Fernando de Magalhães Furlan

Jurisdições antitruste ao redor do mundo têm se debruçado sobre os mercados digitais e os desafios trazidos pelas rupturas tecnológicas e mercadológicas.

As primeiras iniciativas legislativo-regulatórias adotadas, como na União Europeia e no Reino Unido, privilegiam um sistema híbrido, conjugando instrumentos típicos do controle antitruste prévio ou ex ante, com ferramentas características do controle posterior ou ex post. A esse sistema híbrido chamamos de “controle antitruste simultâneo”, em que as autoridades da concorrência mantêm um âmbito oficial de diálogo constante com os grandes operadores da economia digital, a fim de que possam acompanhar, esclarecer e, eventualmente, remediar preocupações concorrências nesses espaços cibernéticos.

Estudos sustentam, de maneira convergente, que existem aspectos econômicos específicos dos mercados digitais que favorecem elevados níveis de concentração. Entre eles:

  • economias de escala e de escopo relevantes, que, potencialmente podem incentivar comportamentos anticoncorrenciais em relação aos utilizadores empresariais a jusante ou a montante;
  • subsídios cruzados, especialmente quanto a receitas publicitárias que permitem oferecer serviços gratuitos a usuários de outros lados comerciais da plataforma;
  • coleta e utilização de dados dos utilizadores, isto é, as plataformas utilizam os dados como insumo essencial, criando uma “economia dinâmica de escala”, uma vez que empresas com mais dados melhoram os seus produtos a custos mais baixos do que outras (menores). Isto pode caracterizar potencial barreira à entrada de novos competidores;
  • (custos de mudança (switching costs): algumas plataformas podem gerar altos custos para os usuários mudarem de provedor de serviço, como configurar um novo perfil, enviar novos conteúdos ou criar nova comunidade de seguidores;
  • externalidades de rede: a utilidade de uma tecnologia ou serviço cresce à medida que aumenta o seu número de usuários. Os efeitos de bloqueio (lock-in) podem dificultar a substituição de uma plataforma dominante, mesmo que exista uma alternativa superior disponível;
  • competição “o vencedor leva tudo” (“winner takes all”) ou “o vencedor leva a maior parte” (“winner takes most”): o primeiro a entrar num mercado pode tornar-se forte tão rapidamente que deixa os participantes posteriores em desvantagem;
  • estratégias de auto favorecimento (self-preferencing) de produtos e serviços oferecidos pelo próprio grupo econômico da plataforma, para excluir seus rivais, tais como: mostrar classificações de pesquisa online com seus resultados primeiro, distribuição “desigual” de lojas de aplicativos e imposição de dificuldades à interoperabilidade, isto é, quando uma plataforma dominante restringe a capacidade dos concorrentes de interoperar com a sua plataforma ou acessar informações importantes, como dados, APIs ou lojas de aplicativos (barreiras à entrada);
  • as plataformas digitais também podem dar um novo significado aos comportamentos abusivos tradicionais, como práticas de exclusividade e vendas casadas. Os exemplos incluem a pré-instalação de aplicativos da empresa em sistemas operacionais móveis, a imposição de serviços conjuntos de mídia social e anúncios de comércio eletrônico.

Autoridades de defesa da concorrência mundo afora, inclusive no Brasil, têm defendido a adoção do modelo de controle prévio (ex ante) para os mercados digitais, além da adoção de normas específicas e preventivas para atender às peculiaridades da economia digital.

Exemplos de inciativas em jurisdições tradicionais nesse sentido são o Reino Unido (2023), a Alemanha (2021), a Austrália (2021), a África do Sul (2023), o Japão (2021) e o Canadá (2023). A ideia é adotar um quadro regulamentar flexível e adaptável, um modelo que se ajusta de forma dinâmica e permite um acompanhamento contínuo, mantendo o controle e a autonomia sobre a evolução das normas aplicáveis aos mercados digitais.

Limitações de um controle posterior (ex post)

O controle ex post da conduta, ainda que potencialmente, anticoncorrencial não é considerado adequado para os mercados digitais, quando considerado sozinho. Tem se considerado mais adequado, não somente a aplicação de ambos, o controle prévio (via atos de concentração econômica) e o controle posterior (via investigação de condutas); mas algo novo: um controle simultâneo da operação das grandes plataformas digitais.

Mesmo que a Lei de Defesa da Concorrência brasileira seja considerada moderna, especialmente quando contempla formas de intervenção mais flexíveis, como medidas preventivas, que inclusive têm sido utilizadas em casos envolvendo aplicativos digitais (iFood[1] e Gympass[2]), ou a celebração de acordos de cessação de conduta (TCC), não é suficiente e adequado enfrentar investigações, que podem durar anos e exigir a estrita observância dos direitos processuais, num contexto contraditório, que pode prolongar o processo de tomada de decisão para remediar a conduta anticompetitiva.

O desenho de soluções comportamentais ou estruturais eficazes é um desafio, uma vez que as condições de mercado tendem a mudar substancialmente, além de envolver questões como acesso a dados, interoperabilidade e portabilidade, que são difíceis de controlar.

Nos casos Google Shopping[3], Google AdWords[4] e Google Scraping[5], por exemplo, houve longos debates sobre os padrões de prova e a presunção de regimes de ilegalidade necessários para demonstrar os efeitos anticompetitivos das práticas analisadas. Isto acabou por determinar o arquivamento do processo.

Os conceitos de “mercado relevante”, “posição dominante” e “fechamento de mercado” enfrentam desafios adicionais em modelos de negócios baseados em dados, onde os efeitos anticoncorrenciais não relacionados com o preço permitem a configuração de situações de exclusão (por exemplo: exploração abusiva de dados, imposição de restrições à interoperabilidade, cópia de conteúdos em mercados de comparação de preços e relações de favoritismo em mercados de pesquisa etc.).

A definição de mercado relevante, focada na substitutibilidade e na participação de mercado, não considera a concorrência dentro do ecossistema, onde a competição por receitas emergentes de serviços complementares é mais relevante do que a rivalidade horizontal.

As estratégias utilizadas pelas plataformas digitais dominantes manifestam-se de formas que tornam difícil classificá-las como violações antitruste conhecidas, como “recusa de contratar”, “vinculação” ou “discriminação”.

Objetivos e fundamentos do controle prévio (ex ante)

O controle ex ante das plataformas e aplicativos digitais deve abordar as disfunções nos ecossistemas digitais como falhas funcionais e distributivas que afetam a geração e apropriação de valor, com peculiaridades em relação às falhas tradicionais de mercado[6].

A ideia seria adotar um modelo de diálogo contínuo, para orientar e garantir o cumprimento dos padrões de concorrência, reduzindo a necessidade de intervenções punitivas e permitindo uma aplicação mais ágil e adaptativa da lei, ajustando-se rapidamente às inovações do mercado.

Da mesma forma, esse modelo promoveria uma cultura de compliance, garantindo o pilar da prevenção voluntária de condutas, importante em qualquer jurisdição antitruste.

Assim, a intervenção antitruste “simultânea” promoveria a concorrência por meio da garantia pari passu da redução de barreiras à entrada, da contestabilidade dos mercados, da inovação (incremental, disruptiva ou radical) e o empreendedorismo (livre iniciativa).

A necessidade de um controle, não somente prévio, mas simultâneo, capaz de prevenir e impor imediatamente obrigações de proteção da concorrência aos operadores em mercados digitais, aliás, já foi objeto de legislação (hard law) ou regulamentação (soft law) em Jurisdições tradicionais.

A União Europeia aprovou no Parlamento Europeu o Digital Markets Act – DMA, lei para tornar os mercados no setor digital mais justos e contestáveis, estabelecendo um conjunto de critérios objetivos claramente definidos para identificar potenciais riscos à concorrência.

No Reino Unido, o Parlamento também aprovou o Digital Markets, Competition and Consumers Act – DMCC Act, ou Lei de Mercados Digitais, Concorrência e Consumidores, de 2024. Um projeto de lei apresentado pelo governo, incialmente à Câmara dos Comuns. O objetivo é a regulamentação da concorrência em mercados digitais, alterando a Lei da Concorrência de 1998 e a Lei Empresarial de 2002.  A nova lei também traz disposições relacionadas à proteção dos direitos do consumidor em mercados digitais.

Na Alemanha, o novo artigo 19-A da Lei Alemã da Concorrência, também com aprovação legislativa, a chamada “Lex GAFA” (iniciais de Google, Apple, Facebook e Amazon), do início de 2021, aborda “empreendimentos de suma importância para a concorrência em todos os mercados” e permite que o Bundeskartellamt, como autoridade da concorrência alemã, impeça certos comportamentos abusivos de detentores de grande poder de mercado. No entanto, procedimentos para declarar a Apple, o Facebook (Meta) e a Amazon como “empreendimentos de suma importância” (undertakings of paramount significance) ainda estão em andamento[7]. Embora, após quase um ano de avaliação, o Bundeskartellamt tenha declarado o Google (Alphabet) como um empreendimento de suma importância[8], medidas concretas ainda não foram tomadas.

O Senado dos Estados Unidos da América atualmente discute um projeto de lei conhecido como American Innovation and Choice Online Act (“AICO”)[9]. Tal proposição legislativa proíbe certas grandes plataformas on-line de se envolverem em atos específicos, incluindo dar preferência aos seus próprios produtos na plataforma, limitar injustamente a disponibilidade de produtos concorrentes de outra empresa ou discriminar na aplicação ou execução dos termos de serviço da plataforma entre usuários em situação semelhante.

Além disso, segundo a proposta em análise no Senado estadunidense, uma plataforma não pode restringir ou impedir materialmente a capacidade de um usuário comercial concorrente acessar ou interoperar com a mesma plataforma, sistema operacional ou recursos de hardware ou software. O projeto de lei também restringe a instalação ou desinstalação de software, funcionalidade de pesquisa ou classificação e retaliação por contato com a polícia em relação a violações reais ou potenciais da lei.

O que parece incontestável é a necessidade de adaptar e melhorar as leis de concorrência, as suas ferramentas e o desenho institucional das autoridades para serem capazes de fazer frente à dinâmica e inovadora economia digital e desempenhar o papel de prevenir e reprimir o abuso do poder econômico nesses mercados.

Conclusão

O “regulador” antitruste pode e deve adaptar o seu ferramental prático e teórico na medida em que novos desafios da realidade dinâmica dos mercados, especialmente os inovadores, se apresentam.

No contexto brasileiro, mostramos brevemente que isso vem sendo feito ao longo do tempo, com a adoção de soluções criativas, contudo realistas e fundamentadas, no direito e na economia, capazes de fazer frente à necessidade de implantação de providências para prevenir e remediar condutas potencialmente danosas.

Não há que se falar em “reorientação do direito da concorrência” em razão dos desafios postos pela Economia Digital. No máximo, estamos diante de uma adaptação. Os conceitos do direito da concorrência também continuam intocados, talvez merecendo um novo verniz, uma nova tonalidade.


[1] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcaPonKpemYl591TZDVz41cKkeMG3znSccU-isTZDv-qj. Acesso em: 05/07/2024.

[2] Processo Administrativo nº 08700.004136/2020-65. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcSAlNG3BEuxBuDxuaTl21JtluCsnT1rW6o6w8bRweD-x. Acesso em: 05/09/2024.

[3] Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOb0rdAAnkZ36Rru6H33qbFO51_fjuVWb1uid6m5S5BxJ8gFyW8xprjnuylPdYbaX3VDhhG3SAtGWLJPIqjsEDX. Acesso em: 05/09/2024.

[4] Processo Administrativo nº 08700.005694/2013-19. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_Jxjwy0jsF2VUK9nLLMn4AapgzHPEyXU3WqUFUJvQc-tbB. Acesso em: 05/09/2024.

[5] Processo Administrativo nº 08700.009082/2013-03. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_JxuPKafcwvOhoHGvTOhF6VN9yQ1Q84rME0Sb3aYKzWyP2. Acesso em: 05/09/2024.

[6] Informação assimétrica, concentração de mercado, externalidades etc.

[7] Bauermeister, Tabea.  Section 19a GWB as the German “Lex GAFA” – lighthouse project or superfluous national solo run?   Working Paper Series No. 23/22. Jean Monnet Network on EU Law Enforcement Working Paper Series, p.2. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://jmn-eulen.nl/wp-content/uploads/sites/575/2022/05/WP-Series-No.-23-22-Section-19a-GWB-as-the-German-Lex-GAFA-Bauermeister.pdf. Acesso em: 06/09/2024.

[8] Idem, p.2.  Alphabet Inc. Google Germany GmbH (2021) B7-61/21 (BKartA).

[9] Disponível em: https://www.congress.gov/bill/117th-congress/senate-bill/2992/text. Acesso em: 18/09/2024.


Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


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