Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência como um todo passa por um período de rediscussão de suas premissas. Isso porque as aparentemente sólidas bases do Antitruste norte-americanos, sedimentadas ao longo de várias décadas de repetição do breviário neoclássico da Escola de Chicago, vêm sendo progressivamente criticadas e até superadas em razão da ascensão de uma escola crítica – hoje já ocupando cargos de destaque na política de defesa da concorrência dos Estados Unidos – que questiona tanto as metodologias fixadas pelo posicionamento antes dominante quanto dogmas como a eleição do “bem-estar do consumidor” como finalidade do Direito da Concorrência, passando-se então a admitir outros fins a serem perseguidos por este ramo do direito.

Já se teve a oportunidade de afirmar nesta coluna a perplexidade que se deve ter diante da importação desse debate ao contexto brasileiro, no qual a Lei de Defesa da Concorrência não se fundamenta no direito norte-americano, mas sim em uma ordem econômica constitucional que remonta a tradição jurídica radicalmente diversa daquela que contamina a água de Chicago. Assim, da mesma maneira que é forte a tentação por aplicar-se o direito alheio quando suas metodologias parecem oferecer caminhos mais simples a questões essencialmente complexas em nosso sistema constitucional, é também comum a difusão de críticas a transformações operadas no direito estrangeiro que, na verdade, direcionam-se contra as próprias bases do direito pátrio.

É este o caso da chamada crítica ao “populismo antitruste”, normalmente definido como a instrumentalização do Direito da Concorrência para a obtenção de finalidades políticas, extrapolando seu cariz técnico de tutela dos mercados e do bem-estar do consumidor para tutelar também outros bens jurídicos (que, normalmente, teriam maior interesse eleitoral). Chama a atenção, nesse ponto, a ambivalência que marca o conceito de populismo para os seus críticos no Direito da Concorrência, que não raro aproximam a utilização do Antitruste para a promoção de outros objetivos que não a proteção do bem-estar do consumidor conforme definida por Bork (ou, mutatis mutandis, a eficiência alocativa dos mercados), movimento comumente associado ao “populismo antitruste”, da ascensão de governos populistas, que, caracterizados por algum grau de autoritarismo, imprimiriam tal atributo também à política de defesa da concorrência ao torná-la mais interventiva sobre os mercados.

Conforme explica Hovenkamp, a inserção do Direito da Concorrência no debate político é de fundamental importância para a própria difusão da livre concorrência, no entanto a utilização do Antitruste como ferramenta de política econômica muitas vezes se opõe ao que o autor denomina “Antitruste Técnico”, isto é, as abordagens de Direito da Concorrência que estabelecem o conjunto de circunstâncias sociais desejáveis para que se obtenha um ambiente concorrencial considerado saudável, a serem perseguidas com a implementação das normas de defesa da concorrência em prol do incremento da eficiência alocativa, da eficiência produtiva, e do bem-estar do consumidor[1]. A preocupação do Direito da Concorrência, assim, seria com o poder econômico propriamente dito, e não com o poder político, de forma que se teria de partir da premissa de que haveria uma rigorosa separação entre as duas searas.

Acontece que partir da premissa abstrata e metafísica de que o poder econômico pode ser analisado de maneira completamente estéril e controlada, indene de influências do poder político, significa ignorar não somente a natureza do poder e de suas repercussões, mas principalmente ignorar o contexto social complexo em que são essas repercussões produzidas. Da mesma maneira, entender-se que o Direito da Concorrência deve ser aplicado com base em pressupostos técnicos objetivamente definidos, em contraposição a visões mais abrangentes e preocupadas com outros objetivos – que seriam, então, denominadas populistas e atécnicas, na medida em que apelariam para o pathos em lugar do logos –, significa, especialmente na matriz constitucional brasileira, ignorar que somente se pode pensar em livre concorrência em conjunto com a valorização do trabalho humano, a justiça social, a soberania nacional, a propriedade privada e sua função social, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego.

Atécnico seria, por conseguinte, entender que o Direito da Concorrência brasileiro deveria partir de premissas outras que não aquelas fixadas pela Constituição da República, o que acaba ocorrendo especialmente quando são adotadas compreensões abrangentes e universalizantes sobre o Antitruste (ou, ainda, que advoguem pela “convergência” das políticas de defesa da concorrência), que no mais das vezes ignoram as distintas tensões a que são submetidas as diferentes jurisdições. Ignora-se, aliás, as dilacerantes desigualdades que marcam sobretudo os países da periferia global, que não elaboraram regimes constitucionais protetivos por outro motivo senão a necessidade de tutela dessas desigualdades, das riquezas naturais constantemente submetidas à exploração desmedida, do desemprego e da exploração brutal do trabalho humano, do fantasma da fome que já assombra o cotidiano de mais de trinta milhões de brasileiros, dentre muitas outras tensões que definem o comportamento do indivíduo muito mais do que seu ímpeto de comprar ou não produtos premium ou de buscar um hospital a um determinado raio de sua residência.

A crítica ao dito “populismo” parece deliberadamente ignorar a realidade complexa em que se insere o Direito da Concorrência para guindá-lo ao posto de técnica isenta, aplicável em um ambiente controlado e indene que muito mais se assemelha à paz de cemitério repleto dos sepulcros caiados mencionados pelo evangelista. Afirma Schrepel[2] que, nos últimos trinta anos, o Direito da Concorrência (norte-americano) afastou-se de “ideias populistas” que o instrumentalizariam como uma “simples ferramenta política” (simple political tool). Evidentemente que o Direito da Concorrência não é uma simples ferramenta política, ou, no mínimo, não é apenas uma ferramenta política, porém ignorar o papel político do Direito da Concorrência – assim como a sua importante função de implementação de políticas públicas – é posicionamento que não somente beira a ingenuidade épica a que alude Adorno[3] (na medida em que se limita a expor um único aspecto de uma realidade complexa em prol da beleza da narrativa), como procura ocultar por detrás da objetividade técnica das metodologias econômicas a escolha ideológica pela promoção da eficiência alocativa (no mais das vezes travestida de “bem-estar do consumidor”).

O que Schrepel critica, assim, é o fato de que aquilo que denomina populismo – ou, na expressão que o autor cunhou, nas abordagens “românticas” do Direito da Concorrência – demoniza uma elite “tecnológica” (sendo notável o receio do autor com a carga valorativa da expressão – possivelmente mais precisa – “tecnocrática”) cujos interesses seriam contrários àqueles dos dominados, de sorte que consumidores e pequenos empresários seriam constantemente oprimidos pelas grandes corporações e, na atualidade, pelos gigantes tecnológicos, por mais que tais agentes dominantes possam eventualmente colaborar para dinamizar o sistema econômico. Joshua Wright[4] e Aurelien Portuese, em sentido semelhante, sustentam que o “populismo” prejudica a objetividade e a certeza dos parâmetros de análise antitruste em prol de objetivos excessivamente vagos, ignorando a atividade inovativa de grandes agentes econômicos e os benefícios que produzem ao mercado.

É verdade que determinadas metodologias econômicas são capazes de identificar benefícios oriundos da concentração de mercado em torno de grandes agentes econômicos, ou mesmo na supressão da concorrência em razão de artifícios engenhosos produzidos por agentes inovadores – fenômeno comum na era digital. No entanto, partir da premissa de que o Direito da Concorrência deve se reduzir a essas metodologias econômicas e adotar objetivos que são, na verdade, simplificações deliberadas de elementos complexos de uma realidade social multifacetada, consiste em produzir um grosseiro arremedo dos mercados e especialmente das sociedades em desenvolvimento, castigadas por inúmeras mazelas que invariavelmente transformam a organização do sistema econômico em objeto de preocupação política.

Não se trata, assim, de criar maniqueísmos inexistentes ou demonizar determinados grupos de agentes ao defrontá-los com os mais afetados por suas práticas, mas sim de reconhecer que tutela do sistema econômico é inafastavelmente política, e apontar tais preocupações como populistas leva à invisibilização dos indivíduos ocultados pela figura diáfana do consumidor. É preocupante, aliás, que o consumidor seja diáfano a ponto de se lhe poder olhar através, pois ignora-se que o “consumidor” representa, em última análise, a massa de desfavorecidos cuja sorte se encontra abandonada ao arbítrio tanto da tecnocracia que alegadamente deveria orientar a aplicação do Direito da Concorrência quanto do poder econômico dos agentes dominantes. Daí a razão pela qual, especialmente em países em desenvolvimento, a crítica ao populismo muito mais se assemelha à síndrome de Caco Antibes: o horror a pobre.


[1] HOVENKAMP, Herbert. Whatever Did Happen to the Antitrust Movement? Notre Dame Law Review. v. 94, n. 2, pp. 583-638, 2018.

[2] SCHREPEL, Thibault. Antitrust without romance. New York University Journal of Law & Liberty. v. 13, n. 2, pp. 326-431, 2020.

[3] ADORNO, Theodor. Sobre a ingenuidade épica. In: _______. Notas de literatura I. São Paulo: 34, 2003. pp. 47-54.

[4] WRIGHT, Joshua; PORTUESE, Aurelien. Antitrust populismo: towards a taxonomy. Disponível em: https://deliverypdf.ssrn.com/delivery.php?ID=770086120101088002118088103078108102097019000017052006005002009125003114010120026098011033116011014051125089013101089079091101119041046028050091096095111118005100030052077045008066094083027001093087101091087071110090096023109016073113027015000081083097&EXT=pdf&INDEX=TRUE.

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