Luis Henrique B. Braido
Aceitei, com grande satisfação, o convite da WebAdvocacy para ocupar este espaço periodicamente. Em linhas gerais, pretendo escrever sobre Law & Economics e Organização Industrial, além de apresentar meu ponto de vista sobre algumas das políticas públicas em debate, com especial atenção para as reformas econômicas, as regulações setoriais e a política antitruste.
Atualmente, uma das principais discussões legislativas no país trata da regulamentação da reforma dos tributos sobre o consumo. Penso ser interessante utilizar este primeiro artigo para explorar alguns aspectos menos discutidos dessa mudança. Adotarei a seguinte estrutura. Inicialmente, descreverei os principais pontos da reforma, constantes na Emenda Constitucional 132, promulgada em 20 de dezembro de 2023, e no Projeto de Lei Complementar 68/2024, recentemente aprovado pela Câmara Federal e submetido à apreciação do Senado. Após esta breve descrição, apresentarei algumas preocupações quanto às escolhas feitas e analisarei os prováveis impactos dessas mudanças sobre o sistema produtivo e sobre nossa estrutura de competição.
A Emenda Constitucional 132/2023 prevê a adoção de um tributo sobre valor agregado de caráter dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A CBS destina-se a financiar os gastos da União e será cobrada em substituição ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). O IBS, por sua vez, destina-se ao financiamento dos entes subnacionais (i.e., o Distrito Federal, os Estados e os municípios), sendo cobrado em substituição ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto sobre Serviços (ISS). A unificação desses impostos se dará gradualmente, com longo período de transição durante o qual todos os tributos conviverão.
A Emenda Constitucional também estabelece a existência de alíquotas de referência para a CBS e o IBS, além de três regimes diferenciados, com reduções de alíquotas de 30%, 60% e 100% (isenção). A alíquota de referência para o IBS será, inicialmente, idêntica para todos os entes subnacionais, os quais serão autônomos para aprovar mudanças de valor por meio de legislação específica. Os bens e serviços incluídos em cada um dos diferentes regimes mencionados serão regulamentados por legislação complementar, a exemplo do que faz o PLP 68/2024, ora em discussão. A composição de produtos em cada classe de alíquota será, portanto, idêntica para todos os entes da federação. Há previsão de avaliação quinquenal de custo-benefício dos regimes diferenciados.
Os regimes especiais e simplificados para microempresas e empresas de pequeno porte (Simples Nacional) serão mantidos. Lei complementar disporá sobre regimes específicos de tributação para diversas atividades econômicas, tais como: combustíveis e lubrificantes; serviços financeiros; operações com bens imóveis; planos de assistência à saúde; sociedades cooperativas; serviços de hotelaria; parques de diversão; agências de viagens; bares e restaurantes; sociedades anônimas do futebol; aviação regional; transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário e hidroviário; e repartições consulares.
A EC 132/2023 estipula, ainda, que legislação complementar estabeleça mecanismos para a preservação do diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus e às áreas de livre comércio existentes em 2023, a saber: Tabatinga, no Amazonas; Guajará-Mirim, Boa Vista e Bonfim, em Rondônia; Macapá e Santana, no Amapá; e Brasiléia, Epitacolândia e Cruzeiro do Sul, no Acre.
Para esse fim, o Projeto de Lei Complementar 68/2024 reduz a zero, a partir de 2027, a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os produtos que não foram efetivamente industrializados na Zona Franca de Manaus no ano de 2023. Para os demais produtos, incidirá IPI quando fabricados fora das áreas incentivadas.
Adicionalmente, o Projeto de Lei isenta da cobrança de CBS e de IBS as aquisições de bens intermediários utilizados no processo produtivo da indústria incentivada; regula a concessão de créditos presumidos sobre essas operações; autoriza a apropriação e utilização de créditos relativos a operações antecedentes; e concede crédito presumido na venda de seus produtos em território nacional. Tais créditos poderão ser utilizados apenas para compensação de CBS e de IBS, sendo vedada a compensação de outros tributos ou o ressarcimento.
Imposto Seletivo
Outro aspecto tratado no PLP 68/2024 é a regulamentação do Imposto Seletivo (IS) com incidência sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, conforme previsto no art. 153, VIII, da Constituição Federal de 1988. Esse tributo se assemelha à tributação defendida pelo economista inglês Arthur Pigou, no século XIX, sobre produtos geradores de externalidade negativa (no caso concreto, à saúde e ao meio ambiente). Tal tributo teria a finalidade de igualar o custo privado ao custo social de tais produtos e, assim, melhorar a eficiência alocativa diante dessa falha de mercado.
O Imposto Seletivo será cumulativo, não podendo ser compensado pelos demais elos da cadeia produtiva. Sua arrecadação será dividida entre a União e os entes subnacionais. O texto aprovado na Câmara Federal e, atualmente, em discussão no Senado prevê sua incidência sobre alguns tipos de veículos, embarcações e aeronaves; produtos fumígenos; bebidas alcoólicas; bebidas açucaradas; e bens minerais extraídos.
Origem versus Destino
Diferentemente do atual modelo do ICMS e do ISS, restou estabelecido na EC 132/2023 que o IBS será calculado a partir da soma das alíquotas do Estado e do Município no qual ocorrer o consumo do produto (destino), ao invés daquelas vigentes no local de sua produção (origem). Desta forma, ao escolherem suas alíquotas de IBS, os entes subnacionais definirão os impostos incidentes sobre seus próprios consumidores e não mais, como é hoje, sobre os cidadãos de todo o país. Este aspecto da reforma tem o potencial de aproximar os eleitores dos legisladores responsáveis pela definição das alíquotas de IBS.
Além disso, a cobrança no destino elimina a chamada “guerra fiscal”, caracterizada pelo poder de se conceder isenções ou reduções seletivas de ICMS ou de ISS com o intuito de atrair firmas de outras localidades do país. Isso porque as alíquotas de CBS e de IBS independerão do local de produção do bem.
Método de Cobrança
O recolhimento de tributos sobre valor agregado ocorrerá em cada fase do processo produtivo, com compensação integral dos tributos já recolhidos nas fases anteriores, conforme estabelecido na EC 132/2023. Esse sistema de compensação evita a criação artificial de ganhos de consolidação de cadeias produtivas interestaduais. A tributação final ao consumidor será a mesma, seguindo a alíquota vigente no local de destino, independentemente do caminho percorrido pelo produto nas suas diversas fases de produção.
Uma “novidade” no sistema tributário brasileiro é o fato de as alíquotas da CBS e do IBS incidirem sobre o preço efetivamente recolhido pelo revendedor, sem esses impostos. Esse preceito tributário é denominado “método por fora”. Atualmente, no Brasil, vigora o “método por dentro” no qual o tributo incide sobre o preço final do produto pago pelo consumidor, com os impostos. Ou seja, no sistema atual, há cobrança de imposto sobre o próprio imposto.
Um exemplo pode ajudar a compreensão dessa questão. Consideremos um produto sobre o qual incida apenas ICMS – ignorar, nesse momento, a existência de outros impostos simplifica a explicação. No sistema atual, se o preço ao revendedor for 100 reais e a alíquota de ICMS for 20%, o preço final do produto será 125 reais, sendo 100 reais destinados ao revendedor e 25 reais destinados ao fisco (25 reais equivalem a 20% de 125 reais). No novo sistema, o imposto incidirá sobre o preço ao revendedor (100 reais) e não mais sobre o preço final (125 reais). Dessa forma, para arrecadar os mesmos 25 reais, precisaríamos de uma alíquota de 25% ao invés de 20%. Essa explicação é importante para se avaliar corretamente as discussões sobre os possíveis valores das alíquotas de referência.
A cobrança de imposto sobre o próprio imposto (“método por dentro”) é usada também para o ISS, o PIS e o COFINS. Trata-se de impostos sobre o faturamento total o qual já embute os próprios impostos. A multiplicidade de impostos incidindo sobre o preço final ou, equivalentemente, sobre o faturamento total gerou uma calorosa controvérsia tributária: A base de cálculo de um imposto deveria incorporar os demais impostos? Após longa discussão no judiciário, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a base de cálculo do PIS e do COFINS não deveria incluir o ICMS recolhido. O conteúdo prático dessa decisão foi incorporado na Lei 14.592/2023.
Assim, segundo a interpretação que predominou no Brasil, apesar de haver incidência de um imposto sobre ele mesmo (“método por dentro”), não deveria haver incidência cumulativa das contribuições federais sobre o imposto estadual. Entretanto, a partir dessa decisão, nascem diversas outras questões tributárias. Por analogia, não deveríamos excluir o PIS e o COFINS da base de cálculo do ICMS? O ISS também não deveria ser excluído da base de cálculo do PIS e do COFINS e vice-versa? E por que não excluir o PIS da base de cálculo do COFINS e vice-versa? Algumas dessas questões encontram-se, de fato, em disputa no sistema judiciário.
Felizmente, ao adotar o “método por fora”, o novo modelo tributário se desprende, definitivamente, dessas controvérsias. Não haverá mais cobrança de um tributo sobre ele mesmo, tampouco de um sobre outro. Para tanto, haverá ajuste no nível das alíquotas.
Múltiplas Alíquotas
Conforme já mencionado, a Emenda Constitucional que institui a reforma dos tributos sobre consumo previu a existência de três regimes diferenciados (com descontos sobre as alíquotas de referência), além de regimes específicos para diversas atividades econômicas. Nesse aspecto, o texto final se distanciou da concepção original da reforma, a qual comtemplava a adoção de alíquota única para todos os bens e serviços. Quais seriam os prós e contras de cada opção?
Do ponto de vista teórico, a melhor forma de se tributar o consumo – no sentido de gerar a menor distorção alocativa possível para um dado nível de arrecadação – seria através da fixação de alíquotas mais altas para produtos cujo equilíbrio de mercado fosse menos sensível a preço, por apresentarem demanda ou oferta menos elásticas. Isso porque, ao se impor um tributo sobre o consumo, cria-se uma diferença entre o preço pago pelo consumidor e aquele recebido pelo produtor, desestimulando a produção e o consumo. Quanto mais sensível um desses lados do mercado for à distorção tributária, maior o custo social do imposto, refletido na queda da produção, do consumo e, consequentemente, do bem-estar social. Devemos esse resultado teórico ao matemático e economista inglês Frank Ramsey, nascido no início do século XX e que, apesar de sua vida breve, deixou contribuições disruptivas nos campos de tributação e de crescimento econômico, além de trabalhos relevantes em matemática e filosofia.
Do ponto de vista prático, entretanto, alguns profissionais argumentam ser difícil mensurar tais elasticidades, além do fato de o debate parlamentar sobre alíquotas ser mais influenciado por lobbies setoriais do que por argumentos de eficiência alocativa.
Por um lado, o se permitir alíquotas diferenciadas e regimes específicos, abriu-se espaço para que alguns privilégios setoriais existentes no atual sistema sejam mantidos ou até ampliados. Isso, invariavelmente, recairá sobre a produção e o consumo dos setores não agraciados com os descontos. O sistema com uma só alíquota para todos os produtos resolveria esse problema. Entretanto, o custo social (“peso morto”) gerado por tal sistema unificado seria maior relativamente ao caso ideal, no qual as alíquotas fossem definidas de acordo com a teoria de Ramsey.
Difícil saber se o sistema desenhado constitui uma boa solução de compromisso. A consolidação de alíquotas proposta simplificará a estrutura atual, reduzindo o espaço para disputas judiciais. Incomoda-me, entretanto, o grande número de setores com regimes específicos; a existência de setores completamente isentos; e o fato de o debate sobre os descontos de alíquotas estar baseado, quase que exclusivamente, em argumentos redistributivos, ignorando-se os aspectos de eficiência alocativa.
Pessoalmente, penso que a tributação de rendimentos e a alocação do gasto público sejam formas mais adequadas de se promover redistribuição de renda. Além disso, no âmbito da reforma, já existe a previsão de devolução personalizada de tributos aos membros de grupos sociais vulneráveis, por meio da adoção de programa de “cash back”. A execução desse programa demandará cuidados para se evitar fraudes, tais como a compra com isenção, utilizando a identidade de indivíduos beneficiados pelo programa, para posterior repasse a famílias não beneficiadas. Resolvidas essas questões de ordem prática, a restituição a consumidores selecionados me parece ser uma forma mais direta de se promover redistribuição. Descontos e isenções universais, contemplando todos os consumidores, retiram o foco da política redistributiva e reduzem seu impacto sobre os mais necessitados.
Impactos Econômicos
A reforma tributária em discussão possui pelo menos dois pilares com importantes impactos econômicos. Primeiramente, a simplificação do sistema – com a adoção de menor número de alíquotas, de maior uniformidade de regras e de maior amplitude na compensação de tributos recolhidos em diferentes fases do processo produtivo – facilitará o cumprimento das obrigações tributárias, fortalecerá o ambiente de negócios e, possivelmente, reduzirá a evasão fiscal e a informalidade.
Em segundo lugar, a cobrança no local de consumo do produto (destino), ao invés de seu local de produção (origem), padronizará a tributação de bens produzidos em diferentes localidades, favorecendo significativamente a livre concorrência no mercado de destino.
Adicionalmente, esse aspecto da reforma eliminará relevantes ineficiências geradas pelo conflito tributário entre regiões do país. Do ponto de vista industrial, a localização ideal para se produzir algo deveria minimizar os custos de produção, incluindo o transporte dos insumos e a distribuição do produto final. Uma vez verificada a disponibilidade local de serviços essenciais, tais como energia elétrica e telecomunicação, a decisão de onde instalar uma planta produtiva deveria depender dos custos de se atrair mão de obra qualificada, da localização de fornecedores e de consumidores, bem como do acesso a diferentes modais de transporte. Desviar-se dessa lógica por razões de natureza tributária produz ineficiência técnica e alocativa, aumentando os custos de produção e, consequentemente, os preços aos consumidores. A reforma ataca esse problema de forma direta, apesar de contemplar um período de transição longo e de manter os incentivos à produção industrial de determinados produtos em áreas específicas da região Norte, geralmente distantes de fornecedores e de consumidores.
Por fim, convém destacar que o término dos conflitos regionais para atrair empresas (“guerra fiscal”) não eliminará a saudável competição tributária entre os entes subnacionais. A decisão sobre as tarifas de IBS possui impacto direto no bem-estar da população local, além de constituir importante vetor de atração de novos habitantes. O novo sistema tributário permite a convivência de regiões com maiores ou menores níveis de impostos e de provisão de serviços públicos, com efeitos exclusivos aos habitantes locais.