentadas pelo Executivo Federal, nesse início de 2021, poderão gerar algum impacto positivo na redução dos preços dos combustíveis. No entanto, na minha visão, não serão suficientes em razão: (i) da atual estrutura da cadeia brasileira de combustíveis líquidos, baseada em um monopólio no refino e um “oligopólio concertado” no elo da distribuição (incluindo aqui o armazenamento), o qual também controla por meio de contratos de exclusividade parcela considerável dos postos revendedores de combustíveis e do volume de gasolina, diesel e etanol ofertado e consumido no país; e (ii) do modelo regulatório implementado pela Agência Nacional do Petróleo – ANP e que tem, pelo menos na última década, incentivado e beneficiado estas estruturas monopolista e oligopolista nos elos a montante e a jusante da cadeia, criando barreiras à entrada e dificultando a concorrência e competitividade daqueles agentes já instalados no país.

Pretendo utilizar esta coluna para escrever uma série de artigos onde tentarei explicar de forma didática e resumida quais seriam, na minha visão, as medidas que o Estado brasileiro deveria adotar para atrair novos agentes no mercado e, com isso, garantir maior concorrência, competitividade, oferta e, por conseguinte, combustíveis de melhor qualidade e preços mais baixos aos consumidores.

Focarei este primeiro artigo nas medidas relacionadas à Petrobras, já adotadas pelo Executivo Federal, assim como aquelas que poderiam também ser implementadas no setor de refino.

Nesse sentido e a despeito de Lei Geral do Petróleo, editada em 1997, ter visado a quebra do monopólio legal da Petrobras e a abertura de todos os elos da cadeia brasileira de combustíveis líquidos a novos agentes de forma a introduzir e garantir um ambiente de liberdade econômica e livre concorrência, o que se tem visto na prática, desde então, é que a Petrobras continua detendo uma posição monopolista na oferta da gasolina A e do diesel A no mercado brasileiro, com uma participação no segmento de refino de aproximadamente 98%. Lembrando que o diesel A e a gasolina A são os principais insumos para a formulação do diesel B e da gasolina C comuns, utilizados no abastecimento de caminhões, utilitários, carros de passeio e motos.

Esta posição monopolista fica ainda mais evidente quando a Petrobras é também detentora das principais infraestruturas essenciais necessárias para o escoamento da produção de suas refinarias e, ainda, da importação de diesel e gasolina.

Observa-se, contudo, que antes de analisar as medidas implementadas em relação à Petrobras, é importante citar que por muitos governos, a Petrobras serviu como um importante veículo de implementação de políticas públicas, seja para controlar os preços dos combustíveis no país – os quais impactam diretamente na inflação – seja ainda para proteger a então chamada “soberania nacional do petróleo”.

Esta função da Petrobras passou a ser minimizada a partir do governo do então Presidente Michel Temer, quando se determinou que a companhia deveria focar suas atividades na busca de lucros e da valorização de suas ações vendidas no mercado. Esta nova função da Petrobras foi mantida pelo Presidente Jair Bolsonaro no início de seu mandato, a partir da nomeação de Roberto Castello Branco para a presidência da Petrobras e do alinhamento de continuidade de sua política de precificação baseada na “paridade de preços internacionais”.

Especificamente sobre este aspecto, se a decisão do Estado brasileiro é aquela de tornar a Petrobras uma simples empresa de mercado, a princípio, não haveria qualquer reparo a se fazer quanto à implementação de uma gestão baseada na otimização de seus ativos e produção e geração de lucros a seus acionistas e valorização de suas ações no mercado.

No entanto, não se pode admitir que uma sociedade de economia mista, que teve a sua posição monopolista construída a partir da Lei e de investimentos estatais, passe a adotar políticas de preços que visem garantir a seus acionistas lucros de monopólio, os quais são muito superiores àqueles usuais de um mercado liberal.

Segundo estudos realizados[2] e números divulgados[3], percebe-se que na prática os preços da gasolina A e do diesel A praticados pela Petrobras no mercado interno têm sido, nos últimos anos, bem acima dos chamados “preços de mercado internacional”. Destaca-se, por exemplo, o lucro registrado pela companhia no segmento de refino, o qual teria superado, nos anos de 2019 e 2020, não apenas as expectativas dos avalistas, como principalmente os lucros registrados pelas principais e maiores empresas internacionais de capital 100% privado.

Uma mudança na política de gestão e precificação da Petrobras, baseada na otimização de seus ativos e em uma real e efetiva paridade com os preços do mercado internacional, torna-se, portanto, essencial para que haja preços mais baixos e competitivos no mercado interno, ao invés dos preços e lucros de monopólio vistos nos últimos anos e que apenas beneficiaram os acionistas e gestores da petrolífera.

Além dessa mudança, se a intenção do Estado brasileiro for realmente aquela de fazer com que a Petrobras seja apenas um agente econômico – sem qualquer função para formulação de políticas públicas – é também acertada a decisão de alienar a totalidade ou parte de suas refinarias de forma a atrair novos agentes e a criar maior concorrência e competitividade para este elo a montante da cadeia brasileira de combustíveis líquidos.

Para tanto, contudo, a alienação das refinarias e infraestruturas essenciaispara produção, comercialização e importação de gasolina A e diesel A deve ser realizada a terceiros não participantes dos mercados a jusantes[4]; ou seja, as empresas adquirentes não devem ter qualquer presença nos segmentos de distribuição / armazenagem e revenda de combustíveis líquidos.

Isso porque, por outro lado, se as refinarias e as infraestruturas essenciais da Petrobras forem alienadas a grupos que já atuem nos segmentos de distribuição (incluindo-se aqui o armazenamento em bases primárias e secundárias) e revenda de combustíveis líquidos, corre-se um grande risco de haver uma elevação no nível de concentração nesses segmentos a jusante – cuja concentração já é elevada, diga-se de passagem[5] – e, portanto, de ser reproduzido no Brasil, o que ocorreu nos Estados Unidos da América com a Standard Oil, no final do século XIX e início do século XX, ou o que ocorre na Espanha[6] atualmente, onde apenas um pequeno número de empresas controla toda a cadeia de petróleo, desde a produção e refino até a sua distribuição e revenda. 

Ocorre que, também em relação a esse ponto, a Petrobras e seus acionistas parecem não querer ajudar o Brasil. Afinal, recentemente a companhia assinou com os Grupos Raízen e Ultra (controladores das duas principais distribuidoras do país: Raízen/Shell e Ipiranga) memorandos de entendimento para a alienação de duas de suas principais refinarias localizadas no Sul do País e, consequentemente, de seus ativos e infraestruturas essenciais.

A alienação dessas refinarias a esses dois grupos, além de lhes transferir os monopólios locais do refino, deverá acarretar ainda na eliminação – ou redução considerável – da concorrência no segmento de distribuição e revenda. Afinal, ao adquirirem essas refinarias, Raízen e Ipiranga não terão incentivos para vender gasolina A e diesel A às distribuidoras locais e regionais de combustíveis, concorrentes daquelas.

Isso significará, em outros termos, que as distribuidoras de menor porte terão que continuar comprando esses combustíveis de refinarias da Petrobras, porém localizadas em outros estados ou regiões. Isso certamente encarecerá o custo de frete e, consequentemente, o preço da gasolina A e do diesel B ofertados aos postos revendedores e, consequentemente, consumidos pelos consumidores finais.

Logo, se confirmada a decisão de desinvestimento da Petrobras no setor de refino e o interesse do Governo brasileiro de garantir maior concorrência em toda a cadeia e preços mais baixos dos combustíveis aos consumidores finais, é indispensável que as refinarias da Petrobras e suas infraestruturas essenciais sejam alienadas a grupos econômicos que não estejam nos elos a jusante; e, ainda, garantir, por meio de legislação federal ou da regulação da ANP, que outros agentes tenham acesso a essas infraestruturas essenciais em condições isonômicas. Afinal, a importação de combustíveis também é uma forma eficaz de geração de pressões competitivas e garantia de maior oferta e preços mais baixos e competitivos.


[1] Ressalte-se que o próprio preço internacional do Petróleo decorre de um “cartel institucional” formado pelos principais países exportadores de petróleo e que se encontram organizados na chamada OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) ou em inglês, OPEC. Disponível em <https://www.opec.org/opec_web/en/>. Acessado em 04.03.2021. Ou seja, não reflete preços de mercado baseados nos custos e regras de oferta e demanda; mas, sim, nos custos de oportunidade dos agentes econômicos de seguirem os preços definidos e cobrados pelos principais produtores e exportadores mundiais de petróleo. Logo, também esses “preços internacionais” devem ser tratados pela Petrobras e o Governo Brasileiro de forma relativizada para fins da precificação interna dos combustíveis, especialmente, quando a maioria do petróleo utilizado como insumo no refino tem como origem o próprio Brasil.

[2] Vide, por exemplo, avaliação realizada pelo Departamento de Estudos Econômicos do CADE, na Nota Técnica nº 37/2018/DEE/CADE (“Nota Técnica DEE”). Disponível em <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yMRAuO0RdPFR3axgUo1p5aEXeb7GFwjIzaf516RFimU3OmwsPFN0Qmj7ypqv0NgKqWHcLPfGYf7b2RCG2j0bLo2>. Acessado em 25.02.2021, p. 52 e ss. 

[3] Disponível em <https://oglobo.globo.com/economia/petrobras-surpreende-com-lucro-recorde-de-599-bi-no-4-tri-de-2020-no-ultimo-balanco-de-castello-branco-1-24897390>. Acessado em 25.02.2021.

[4] Ressalte-se que esta proposta foi apresentada no TCC celebrado entre a Petrobras e o CADE, no entanto, ali não foi feita qualquer restrição a grupos econômicos atuantes em mercados a jusante virem a adquirir essas refinarias e infraestruturas essenciais; restrição esta, contudo, apresentada no TCC do Gás, por exemplo (Disponíveis em < https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcfCo1Z24FrKe2wW9llyOv2ILUjTgBbLuIeOjayRJxADF> e < https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOB2_y38g8rskaIXKzeotVBWZN5hz5-udKHa5qGzaLmNapRiFbIw7vfgVhN9O1oE3ZqDt6d3zhFM95dglR3E9X3>. Acessados em 25.02.21).  

[5] Vide, por exemplo, a decisão proferida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE no chamado “Caso Alesat / Ipiranga”. Disponível em <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcRzz2y8r2JE-nPZSLitiIxD-J5oundb5E8CKrXYfULop>. Acessado em 26.02.2021.

[6] Vide “Diagnóstico da Concorrência na Distribuição e Revenda de Combustíveis Automotivos”, publicado pela ANP, em 2016. Disponível em <http://www.anp.gov.br/publicacoes/livros-e-revistas/2382-diagnostico-da-concorrencia-na-distribuicao-e-revenda-de-combustiveis-automotivos>. Acessado em 25.05.2020, p. 155 e ss.


[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. A presente carta reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.

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