A regulação experimental e a esfera municipal: um déficit no Guia de Sandbox AGU-SCPR/MDIC

O Guia de Sandbox A regulação experimental e a esfera municipal: um déficit no Guia de Sandbox AGU-SCPR/MDIC pretende orientar a implementação de sandboxes regulatórios por instituições nacionais, apontando recomendações importantes para cada uma das etapas desse processo e garantindo a sua segurança jurídica no estímulo à inovação junto a reguladores e regulados.

Nathan de Oliveira Salani Athaide

1. Contexto e Importância do Guia Referencial da AGU

Em 21 de novembro de 2024, foi lançado o Guia Referencial de Sandbox Regulatório (Guia de Sandbox AGU-SCPR/MDIC), que define diretrizes para a criação de ambientes regulatórios experimentais no âmbito da administração pública.

O Guia Referencial é um marco na modernização da política regulatória no Brasil, oferecendo uma base para que Estados e Municípios assumam um papel protagonista no estímulo ao empreendedorismo e à tecnologia. Ao adotar essas práticas, os governos locais não apenas fomentam o crescimento econômico, mas também criam condições para que a sociedade como um todo desfrute dos benefícios da inovação. O resultado é um Brasil mais competitivo, inclusivo e preparado para os desafios do futuro.

O documento foi desenvolvido pelo Laboratório de Inovação da Advocacia-Geral da União (Labori/AGU), em colaboração com a Secretaria de Competitividade e Política Regulatória do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (SCPR/MDIC). Seu objetivo é facilitar a implementação de sandboxes regulatórios no Brasil, garantindo segurança jurídica para testar inovações regulatórias com a participação de agentes regulados, com base em procedimentos e entendimentos padronizados.

Ademais, o Guia se fundamenta em experiências federativas (municipais, estaduais e federais) e se apresenta como um instrumento orientador para ações inovadoras. Ele permite adaptações a cenários emergentes, decorrentes dos novos desafios regulatórios, ao mesmo tempo em que busca ser flexível e aplicável a diferentes contextos e localidades para o uso de sandboxes regulatórios no país.Para atingir seus objetivos de facilitar a implantação e o funcionamento de sandboxes regulatórios, o Guia foi estruturado com base em três linhas de ação principais:

i) A realização de uma análise exploratória de experiências nacionais relacionadas à regulamentação e/ou implementação de sandboxes regulatórios, a maioria conduzida pela Administração Pública em seus níveis federal, estadual e municipal;

ii) A incorporação das contribuições obtidas por meio da Tomada de Subsídios 01/2024 – Sandbox Regulatório, promovida pelo Laboratório de Inovação da Advocacia-Geral da União (Labori), entre 25 de junho e 24 de julho de 2024. Essa consulta, realizada pela Plataforma Participa Mais Brasil na ferramenta Opine Aqui, teve como objetivo assegurar a participação de partes interessadas e da sociedade, recebendo 13 valiosas contribuições que foram revisadas e integradas ao documento;

iii) A identificação e a análise de pareceres jurídicos elaborados no contexto das experiências nacionais mapeadas, destacando as principais recomendações emitidas por consultorias jurídicas e procuradorias federais especializadas da AGU, vinculadas a instituições da Administração Pública Federal, tanto direta quanto indireta.

Dessa forma, o Guia Referencial vai além de uma simples orientação técnica, servindo como uma ferramenta estratégica para que os diversos níveis de governo ajustem suas iniciativas às dinâmicas de um mundo em constante mudança. A ideia de estabelecer ambientes regulatórios experimentais, como o sandbox, reforça o papel do Brasil no contexto internacional e promove o avanço de uma cultura de inovação em todas as partes do território nacional.

2. Definição de Sandbox Regulatório

Sandbox, traduzido literalmente, significa “caixa de areia” e faz alusão ao espaço de recreação infantil onde as crianças brincam de forma segura e isolada, sob a supervisão dos adultos. De maneira similar, no contexto da informática, o termo é usado para descrever um ambiente controlado e separado, projetado para a execução experimental de novos códigos, garantindo que o sistema operacional ou outros programas não sejam impactados.

Já no âmbito da legislação brasileira, a Lei Complementar n° 182/2021, que criou o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, foi responsável pela introdução do conceito de “sandbox regulatório”, definido como um ambiente regulatório experimental[1]. Segundo o artigo 2º, inciso II, da referida lei, trata-se de um “conjunto de condições especiais simplificadas” que permite às pessoas jurídicas participantes obter uma autorização temporária de órgãos ou entidades competentes na regulamentação setorial.

Essa autorização visa ao desenvolvimento de modelos de negócios inovadores e à experimentação de técnicas e tecnologias ainda em teste, desde que sejam respeitados critérios e limites previamente estabelecidos pelo regulador, com um processo de aprovação simplificado. Assim, por meio da regulação sandbox, é possível solucionar problemas regulatórios sem a necessidade de instrumentos como Análise de Impacto Regulatório (AIR), Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), entre outros.

Portanto, o Sandbox Regulatório é um cenário em que o órgão regulador permite que alguma empresa opere com regras diferentes das demais, por um período de tempo determinado, possibilitando o teste de alguma inovação sem o risco de incidir penalidades, por meio do afastamento temporário das normas regulatórias.

Em vista disso, o Guia de Sandbox ora analisado pretende orientar a implementação de sandboxes regulatórios por instituições nacionais, apontando recomendações importantes para cada uma das etapas desse processo e garantindo a sua segurança jurídica no estímulo à inovação junto a reguladores e regulados.

3. Competências Regulatórias e Regulação Experimental

As competências regulatórias da autoridade implementadora do sandbox foram abordadas pelo Guia, tendo em vista que à autoridade reguladora devem ser atribuídas competências públicas para formalizar o sandbox, cujo desempenho exige a edição de atos imperativos e unilaterais, com conteúdo de observância obrigatória para regulados. Nesse contexto, o documento recomenda avaliar se a autoridade reguladora proponente possui competência para abordar o desafio ou a oportunidade pretendida por meio do sandbox, além de verificar se outros setores poderiam ser impactados pela iniciativa[2]. Assim, é imprescindível analisar se a autoridade reguladora tem competência para emitir o ato normativo que formaliza o sandbox, considerando possíveis atribuições concorrentes e a existência de intersetorialidade no projeto.[3].

Quanto à previsão normativa dessa competência, há o permissivo legal para adoção do sandbox regulatório, que se fundamenta no art. 11 do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº182/2021). Nesse sentido, o caput do dispositivo dispõe que órgãos e entidades da administração pública responsáveis pela regulamentação setorial poderão implementar os sandboxes regulatórios[4]. Esses órgãos podem (i) suspender, temporariamente, a aplicação de normas sob sua competência para permitir a experimentação regulatória; e (ii) regulamentar critérios, alcance e duração das flexibilizações normativas aplicadas no sandbox (LC nº182/2021, art.11, §3º, I, II e III).

Dessa forma, diante de uma lacuna regulatória ou da necessidade de adaptar normas para viabilizar a experimentação de uma inovação, o uso do sandbox regulatório torna-se uma solução adequada para realizar testes experimentais em um setor regulado. Isso se deve ao fato de que, frequentemente, as normas vigentes podem ser inadequadas ou insuficientes para acomodar o modelo inovador, gerando obstáculos à sua implementação. No que se refere às flexibilizações normativas promovidas pelo sandbox, caso estas envolvam normas infralegais, como resoluções ou instruções normativas, elas devem ser administradas dentro dos limites da competência do regulador responsável ou do conjunto de reguladores envolvidos no processo.

Ante o exposto, ao tratar da autorização legal, a Lei Complementar nº 182/2021 previu a possibilidade de órgãos e entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial possam, individualmente ou em colaboração, afastar temporariamente a incidência de normas sob sua competência. Por consequência, a entidade promotora da regulação experimental deverá detalhar, por meio de legislação específica ou regulamentação complementar, os procedimentos, os critérios de seleção e as condições para participação, observando sempre a legalidade e a segurança jurídica dos participantes e da sociedade.

4. O papel das competências municipais no sandbox: uma questão desconsiderada pelo Guia da AGU.

Quanto aos instrumentos disponíveis ao Município para instituir o sandbox regulatório, o Guia se limita a pontuar que, nas esferas estadual e municipal, a experiência mostrou uma preferência pela utilização de Leis e/ou Decretos para a regulamentação dos ambientes regulatórios experimentais.

Sem dúvida, o documento apresentou um tratamento abrangente acerca das competências regulatórias para a implementação de sandboxes. Contudo, um ponto essencial foi negligenciado: a questão das competências específicas do Poder Executivo municipal. Este é o aspecto de maior relevância prática e requer detalhamentos, pois trata diretamente da aplicação e viabilidade do instrumento no âmbito local, onde a atuação regulatória frequentemente se manifesta de forma mais direta e imediata e, por consequência, exige a regulamentação do sandbox.

Há uma ampla diversidade de formas pelas quais um sandbox regulatório pode ser institucionalizado nos municípios. Por exemplo, a criação de um ambiente experimental pode ser viabilizada por meio de um decreto municipal[5], limitado às competências exclusivas do Poder Executivo, permitindo agilidade e simplicidade no processo de implementação. Por outro lado, também é possível optar por um projeto de lei (PL) que trata de uma atividade econômica específica, estabelecendo uma flexibilização normativa temporária de maior alcance e respaldada pelo Legislativo[6].

Essas opções, no entanto, dependem de variáveis, como o contexto político, a composição do Executivo e do Legislativo municipais, bem como o grau de disposição política para inovar. Nesse cenário, o alinhamento entre essas instâncias e a escolha do instrumento normativo adequado são determinantes para o sucesso da implementação, mas tais nuances não foram devidamente exploradas no documento.

A ausência dessa discussão no documento pode representar uma lacuna significativa, especialmente considerando a heterogeneidade dos municípios brasileiros em termos de capacidade administrativa, contexto político e prioridades econômicas. Portanto, recomenda-se que o Guia seja revisitado para incluir orientações claras e práticas voltadas à realidade do Poder Executivo municipal, abordando as diferentes possibilidades de regulamentação e os critérios para escolha do modelo mais apropriado em cada contexto.

5. Conclusão

Portanto, o Guia Referencial de Sandbox Regulatório apresenta-se como uma ferramenta estratégica para orientar a criação de ambientes regulatórios experimentais no Brasil, fornecendo parâmetros que abrangem desde a definição e os fundamentos legais até a análise de competências regulatórias.

Ao longo do texto do Guia, são destacados os esforços para consolidar contribuições, promover segurança jurídica e alinhar práticas regulatórias às inovações tecnológicas, reforçando o papel do país no cenário global. Além disso, a análise das competências regulatórias dos entes públicos enfatizou a importância de instrumentos normativos claros para viabilizar a experimentação, sobretudo frente às lacunas e inadequações normativas que muitas vezes impedem a adoção de modelos inovadores.

Não obstante, um aspecto de importância prática concentra-se nas competências específicas do Poder Executivo municipal, tópico que poderá demandar a inclusão de aprofundamento futuro no Guia. Isso porque, no âmbito municipal, a regulamentação do sandbox pode ser realizada por meio de decretos, valorizados por sua rapidez, ou por projetos de lei, que proporcionam um escopo normativo mais amplo. Por consequência, a definição do instrumento mais apropriado deve levar em conta as características particulares de cada município, incluindo sua capacidade administrativa, prioridades econômicas e cenário político.

Assim, é essencial que futuras revisões do Guia incluam diretrizes claras e adaptadas às realidades municipais, garantindo que o sandbox regulatório possa ser efetivamente implementado em todas as esferas de governo.


[1] Entende-se por ambiente regulatório o que estipula o art 2º, II, da Lei Complementar nº 182 de 01 de junho de 2021:

Art. 2º Para os efeitos desta Lei Complementar, considera-se:

[…] II – ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório): conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado. (Brasil, 2021).

[2] Caso se configure alguma dessas situações, o Guia propõe a realização de ações de coordenação para promover coerência e convergência regulatória, o que tende a ser cada vez mais comum devido à complexidade crescente das inovações e, principalmente, à convergência tecnológica que geralmente envolve mais de um setor.

[3] Nesse último caso, deve-se apontar, se for o caso, a necessidade de início do diálogo intersetorial, mediante consulta às demais entidades e órgãos envolvidos na pluralidade de setores regulados. Tal constatação poderá demandar, inclusive, a instituição de estrutura de governança conjunta, o que poderá ser recomendado no opinativo, se for o caso.

[4] No exercício dessa competência, poderá haver a necessidade de colaboração entre as autoridades reguladoras caso os projetos selecionados ou os temas priorizados afetem mais de um setor regulado. 

[5]  Nesse sentido, o Rio regulamentou o sandbox regulatório a partir do Decreto Municipal nº 50.697/2022, que já tem servido de modelo para outros municípios. A inovação aberta no município só foi possível a partir da estruturação, em norma infralegal, de uma governança pública adequada à iniciativa.

[6]  A título de exemplificação, a Lei Municipal 16344/2024 (Lei do Sandbox Regulatório de Curitiba) fixa uma política pública para o teste de produtos e serviços inovadores – cujas regras, até então, estavam definidas em um decreto municipal. O projeto que deu origem à legislação tramitou na Câmara Municipal entre dezembro de 2020 e maio de 2024. A referida lei prevê autorizações temporárias de operação por até dois anos, desde que a atividade se enquadre como negócio inovador.


Nathan de Oliveira Salani Athaide. Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Atualmente, é estagiário no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Intercambista pela 44ª edição do Programa de Intercâmbio do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PinCade). Pesquisador bolsista PIBIC/CNPq na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Possui experiências acadêmicas e profissionais nas áreas de defesa da concorrência, regulação e contratações públicas.


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