Luis Henrique B. Braido[i]
O processo de falência empresarial foi profundamente reformulado pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que substituiu o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Essa legislação regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, excluindo as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as instituições financeiras, as cooperativas de crédito, os consórcios, as entidades de previdência complementar, as operadoras de planos de assistência à saúde, as companhias seguradoras e as sociedades de capitalização. O texto recebeu alguns aprimoramentos por meio da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Atualmente, discute-se no Senado o Projeto de Lei nº 3/2024, já aprovado na Câmara de Deputados, o qual amplia o poder de ação de credores em caso de falência. Neste artigo, descreverei os principais aspectos da legislação vigente, com ênfase na questão de alinhamento de incentivos; discutirei alguns dos impactos econômicos derivados da mudança da Lei em 2005; e comentarei a proposta legislativa em discussão no Senado.
Inicialmente, convém esclarecer que a recuperação judicial visa superar a crise do devedor e permitir a manutenção da produção, do emprego e dos interesses dos credores, de modo a preservar a empresa e sua atividade econômica (art. 47, Lei nº 11.101/2005). A falência, por sua vez, promove o afastamento do devedor de suas atividades e busca liquidar a empresa inviável de modo a realocar eficientemente seus recursos na economia (art. 75, Lei nº 11.101/2005, modificado pela Lei nº 14.112/2020).
O processo de recuperação judicial se inicia por pedido do devedor, acompanhado de um plano de recuperação a ser analisado pelo juízo local, sendo facultado aos credores propor plano alternativo. O deferimento do processo de recuperação judicial ou a decretação da falência suspendem as execuções ajuizadas contra o devedor e proíbem a apreensão de seus bens, relativamente às obrigações sujeitas à recuperação judicial.
O devedor pode também negociar com seus credores um plano de recuperação extrajudicial, a ser homologado pelo juízo local. Tal plano não pode contemplar o pagamento antecipado de dívidas nem o tratamento desfavorável aos credores não participantes. Os créditos tributários não estão sujeitos ao processo extrajudicial. A inclusão de créditos trabalhistas e por acidentes de trabalho requer negociação coletiva com sindicatos. A sentença de homologação desse plano constitui título executivo judicial.
Os arts. 83 e 84 da Lei nº 11.101/2005 promovem uma classificação de créditos para orientar o pagamento dos valores devidos em caso de falência. Por ordem de prioridade, tem-se: (i) os créditos extraconcursais previstos no art. 84; (ii) os créditos trabalhistas, limitados a 150 salários mínimos, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho; (iii) os créditos gravados com direito real, até o limite do valor do bem gravado; (iv) os créditos tributários; (v) os créditos quirografários e demais créditos, incluindo os saldos remanescentes dos créditos trabalhistas e gravados com direito real; (vi) as multas contratuais e penas pecuniárias; (vii) os créditos subordinados e aqueles contraídos com sócios e administradores sem vínculo empregatício; e (viii) os juros vencidos após a decretação da falência.
Dessa forma, os créditos gravados com direito real possuem considerável grau de prioridade, estando à frente dos créditos tributários, até o limite do bem gravado, e atrás dos créditos extraconcursais, trabalhistas (com limite de valor) e decorrentes de acidente de trabalho. A ordem de recebimentos em caso de falência determina os incentivos dos credores na fase de recuperação judicial. A depender da situação econômico-financeira do devedor, da composição de seus débitos e do valor dos ativos passíveis de liquidação, os credores terão maior ou menor interesse em recuperar a empresa, com eventual divergência entre eles.
O passo seguinte de um processo de recuperação judicial ou de falência é a verificação de créditos, realizada pelo administrador judicial, um profissional especializado e idôneo nomeado pelo juízo responsável. Esse trabalho deverá ser supervisionado pelo Comitê de Credores constituído por um representante indicado por cada uma das seguintes classes de credores: (i) trabalhistas; (ii) com direitos reais de garantia ou privilégios especiais; (iii) quirografários e com privilégios gerais; (iv) microempresas e empresas de pequeno porte.
Esse Comitê se reúne em Assembleia de Credores, convocada pelo juízo responsável e presidida pelo administrador judicial, cujas decisões devem ser ratificadas por representantes de mais da metade do valor dos créditos presentes.
Deve-se registrar que a composição do Comitê de Credores não reflete exatamente as categorias de classificação dos créditos em caso de falência. Ressalte-se, em particular, a não inclusão de representante da classe de créditos tributários e a inclusão de representante de microempresas e empresas de pequeno porte, independentemente da classificação de seus créditos.
Impactos Econômicos
Ao instituir o processo de recuperação judicial com o objetivo de manter a produção, o emprego e os interesses dos credores, a legislação brasileira busca sopesar os interesses de diferentes partes interessadas (stakeholders). A preservação de empresas eficientes e a manutenção de suas atividades econômicas são certamente benéficas aos consumidores, aos trabalhadores e aos sócios e acionistas. Adicionalmente, esse objetivo pode ser também do interesse dos credores, especialmente dos detentores de créditos com menor prioridade na falência, uma vez que parte relevante do valor de uma firma se deve a sua estrutura organizacional e a investimentos afundados, sem valor comercial significativo em caso de desfazimento da empresa. Em caso de falência, o máximo que os credores podem recuperar é o valor de alienação dos ativos do devedor, geralmente muito inferior ao valor de mercado da empresa recuperada.
A literatura econômica sobre inadimplência demonstra ser socialmente desejável haver balanceamento das garantias aos credores e aos devedores. Garantias aos credores estimulam a concessão de crédito e, assim, afetam positivamente a expansão da produção. Entretanto, na impossibilidade de se segurar contra todos os possíveis eventos adversos, a previsão de punições excessivas ao devedor levaria os investidores a reduzir sua exposição a empreendimentos arriscados, diminuindo a demanda por crédito e o crescimento econômico.
Nesse sentido, convém destacar que, nos processos de recuperação judicial e de falência, os sócios e os acionistas podem perder todo o valor investido e só fazem jus a algum direito sobre a empresa após os demais créditos terem sido honrados. Nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas, os sócios e os acionistas gozam de responsabilidade limitada e, portanto, não comprometem seus bens pessoais, exceto em caso de desconsideração da personalidade jurídica por abuso, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme previsto no art. 50 do Código Civil[ii]. Esse foi o equilíbrio encontrado na ampla maioria das economias capitalistas para sopesar garantias a credores e devedores.
Do ponto de vista financeiro, a boa estruturação dos processos de recuperação judicial e de falência, com etapas bem definidas e atenção aos interesses dos credores, tende a ampliar os incentivos à oferta de crédito corporativo, com consequente expansão do volume emprestado e redução dos spreads. De fato, no período que seguiu a aprovação da Lei nº 11.101/2005, verificou-se uma considerável expansão de crédito corporativo de longo prazo e redução de spreads. Entretanto, outros aprimoramentos legais contemporâneos podem ter tido relevância nessa expansão do crédito de longo prazo, a exemplo das modificações nas regras para créditos imobiliários e agropecuários promovidas, respectivamente, pelas Leis nº 10.931/2004 e 11.076/2004. Adicionalmente, esse período também contou com significativos estímulos públicos ao crédito de longo prazo, incluindo crédito subsidiado por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tornando difícil atribuir os efeitos documentados apenas às novas legislações.
Projeto de Lei
Em janeiro deste ano, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de projeto de lei, elaborado pelo Ministério da Fazenda, com alterações no instituto da falência empresarial. A proposta tramitou na Câmara de Deputados como Projeto de Lei nº 3/2024 e, atualmente, encontra-se em discussão no Senado.
A exposição de motivos apresentada pelo Ministério da Fazenda discorre sobre a necessidade de se imprimir maior celeridade e eficiência ao processo de falência. A mesma justificativa aparece no parecer da deputada federal relatora do projeto. Em breve síntese, o texto aprovado na Câmara de Deputados modifica as regras de remuneração do administrador judicial, estabelecendo teto global de dez mil salários-mínimos para a totalidade das remunerações na recuperação judicial ou na falência, além de limites percentuais máximos por faixas de valores devidos aos credores na recuperação judicial ou efetivamente pagos a eles na falência.
Adicionalmente, na falência, o projeto de lei confere à Assembleia de Credores a prerrogativa de, a qualquer tempo, substituir o administrador judicial por um gestor fiduciário, a fim de otimizar a alienação dos ativos, ou de simplesmente retirá-lo, deixando a indicação de substituto ao juízo responsável.
O texto também proíbe o administrador judicial na fase de recuperação de atuar como administrador judicial ou gestor fiduciário na fase de falência; impede que este atue em mais de um processo na mesma jurisdição, com valor superior a cem mil salários-mínimos, em até dois anos do término de seu mandato; e veda sua atuação simultânea em mais de quatro recuperações judiciais e quatro falências.
Essas mudanças, a meu ver, aprimoram a legislação brasileira, conferindo mais segurança aos credores, especialmente nos casos de falência. Deve-se esperar, entretanto, forte reação corporativa a elas, especialmente em relação às restrições de atuação e de remuneração dos administradores judiciais e à prerrogativa da Assembleia de Credores de substituí-lo, na falência, por um gestor fiduciário.
No contexto da discussão de possíveis aprimoramentos à legislação de falência, convém apontar para aspectos concorrenciais associados à alienação de ativos. Em seu art. 75, a lei preconiza a “liquidação célere de empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia”. Essa preocupação com a eficiência alocativa de recursos se coaduna com os ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência e repressão ao abuso do poder econômico. Isso é importante porque, em mercados concentrados, o maior concorrente tende a ser aquele com maior valoração para os bens alienados, pois a incorporação ajudará a consolidar seu poder dominante. Entretanto, essa troca nem sempre é a melhor realocação dos recursos na economia, posto que o exercício de poder dominante costuma gerar ineficiência alocativa e reduzir o bem-estar social.
Naturalmente, a alienação de ativos, quando significativa, precisará passar pelo controle de concentrações exercido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Porém, considerando a importância da celeridade do processo, seria interessante incorporar preocupações concorrenciais nas diretrizes gerais para a alienação de ativos.
Essa é uma preocupação abstrata, mas que possui correspondência concreta. Deve-se recordar, por exemplo, que duas das três principais companhias aéreas com atuação em voos domésticos se encontram em recuperação judicial. Não me parece ser do interesse da sociedade brasileira que, caso necessário, elas venham a alienar seus ativos para a empresa líder de mercado sem antes considerar e priorizar compradores alternativos, tais como companhias regionais ou entrantes no mercado brasileiro.
[i] Agradeço os comentários de Flávio Moraes e Paulo Riscado Jr.
[ii] Esse entendimento sobre a responsabilidade limitada tem sido flexibilizado, especialmente em processos trabalhistas, previdenciários e ambientais.
Luis Henrique B. Braido. Possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo (1995), mestrado em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV/EPGE, 1998) e pela Universidade de Chicago (2000), e doutorado em Economia pela Universidade de Chicago (2002). Atualmente, é professor associado da FGV/EPGE e foi Conselheiro do CADE.