Marco Aurélio Bittencourt
O debate sobre o papel das artes na nossa cultura possui uma dinâmica complexa e interdependente. Podemos nos perguntar se a cultura molda as expressões artísticas ou se são as artes que ativamente influenciam a configuração cultural. Acredito que ambas as direções causais são válidas; tanto a arte registrando o presente, quanto sinalizando tendências futuras de nossa sociedade. Contudo, a tapeçaria cultural se torna ainda mais intrincada pela natureza multifacetada da arte, que se desdobra em diversas manifestações como a pintura, a literatura, o cinema, a música, o teatro e muitas outras formas de expressão cultural. Cada uma dessas vertentes pode exercer essa influência bidirecional ou atuar em apenas um sentido em diferentes momentos históricos, ou até mesmo em ambos simultaneamente. Gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o cinema brasileiro, não como um especialista, mas como um observador que se intenciona atento.
Minha memória do cinema brasileiro me leva à época da Companhia Vera Cruz, um período significativo para a nossa cinematografia. De fato, a ambição de criar uma “Hollywood brasileira” se evaporou, ficando na memória filmes como o Cangaceiro e Sinhá Moça nos primórdios dos anos de 1950. O primeiro dirigido por Lima Barreto e o segundo por Tom Payne (consultas ao google informam os detalhes).
Apesar da constante presença de filmes estrangeiros, o cinema nacional experimentou seu impulso criativo a partir da década de 1930. Foi nesse período de 1930/40 que surgiu uma produtora, a Cinédia, que iniciou a produção de filmes que dariam origem a um gênero característico: as chanchadas. Essas produções alcançaram grande popularidade nas décadas de 1940 e 1950, perdendo gradualmente sua força nos anos 1960.
As chanchadas eram filmes que exploravam temas da cultura popular, com destaque para o Carnaval, e apresentavam narrativas que combinavam elementos dramáticos e humorísticos, frequentemente incluindo números musicais. Nesse contexto, emergiu uma figura que se tornaria um ícone da cultura brasileira: Carmen Miranda, que participou de filmes como “Alô, Alô, Brasil” e “Alô, Alô, Carnaval”.
A Companhia Vera Cruz foi uma tentativa frustrada de superar a concorrência internacional, apartada da nossa cultura. Embora a Cinédia tenha sido a pioneira e dominante por muitos anos, a Companhia Vera Cruz surgiu em um contexto diferente, com a ambição de alcançar um patamar de produção mais sofisticado e com reconhecimento internacional, inspirada no modelo de Hollywood. Enquanto a Cinédia focava em um cinema mais popular e comercial, com as chanchadas como carro-chefe, a Vera Cruz buscava uma produção com maior investimento e apelo artístico, embora tenha encontrado dificuldades em se sustentar financeiramente. Um artista solitário também teve papel importante em nossa cinematografia: O “caipira” Mazzaropi dirigiu seu primeiro filme, “Chofer de Praça”, em 1958. A característica básica dos filmes de Mazzaropi era registrar a visão da realidade brasileira a partir de um olhar de uma pessoa humilde, ele próprio numa versão jeca engraçada. Continuou o mesmo até falecer em 1981.
A partir do final da década de 1950, consolidou-se no país uma corrente cinematográfica que se tornou uma das mais relevantes da nossa história: o Cinema Novo. Essa corrente era marcada por um forte engajamento político e direcionava críticas ao panorama do cinema brasileiro da época, que sofria uma considerável influência do cinema norte-americano. Ademais, as produções do Cinema Novo buscavam expor a realidade da pobreza enfrentada pela população brasileira, questionando os entraves sociais, como a desigualdade e a marginalização da sociedade, dirigida principalmente aos descendentes da escravidão não amparados pela sociedade em geral. Pelo contrário; reforçavam em pequenos atos que lhes pareciam normais constantemente sua marginalização – estão aí o quarto de empregada, o elevador social e tantos outros arranjos a mostrar a nítida segregação. As obras desse movimento também se alinhavam com ideias que defendiam os interesses da classe trabalhadora, e a veemente denúncia da situação do país realizada por essa corrente que ficou conhecida como a “estética da fome”.
Assim, houve uma transição da chanchada para o Cinema Novo. A chanchada, com sua abordagem mais voltada para o entretenimento do público e menos focada em uma crítica direta da realidade, cedeu espaço para uma perspectiva mais analítica e engajada. Diretores importantes começaram a se destacar no cenário nacional, como Nelson Pereira dos Santos, cujo filme “Rio 40 graus” apontava para os problemas sociais brasileiros. Esse lançamento ocorreu em 1955, após o filme ter sido retido pela censura.
Naquela época, o jovem crítico de cinema baiano Glauber Rocha demonstrou interesse pelo trabalho de Nelson e se mudou para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalhar com ele. Glauber efetivamente se tornou assistente de direção de Nelson em seu filme seguinte, “Rio, Zona Norte” (1957), que narra a história do sambista Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, inspirado na vida de Zé Kéti, que também compôs a trilha sonora. Em reconhecimento, Nelson realizou a montagem de “Barravento” (1962), o primeiro longa-metragem de Glauber. “Rio, 40 Graus” e “Rio, Zona Norte” são considerados filmes fundamentais para o Cinema Novo, e Nelson, tendo dirigido ambos e participado da estreia de Glauber, rapidamente se tornou uma figura paterna para os cineastas do movimento. Tivemos ainda grandes nomes nessa linha do cinema novo: Ruy Guerra com Os Fuzis (1964) – que retrata a seca e a violência no Nordeste e Leon Hirszman com São Bernardo (1972) – Adaptação da obra de Graciliano Ramos.
No meio do caminho do cinema novo Anselmo Duarte manteve o ritmo cinematográfico da Vera Cruz e nos brindou com o seu premiadíssimo filme o Pagador de Promessa em 1962 – ganhou a Palma de Ouro em Cannes. De certo, a maior promoção do cinema brasileiro.
Nessa trajetória do cinema novo surgiram nomes que não se engajavam diretamente a uma corrente política, como Roberto Farias que dirigiu o filme o Assalto ao Trem Pagador em 1963. A produção de “O Assalto ao Trem Pagador” foi realizada pela Herbert Richers Produções Cinematográficas. Herbert Richers que teve um papel de destaque na indústria cinematográfica brasileira, responsável por inúmeras produções, pela dublagem de filmes estrangeiros no Brasil e pelo conhecido canal 100 que nos brindava com imagens belíssimas do nosso futebol antes das exibições dos filmes. Vale citar ainda uma recordação viva de um filme chamado “O Rei Pelé”, lançado em 1962. Este filme, dirigido por Carlos Hugo Christensen, da vida de Pelé naquele momento era uma produção que misturava elementos de dramatização e documentário, reconstruindo a trajetória de Pelé até aquele ponto da sua carreira, com o próprio Pelé participando e interpretando a si mesmo em algumas cenas.
Vieram outros nessa mesma linha: Arnaldo Jabor com Toda Nudez Será Castigada (1973) – Uma adaptação da obra Nelson Rodrigues, Bruno Barreto com Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) – Uma adaptação de uma obra Jorge Amado e Hector Babenco com Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980) – Um olhar sobre a violência e a infância marginalizada.
A influência do Cinema Novo se estendeu para documentários e teledramaturgia, notavelmente através das adaptações de Dias Gomes das obras de Jorge Amado. No cinema, a influência de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Mário de Andrade direcionou uma abordagem mais metafórica da realidade brasileira. Surgiram novos diretores, como Tizuka Yamasaki, que participou da produção do curta “Fala, Brasília” (1966). Contudo, um destaque importante foi o documentário de Glauber Rocha sobre a ascensão do clã Sarney ao governo do Maranhão, retratando um coronelismo arcaico sob uma roupagem ditatorial (Maranhão 1966). Joaquim Pedro de Andrade é uma referência importante pelo trabalho cinematográfico de Macunaíma. Podemos também citar Cacá Diegues, José Padilha, Meirelles e Walter Salles como nomes relevantes dessa trajetória.
Mas o que esses cineastas buscavam expressar? A trajetória do Cinema Novo apontava para a nossa realidade mais crua e vislumbrava um futuro que, de certa forma, olhava para o passado. Muitas vezes, a mudança parecia residir apenas na nova forma de apresentar os problemas, resultando em uma certa estagnação temporal de nossa realidade. Posteriormente, surgiram diretores que abordaram a ordem e a desordem dos valores morais e éticos, com um esforço para reorientar o comportamento social em direção a um mínimo de ética. Contudo, novamente pareceu haver uma certa paralisia no tempo. Observo o passado se repetindo no presente e no futuro, e filmes como “Central do Brasil”, “Bye bye Brasil”, “Tropa de Elite”, “Cidade de Deus” e “O Mecanismo” representam o estágio atual da nossa cinematografia, uma arte talvez excessivamente presa ao presente que repete em seu futuro o passado que nos acorrenta.
Atualmente, dispomos de outro meio para apreciar filmes de qualidade: as plataformas de streaming. Essa facilidade de conexão com outras culturas nos proporciona novas perspectivas sobre temas antigos. Ao analisar produções de outros países através do streaming, como o filme tailandês “Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra” e a minissérie turca “Enciclopédia de Istambul”, emerge um paralelo que lança luz sobre o nosso próprio estágio cultural. Essa comparação sugere que, sob a lente do cinema, o Brasil se assemelha mais à Tailândia em termos da priorização de questões éticas, indicando um possível estágio de desenvolvimento cultural relativamente similar, embora com a ressalva de que a Tailândia possa apresentar um quadro cultural mais coeso em certos aspectos. Em contraste, a Turquia parece exibir, através de sua produção, um estágio de desenvolvimento cultural mais avançado, com valores aparentemente mais consolidados e a busca de uma postura de integração em um mundo plural com todos os riscos que uma sociedade moderna oferece pelas escolhas individuais. A percepção de um quadro urbanístico na Tailândia que ecoa similaridades com o Brasil e um cenário em Istambul mais próximo ao europeu reforça essa leitura de diferentes estágios de desenvolvimento cultural refletidos em suas produções audiovisuais e, por extensão, em suas sociedades. Para mim, sob a perspectiva cinematográfica, claramente nos encontramos em um estágio civilizatório mais próximo ao da Tailândia, onde as questões éticas ainda são prioritárias, sugerindo um certo distanciamento de um patamar de desenvolvimento cultural mais ‘maduro’, como o da Turquia. Não é atoa que a Tailandia mostra um quadro urbanístico semelhante ao Brasil e Istambul ao Europeu. É o que penso, ao observar como nosso cinema, e por extensão nossa cultura, nos posicionam em relação a outros países, sugerindo um caminho a percorrer em nosso desenvolvimento cultural, mesmo reconhecendo as complexidades e nuances dessa comparação. Em última análise, o cinema, como forma de arte, não apenas reflete a realidade, mas também atua como um termômetro cultural, indicando nosso estágio presente e, por inferência, as possíveis trajetórias futuras de nossa sociedade. Fiz minhas escolhas para que alcancemos o estágio civilizatório europeu.
Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br