Marco Aurélio Bittencourt
Desmascarado o mito do déficit da Previdência Social (Aqui), foco agora na narrativa da “gastança excessiva” do governo; um pretexto para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e o desmonte dos serviços públicos, tendo como alvo o povo brasileiro – esse coitado, desamparado e lascado. Quem liga para isso? A realidade, contudo, revela um quadro muito mais complexo e preocupante, onde a verdadeira causa do desequilíbrio orçamentário reside nos exorbitantes juros da dívida pública; um fardo que sufoca o Estado e drena recursos cruciais para o bem-estar da população ano a ano.
A raiz do problema reside nos juros da dívida pública, um montante significativo que consome uma parcela considerável do orçamento federal de forma persistente e recorrente. Essa sangria financeira obriga o governo a realizar cortes sistemáticos nos gastos fiscais, em um ciclo vicioso que se repete a cada período, agravando a precarização dos serviços públicos e comprometendo o futuro do país. A volatilidade dos pagamentos dos juros da dívida impõe um ajuste constante e doloroso, com consequências nefastas para áreas como saúde, educação e infraestrutura (Aqui).
Os cortes atingem os investimentos, condenando hospitais, escolas e, na área dos investimentos já feitos, o desgaste forçado dos equipamentos públicos, impondo-lhes a obsolescência pela falta de recursos básicos para sua manutenção e a notória ausência de novos hospitais. A deterioração da saúde pública é emblemática: a falta de investimentos em novas unidades, equipamentos e pessoal resultam em filas intermináveis, falta de leitos e precariedade no atendimento, afetando principalmente os mais humildes que sequer cogitam em planos privados de saúde. A população mais vulnerável paga um preço alto por essa política de austeridade. E quando pode contar com a participação privada, estabelecem preços de remuneração aos serviços por vezes irreais. As Santas Casas sobrevivem com grande dificuldade e poucos estados mostram vontade de atualizar os preços dessas entidades filantrópicas valorosas, arcando em seus orçamentos com essa política como fez o governador de São Paulo.
A cantilena da “gastança excessiva” serve como cortina de fumaça para esconder a verdadeira natureza do problema: a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida em detrimento aos investimentos sociais. Maldita Lei de Responsabilidade Fiscal que mantém o status quo dos bancos e rentistas e dos servidores públicos. Existem outros pontos de extração de recursos públicos consagrados no orçamento, como o auxílio a empresas privadas em subsídios e isenções tributárias significativos. A mídia e alguns setores da política, alinhados com os interesses do mercado financeiro, propagam essa narrativa para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e a retirada de direitos da população, porque o alvo é a previdência. Incrível que num governo que, em passado virtuoso, implementou regras de ajuste do salário-mínimo que não gerou desemprego e nem outro tipo de problema, mas, agora, cedeu.
A insistência em culpar os gastos sociais pela crise fiscal revela uma profunda desconexão com a realidade e um desprezo silencioso pelos direitos da população. O corte de investimentos em áreas essenciais como saúde e infraestrutura não apenas compromete o bem-estar da população, mas também hipoteca o futuro do país, impedindo o desenvolvimento social e econômico. A mudança na regra salarial um tiro no peito dos aposentados CLT que os deixarão agonizando por um tempo longo.
A verdadeira face da austeridade é a precarização dos serviços públicos, o aumento da desigualdade social e o aprofundamento da crise. A população, já castigada pela pandemia e pela recessão econômica, é novamente chamada a arcar com o peso de uma política fiscal que beneficia os detentores da dívida pública e o círculo empresarial que se valem de subsídios e isenções tributárias significativos em detrimento do bem-estar social.
A crítica à “gastança excessiva” ignora o fato de que o Estado brasileiro, historicamente, investe pouco em comparação com outros países de desenvolvimento semelhante. A carga tributária, elevada em comparação com outros países, não se traduz em serviços públicos de qualidade, evidenciando a ineficiência do modelo fiscal e a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida.
A defesa da austeridade fiscal, sem considerar a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, revela uma visão limitada e prejudicial ao país. A concentração de renda e riqueza, as isenções fiscais e a enorme dependência das multinacionais em seus projetos de inovação são problemas estruturais que precisam ser enfrentados para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. A triste realidade (que vale para a maioria dos países) da precarização do mercado de trabalho, tendo em vista a mudança estrutural significativa na geração de emprego, com o item serviço e comércio abarcando cerca de 70% da mão de obra, nos leva a uma redução salarial sistemática nesse segmento de baixa produtividade. Difícil uma política pública que gere oportunidades nesse ramo de produção, em que pese nossa vocação óbvia para o turismo.
A mídia e os formadores de opinião, em vez de propagar a falácia da “gastança excessiva”, deveriam pautar o debate público sobre a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. É preciso romper com a lógica que beneficia os detentores da dívida pública em detrimento do bem-estar social.
A população não pode mais ser enganada pela narrativa da “gastança excessiva”. É preciso denunciar a verdadeira natureza da crise fiscal e exigir uma política econômica que priorize o bem-estar social, a justiça fiscal e o desenvolvimento sustentável. A luta pela defesa dos serviços públicos e pela justiça social é uma luta de todos nós. Eu ainda estou aqui!
Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br
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O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária
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