Nelson Siffert e Katia Rocha
- Marco Legal do Hidrogênio de Baixo Carbono
O ano de 2024 foi exitoso para indústria de Hidrogênio de Baixo Carbono no Brasil, com a sanção da Política Nacional do Hidrogênio de Baixo Carbono, Lei 14.948, que regulamenta a produção e institui uma certificação voluntária (Marco Legal), e com o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC), Lei 14.990 com metas de desenvolvimento para o mercado interno e incentivos fiscais para a commodity e seus derivados.
As políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da nascente indústria do hidrogênio de baixo carbono (H2BC), não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, devem ter como foco, conforme apontado pelo Diretor Geral da Agência Internacional de Energia (IEA, 2024), Sr. Faid Fahol, ações que busquem, sobretudo, mobilizar o lado da demanda. Espera-se, assim, reduzir o gap, atualmente identificado na economia EBC, entre as intenções de investimento, que somam 520 GW em termos de capacidade de eletrólise e as decisões finais de investimento (FID), que alcançam somente 7% deste montante.
O PHBC tem por objetivo desenvolver a economia do hidrogênio de baixa emissão, estabelecendo metas e objetivos, com foco na sua utilização em setores industriais de difícil descarbonização, como fertilizantes, siderúrgico, cimento, química e petroquímica. O setor de transportes pesado também é indicado. É previsto que a iniciativa do PHBC contribua para o desenvolvimento regional, mitigação e adaptação à mudança do clima, difusão tecnológica e diversificação do parque industrial brasileiro.
O Marco Legal do Hidrogênio de Baixo Carbono, por sua vez, apresenta uma definição clara: hidrogênio de baixo carbono, independente da rota tecnológica de sua produção, é aquele que apresenta um nível de emissões, com base no ciclo de vida, menores ou iguais a 7 kg CO2eq/kgH2. Desse modo, os incentivos previstos no PHBC estão abertos às diferentes rotas tecnológicas de produção de H2BC, devendo o valor previsto da subvenção ser proporcional às reduções das emissões diretas de CO2.
É apontado no PHBC que créditos fiscais poderão ser utilizados na comercialização do H2BC, em um montante de até 100% da diferença de preço entre o H2BC e o hidrogênio de origem fóssil. A Lei expressamente recomenda que os incentivos sejam concedidos com base em procedimentos competitivos, sendo os leilões, os candidatos naturais de serem empregados.
Os valores a serem concedidos pelo PHBC somam R$ 18,3 bilhões no período 2028 a 2032, com tetos anuais de R$ 1,7 bi em 2028; R$ 2,9 bilhões em 2029; R$ 4,2 bilhões em 2030; R$ 4,5 bilhões em 2031 e R$ 5 bilhões em 2032. Quando se compara com o Orçamento de Subsídios da União que totalizou, em 2023, a quantia de R$ 647 Bilhões, sendo R$ 519 Bilhões (80%) na modalidade Subsídios Tributários, evidencia-se que o montante alocado ao PHBC é razoável, passível de ser fiscalmente absorvido, uma vez a quantia alocada anualmente no Programa (média de R$ 3,6 Bilhões) representa apenas 0,6% dos Subsídios Totais da União. Ficou estabelecido o critério de julgamento do leilão, o menor valor do crédito por quilograma de H2BC, e o crédito fiscal poderá ser utilizado por parte de produtores e/ou compradores de hidrogênio de baixo carbono.
Uma vez que o crédito fiscal venha ser integralmente empregado para honrar obrigações fiscais que de todo modo estariam presentes, independente da alternativa de honrá-las com o mecanismo criado em Lei, possibilita uma monetização do incentivo. Com o potencial rebatimento no fluxo de caixa, torna-se viável pagar um valor mais elevado pelo H2BC uma vez que associado ao seu consumo estará presente a possibilidade de usar o crédito fiscal. Ainda, o dispositivo legal coloca que os créditos fiscais poderão ser objeto de compensação com débitos próprios, vincendos ou vencidos, relativos aos tributos federais ou mesmo ressarcimento em dinheiro em até 12 meses do seu pedido.
Uma vez que é recomentado expressamente a adoção de mecanismos competitivos da concessão dos créditos fiscais, cabe examinar as experiências internacionais que fazem uso de tais mecanismos competitivos na concessão de subvenções, a exemplo dos leilões levados a cabo pela Fundação H2Global e pelo Banco Europeu do Hidrogênio.
Ressalta-se que a indústria do H2BC tem encontrado na implantação de leilões um mecanismo competitivo para promover a produção e o uso do hidrogênio de baixo carbono. Além de revelarem os preços que tornam factível remunerar os produtores, oferecem previsibilidade de receitas a longo prazo, mobilizam a cadeia de valor e minimizam o custo global do apoio.
2. Experiências Internacionais e Aspectos Competitivos dos Leilões
Estudo recém-divulgado pela IRENA 2024, “Green Hydrogen Auction: A guide to design,” apresenta diversas experiências de leilões de H2BC, seja no âmbito internacional, como o do H2Global; ou no plano regional, como o Banco Europeu do Hidrogênio (EHB); ou mesmo à nível dos países, como no Chile, Dinamarca, Alemanha, Índia, Holanda e Inglaterra. Segundo o documento, a primeira etapa no desenho de um processo competitivo com base em leilões é: i) definir o produto a ser leiloado; ii) o orçamento que se dispõe; e iii) o volume a ser transacionado.
Observa-se adoção de diferentes modelagens de leilões, sejam voltadas para promover a oferta, focando na implantação de projetos, ou voltadas para incentivar o uso do hidrogênio, elevando a demanda. Há também os leilões duplos, que promovem tanto a oferta como a demanda.
Diversos parâmetros precisam ser estabelecidos pelos formuladores de políticas públicas no desenho e implantação dos leilões. O orçamento que se dispõe para realização do leilão define, em boa medida, a quantidade que será apoiada pelo mecanismo competitivo. Cabe responder se será apenas um único leilão ou uma política sequencial, com mais de um leilão. Será preciso definir o produto objeto do leilão, se o hidrogênio, seus derivados ou se será considerada a capacidade implantada de eletrolisadores ou um determinado volume de produção anual. Os requerimentos de qualificação devem ser definidos.
Há também aspectos de conteúdo local da cadeia de valor do hidrogênio que podem estar associados às políticas de leilões. Questões de natureza financeira como indexação dos contratos, prazos e variações cambiais também devem ser considerados.
A abrangência do leilão irá estabelecer as possíveis localizações dos projetos, cabendo especificar as tecnologias, os limites de produção e os requerimentos de quanto ao cronograma de entregas.
A matriz de risco, seja referente ao preço da energia renovável, qualidade do produto, disponibilidade de infraestrutura, segurança, qualidade do offtaker, entre outras, deve ser endereçada às partes interessadas (stakeholders) dos empreendimentos, em especial aos governos, empreendedores e consumidores.
Finalmente, o documento destaca as vantagens e desvantagens de cada tipo de leilão, sendo que sua escolha, se com foco na oferta, na demanda ou em ambos, deve estar alinhada aos objetivos específicos da política pública que se busca implantar, levando-se em conta as condições de mercado, e estabelecendo-se um pipeline de projetos com os respectivos indicadores econômico-financeiros.
3. Estimativa do Impacto das Proposições do PHBC
Para se estimar a quantidade de hidrogênio que será objeto de apoio no programa do PHBC é necessário assumir uma premissa quanto ao valor da diferença de preço entre o hidrogênio renovável (sem emissões diretas) e o hidrogênio cinza.
Assumindo a hipótese de uma subvenção equivalente a EUR 1,35 por kg de H2BC que venha a ser comercializada em um ambiente de alta concorrência, o que é possível de se obter, dado o interesse dos agentes pelo H2BC, obtém-se, com base no orçamento disponível, um volume de H2BC passível de ser subvencionado de cerca de 440.000 ton/ano de H2BC. No caso da rota tecnológica da eletrólise, tal montante representa uma capacidade instalada de 3 GW[1].
Tomando por base as premissas e o cálculo acima realizados, são elencadas algumas considerações:
- Os investimentos decorrentes da iniciativa do PHBC poderão atingir cerca de EUR 15 bilhões, mostrando que para cada R$ 1 de incentivo são passíveis de serem obtidos R$ 5 em novos investimentos;
- Caso o prazo de utilização dos incentivos, sem alterar o orçamento proposto, possa alcançar 10 anos, é favorecida a bancabilidade dos empreendimentos com base no project finance, uma vez que será necessário recebíveis de longo prazo como garantia aos financiadores;
- Dado o grande volume de H2BC potencialmente passível de apoio, é recomendável que haja mais de um leilão para seleção dos projetos;
- Caso os incentivos fiscais sejam alocados exclusivamente aos compradores do H2BC, fomenta-se a demanda, por meio do estabelecimento de contratos de longo prazo de compra e venda de H2BC. Dessa forma, concentram-se esforços na superação do principal gargalo: a ausência de demanda de longo prazo. A demanda passa a ter o protagonismo no desenvolvimento da cadeia de produção e definição de modelos de negócios;
- Os projetos apresentados deverão ser configurados na forma de consórcios, incluindo, necessariamente, o produtor do H2BC, o offtaker (demandante e beneficiário do programa), produtor de energia renovável (ou contrato de fornecimento de longo prazo de energia), fornecedor da de equipamentos e uma instituição pública ou privada de pesquisa e tecnologia;
- O leilão poderia se dar em duas fases: a primeira fase seria voltada para habilitação e qualificação, onde seria verificada a aderência do consórcio aos requisitos técnicos e financeiros para participar do leilão. Nesta fase, também deverá ser apresentado um Plano de Negócios, explicitando o modelo técnico-operacional e econômico-financeiro, com indicadores como o LCOH, TIR, ICSD, WACC, entre outros. Outras informações importantes de se incluir nos requisitos versam sobre o montante do Capex, valores do Opex, assim como a origem do funding (capital próprio e de terceiros). Também deve ser apresentada uma declaração de um agente financeiro atestando as premissas econômico-financeiras adotadas e o resultados das projeções realizadas;
- Uma vez qualificado na primeira fase, os participantes do Leilão ingressam na segunda fase, que consiste em processo competitivo por meio de propostas fechadas de deságio sobre o valor teto do leilão para o H2BC, indicado o valor do crédito fiscal e quantidades de produto para cada ano. Deverão ser respeitados os limites mínimos e máximos de subvenção anteriormente definidos.
- As propostas selecionadas serão aquelas com a menor subvenção média por kg de H2BC comercializado, ponderado pela quantidade de H2BC produzido e comercializado, enfatizando dessa forma critérios competitivos e de minimização dos gastos públicos;
- Não se deve restringir apenas à comercialização direta do H2BC, mas também considerar a participação dos seus derivados (amônia, metanol, SAF). Neste caso é considerada a quantidade de H2 contida nestes produtos.
Verifica-se que o PHBC possui o condão de dar impulso à decolagem da indústria do hidrogênio de baixo carbono no Brasil a um custo razoável visto que o montante alocado ao PHBC anualmente (média de R$ 3,6 Bilhões ano) representa apenas 0,6% dos Subsídios Totais da União. Representa uma janela de oportunidade que uma vez bem estruturada na sua implantação permitirá que o Brasil em 2030 revele que é capaz de fazer uso de suas vantagens competitivas em energias renováveis e atividades industriais, contribuindo para a Transição Energética, à neoindustrialização, e ao crescimento e desenvolvimento econômico e social do país.
4. Referências
IRENA – Green Hydrogen Auction: A guide to design. 2024 Disponível em: https://www.irena.org/Publications/2024/Oct/Green-hydrogen-auctions-A-guide-to-design
BNDES -Credenciamento para produtos de baixo carbono: eletrolisadores, armazenamento, etc.: https://www.bndes.gov.br/wps/wcm/connect/site/674a275d-c4fc-4f33-b93062232f1b2285/Regulamento+BEC_vSite_jul24.pdf?MOD=AJPERES&CVID=p2zG.9K
EHB- O primeiro leilão do Banco Europeu do Hidrogênio – artigo de opinião do Gesel publicado em https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-primeiro-leilao-do-banco-europeu-do-hidrogenio.ghtml
EHB – Resultados do leilão de outubro 2024. https://climate.ec.europa.eu/news-your-voice/news/winners-first-eu-wide-renewable-hydrogen-auction-sign-grant-agreements-paving-way-new-european-2024-10-07_en
H2global – https://www.h2-global.org
Instituto Fraunhofer (2023) Power-to-X Country Analysis Site-specific, Comparative Analysis for Suitable Power-to-X Pathways and Products in Developing and Emerging Countries. Disponível em:
https://www.ise.fraunhofer.de/en/publications/studies/power-to-x-country-analyses.html
[1] De acordo com estudo da Instituto Fraunhofer (2023),1 GW de capacidade de eletrólise, operando com 95% de fator de capacidade é capaz de produzir cerca de 150.000 ton/ano de H2. São estimados EUR 5 bilhões de investimentos necessários para implantar 1 GW de capacidade de eletrólise, integrados com um parque de geraçao renovável solar PV e eólico com 300 MW de capacidade, capaz de garantir elevado nível de autossuprimento de energia.
Nelson Siffert – Diretor ICT – Resel e Bolsista PNPD do IPEA. E-mail: nfsfooo@gmail.com
Katia Rocha – Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br
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