Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Qual é o papel das leis nas sociedades capitalistas e como o teor das leis criadas pelo Parlamento podem influenciar na construção de uma sociedade mais ou menos desigual? Por que há países mais iguais e outros com uma desigualdade social, cultural e econômica extrema? O que o teor das leis tem a ver com isso?

Sabe-se que o regime capitalista, fruto da Revolução de 1789 na França, teve seus primeiros firmes passos dados com a a promulgação da Lei dos 2 -17 de Março de 1791, cujo teor assegurou a liberdade do comércio e da indústria. Georges Ripert narra que “o legislador não entendia declarar apenas um princípio; queria destruir alguma coisa[1], destruir o regime antigo e, para isso, o papel da lei foi fundamental para assegurar “[a] propriedade individual, livre e sagrada, a convenção livremente formada e tendo foros de lei, como as duas bases que vão permitir a criação da nova ordem[2].

Para essa breve reflexão, voltamos a origem da estruturação do poder e vemos que Montesquieu, em “[o] espírito das leis” ao propor a teoria dos três poderes desenhou o exercício das atividades do Estado em três poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo, cujas funções principais seriam a de criar regras de conduta, julgar os conflitos de interesses e administrar o Estado,  respectivamente, tudo em observância as leis vigentes em cada espaço temporal.

Em toda a sua narrativa, o filósofo francês do século XVII (1689-1755) registra grande preocupação com a desigualdade social, denotando o importantíssimo papel que o legislador tem para não só criar regras de condutas, mas para pautar-se pela justiça e igualdade no desenvolvimento de sua atividade fim, para o bem da democracia.

Dois exemplos ilustram bem a preocupação do filósofo com a igualdade que deveria reger as leis criadas. Ao tratar da divisão igualitária de terras pelos antigos legisladores Licurgo e Rômulo, Montesquieu asseverou que “se quando o legislador efetuar tal divisão, ele não criar leis para mantê-la, não terá feito mais do que uma constituição passageira; a desigualdade entrará pelo lado que as leis não tiverem protegido e a república estará perdida.”[3] (g.n)

Em outra passagem, Montesquieu aduz que:

assim como a igualdade das riquezas mantem a frugalidade, a frugalidade mantém a igualdade das riquezas. Estas coisas, embora diferentes, são tais que não podem subsistir uma sem a outra; cada qual é a causa e o efeito, e quando uma delas é retirada da democracia e outra sempre a segue.

É verdade que quando a democracia está baseada no comércio pode muito bem acontecer que alguns particulares possuam grandes riquezas e os costumes não estejam corrompidos. É que o espírito do comércio traz consigo o espírito da frugalidade, de economia, de moderação, de trabalho, de sabedoria, de tranquilidade, de ordem e de regra. Assim, enquanto subsiste este espírito, as riquezas que ele produz não têm nenhum mau efeito. O mal acontece quando o excesso das riquezas destrói este espírito de comércio; assistimos subitamente ao nascimento das desordens da desigualdade, que ainda não haviam aparecido.

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“…falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto o mundo físico. Pois, embora aquele também possua leis que, por sua natureza, são invariáveis, ele não obedece a elas com ao mesma constância com a qual o mundo físico obedece as suas. A razão disto é que os seres particulares inteligentes são limitados por sua natureza e, portanto, sujeitos ao erro; e, por outro lado, é de sua natureza que eles atuem por si mesmos. Eles não obedecem, portanto, suas leis primitivas; e aquelas mesmas leis que dão a si mesmos, não obedecem a elas sempre.”[4]

Nessa toada, cerca de um século mais tarde, outro francês Claude Fréderic Bastiat, ao escrever a obra “A lei” (1850) tratou da mesma preocupação de Montesquieu ao aduzir que “a perversão da lei causa conflito” e que se “desviada de seu propósito, ela pode violar os direitos de propriedade em vez de garanti-los, então, qualquer pessoa quererá participar fazendo leis, seja para proteger a si próprio contra a espoliação, seja para espoliar os outros.[5]

É fato que 170 anos após Bastiat, Heather Boushey no livro Unbound: How Inequlity Constricts Our Economy and What We Can Do About it” torna ao mesmo ponto para chamar à atenção de que “a desigualdade obstrui o crescimento econômico e a regular dinâmica dos mercados[6].

Desse modo, a arquitetura jurídica dos mercados como um produto de criação das leis e das reais forças de poder influenciam diretamente na maior ou menor desigualdade social, cultural e econômica de um país, cabendo aos policymakers a criação de leis e políticas públicas que possam produzir maior igualdade entre os indivíduos, não só por uma questão humanitária, mas também por uma questão estratégica de país, na medida em que quanto mais pessoas capacitadas puderem produzir riqueza, maior será o resultado para o crescimento do país e para a melhora de sua condição de país em desenvolvimento para país, de fato, desenvolvido.

Sobre esse ponto, Heather Boushey diz que

“a desigualdade obstrui o crescimento econômico e a regular dinâmica dos mercados” e que “a extrema desigualdade que estamos vivenciando é decorrência da subversão das instituições públicas, de forma que o policymaking process necessário para dar apoio à economia foi afastado do interesse público e direcionado para promover o rent seeking de agentes econômicos privilegiados, permitindo-lhes obter mais lucros e rendas do que conseguiriam em um mercado realmente competitivo”.[7]

Desse modo, as leis que beneficiam, desmedidamente, mais o capital que o trabalho, sob a escusa de que é preciso “crescer o bolo para depois dividi-lo”, como concessão de benefícios fiscais, desonerações e financiamentos para grandes grupos econômicos detentores do capital precisam ser repensadas pelos nossos legisladores para que a real “liberdade econômica” tanto defendida possa ser, de fato, implementada. Liberdade econômica com subvenções do Estado não traduz o conceito da  “liberdade” que se postula.

Por outro lado, educar o seu povo não é só uma questão de justiça, mas também de estratégia de país para que os cidadãos brasileiros possam melhor contribuir para o crescimento do PIB do país. 

Seja por Montesquieu, Bastiat, Ripert ou Boushey é fato que ao longo dos séculos, desde o surgimento do capitalismo como uma nova ordem econômica, os autores identificam que o conteúdo da lei é fundamental para gerar uma sociedade mais igual, social, cultural e economicamente e, portanto, as práticas de rent seeking e logrolling, devem ser evitadas ou, minimamente, balanceadas para que a lei possa exercer, de fato, a sua grande função que é a de produzir normas de conduta abstratas e gerais beneficiando a todos os seus cidadãos e não só a parcela mais rica da sociedade, detentora das reais forças de poder.  A reflexão que se propõe, pois, é a de que pensemos, sobre o papel das leis e de seu conteúdo.


[1] RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. São Paulo: AM2 Editora, 2021, p. 25.

[2] Idem.

[3] MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 56.

[4] MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 12.

[5] BASTIAT, Claude Fréderic. A lei. 3. Ed. São Paulo: Ludwig, von Mises Brasil, 2010, p. 18.

[6] FRAZÃO, Ana. Novas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados: o que ainda temos a aprender com o livro de Heather Boushey, especialmente diante do cenário de crise da Covid 19. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/novas-perspectivas-para-a-regulacao-juridica-dos-mercados-parte-vi-0 8042020 em 11/05/2022.

[7] BOUSHEY, Heather. Unbound: How Inequlity Constricts Our Economy and What We Can Do About it. Cambridge: Harvard University Press, 2019, p. 85-86.

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