Marco Aurélio Bittencourt
A Teoria da Escolha Pública, um conceito que permeia a ciência política e a economia, propõe que as ações humanas, inclusive na esfera pública, são motivadas, em grande parte, pelo interesse próprio. Essa ideia, à primeira vista, pode parecer cínica e desanimadora, contrastando com a crença de que as políticas públicas devem visar o bem comum e a justiça social.
Mas será que o egoísmo e o altruísmo são realmente forças opostas e irreconciliáveis?
É inegável que a maioria das pessoas, incluindo cientistas e intelectuais, possuem bons sentimentos e buscam contribuir para um mundo melhor. A evolução da humanidade, com avanços significativos em áreas como saúde, educação e tecnologia, especialmente após a Revolução Industrial, sugere que o “bem”, de alguma forma, tem prevalecido.
No entanto, a boa intenção por si só nem sempre é suficiente para garantir a cooperação e o alcance do bem comum. A religião, por exemplo, apesar de pregar valores como a compaixão e a solidariedade, muitas vezes esbarra na dificuldade de traduzir esses valores em ações concretas no mundo real.
Para entender melhor essa complexidade, vamos analisar alguns exemplos práticos:
1. Regras de Trânsito:
Nos Estados Unidos, a regra básica em muitos cruzamentos é simples: quem chega primeiro, tem o direito de passar. Essa norma, aparentemente trivial, gera um efeito notável no comportamento dos motoristas. Ao saberem que serão respeitados em sua ordem de chegada, os condutores tendem a agir de forma mais cooperativa e paciente, resultando em um trânsito mais fluido e seguro.
No Brasil, a regra da preferencial define quem tem o direito de passagem nos cruzamentos. No entanto, em cruzamentos complexos com alto volume de tráfego, a identificação da preferencial pode não ser trivial, o que pode levar a confusões e dificuldades em determinar a ordem de passagem. Embora a regra exista, a falta de clareza em algumas situações, em conjunto com a ausência do hábito de ceder a passagem mesmo quando se tem a preferência, pode gerar conflitos e desordem no trânsito.
Comparando os dois sistemas, podemos observar como regras claras, simples e bem definidas influenciam o comportamento das pessoas, incentivando a cooperação e o respeito mútuo. No caso americano, a simplicidade da regra “quem chega primeiro, passa primeiro” contribui para um sistema mais eficiente e harmonioso. No Brasil, a complexidade de alguns cruzamentos e a falta de um costume de ceder a passagem, mesmo tendo a preferência, podem dificultar a fluidez do tráfego.
Uma sugestão interessante para o caso brasileiro seria a implementação de um adendo à regra da preferencial: em situações de congestionamento, independentemente de cruzamentos, a regra “quem chega primeiro, passa primeiro”, alternadamente entre as filas, poderia ser aplicada. Isso tornaria o sistema mais claro, justo e eficiente, similar ao modelo americano. Claro, aqui a suposição implícita é de que todos estariam sujeitos a, no contexto da regra válida hoje para o Brasil, ambas situações: estar na preferencial ou estar aguardando todos da preferencial passarem. Nem sempre encontramos uma situação propicia à mudanças pontuais com sucesso pleno como me parece ser o caso da regra de transito.
2. Mudança na Jornada de Trabalho (6/1 para 4/3):
A proposta de reduzir a semana de trabalho de 6 para 4 dias úteis, mantendo a remuneração dos trabalhadores, é outro exemplo que ilustra a complexa relação entre egoísmo, altruísmo e o papel do Estado.
A princípio, a semana de 4 dias parece atender aos interesses individuais de todos:
- Trabalhadores: Mais tempo livre para lazer, família e desenvolvimento pessoal.
- Empresas: Potencial aumento da produtividade, redução de custos com energia e infraestrutura, e atração de talentos.
- Governo: Melhora na qualidade de vida da população, estímulo à economia e possível redução de gastos com saúde pública (devido à redução do estresse e doenças relacionadas ao trabalho).
No entanto, a Teoria da Escolha Pública nos alerta para a necessidade de ir além das boas intenções e analisar os incentivos de cada ator, bem como os possíveis desafios e obstáculos para a implementação da semana de 4 dias.
Desafios e o Papel do Estado:
- Custos para as empresas: A reorganização do trabalho, a contratação de novos funcionários e o investimento em novas tecnologias podem gerar custos para as empresas, especialmente para pequenas e médias empresas.
- Risco de redução salarial: É preciso garantir que a redução da jornada não implique em redução salarial, o que prejudicaria os trabalhadores.
- Dificuldade de adaptação: Alguns setores da economia podem ter dificuldades em se adaptar à semana de 4 dias, especialmente aqueles que exigem disponibilidade contínua.
- Desemprego: A mudança pode levar à perda de empregos em alguns setores, caso as empresas não consigam manter a produtividade com a redução da jornada.
Para enfrentar esses desafios e garantir que a semana de 4 dias seja benéfica para todos, o Estado tem um papel fundamental:
- Garantir a proporcionalidade salarial: A legislação deve assegurar que a redução da jornada não implique em redução salarial.
- Incentivar a flexibilidade: As regras para a organização da jornada de trabalho devem ser flexíveis, permitindo que empresas e trabalhadores negociem a melhor forma de implementar a semana de 4 dias.
- Criar mecanismos de apoio: O governo pode oferecer incentivos fiscais e programas de apoio para auxiliar as empresas na adaptação à nova jornada.
- Monitorar os impactos da mudança: O governo deve acompanhar e avaliar os impactos da semana de 4 dias no mercado de trabalho e na economia, ajustando as políticas públicas quando necessário.
- Investir em requalificação profissional: Oferecer programas de requalificação para os trabalhadores que eventualmente perderem seus empregos devido à mudança na jornada de trabalho.
Conclusão:
A Teoria da Escolha Pública nos convida a repensar a relação entre egoísmo e altruísmo, mostrando que esses conceitos não são necessariamente excludentes. Ao entendermos como as pessoas tomam decisões e como as regras influenciam o comportamento humano, podemos construir uma sociedade mais justa, eficiente e cooperativa, onde o interesse individual e o bem comum caminhem lado a lado, com a lei como um importante instrumento para a promoção da solidariedade.
Assim como no caso das regras de trânsito, a semana de 4 dias exige uma análise cuidadosa dos incentivos e a criação de regras claras e eficazes para garantir que a mudança seja benéfica para todos. O Estado tem um papel fundamental nesse processo, atuando como mediador e promotor do bem-estar social. Evidentemente, numa democracia, a questão seria resolvida no voto.
Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.
Email: 0171969@etfbsb.edu.br