Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Quando falamos em acesso à justiça, qual a primeira coisa que nos vem à mente? Sem dúvida, ver resguardados os nossos direitos, por intermédio do Poder Judiciário, seja arcando com os custos ou de forma gratuita? Ter a disponibilização de um advogado para nosso auxílio pelo Estado, de forma gratuita? Ter um órgão que, independentemente de outras esferas, analisa o nosso pleito de forma imparcial?

Sem dúvida que, ter garantidos todos estes pontos, significa verdadeiro acesso à justiça. No entanto, quando presente em uma audiência ou, ainda, diante de uma decisão proferida pelo judiciário ou órgãos administrativos especializados, a dificuldade na compreensão do que ali está sendo discutido ou decidido, te faz, de fato, sentir que essa acessibilidade existe? Ou ainda, quando auxiliado por um advogado, a linguagem por ele utilizada é, no todo, clara e acessível?

Vivemos em um país no qual o idioma oficial é o português. No entanto, a utilização de um palavreado técnico e excessivamente rebuscado pelos operadores do direito, popularmente conhecido como “juridiquês”, que inclui, inclusive, diversos termos em latim, prejudica o acesso à justiça, na medida em que é de difícil compreensão por aqueles que não atuam na área jurídica. Há de se dizer que determinados textos chegam a ser incompreensíveis, o que nos faz recordar da primeira vez que abrimos um livro de direito na faculdade, na qual entramos preparados e instruídos para as lições que seriam aprendidas, mas, ainda assim, nada do que ali estava escrito parecia fazer o menor sentido.

Neste cenário, diversos desses termos são utilizados, dificultando sobremaneira a interpretação e compreensão dos textos jurídicos, tais como a petição inicial é chamada de exordial; a denúncia virou exordial increpatória; a apresentação de um recurso, diz-se interposição; a repetição de uma situação jurídica, bis in idem; para apenas argumentar, utiliza-se ad argumentandum tantum; para normas que se aplicam a situações passadas, diz-se ter efeito ex tunc; para INSS[1], autarquia ancilar; a partir do início, diz-se  ab initio; para com todos, em relação a todos, de caráter geral, erga omnes, dentre outros. Assim, pergunta-se, qual a utilidade desta linguagem que restringe o acesso à justiça e cuja compreensão fica restrita apenas aos operadores do direito? Como afirmar, diante desta situação que o acesso à justiça é não só reconhecido, mas, de fato, disponibilizado à todos os cidadãos?

O Professor José Barcelos de Souza, em seu artigo “Linguagem jurídica[2], traz dois exemplos que ilustram esta dificuldade, encontrada pelas pessoas leigas de compreender a linguagem rebuscada:

“Vou citar dois casos curiosos. Um ocorrido nos Estados Unidos, que li no interessante livro The art of cross-examinatoin (A arte de inquirir testemunhas).

Querendo perguntar à testemunha onde ela morava, o advogado lhe indagou: Where do you reside? A testemunha não entendia, e o advogado repetia, elevava a voz, escandia as sílabas, caprichava no “reside”, e nada. Então o oficial de justiça soprou-lhe aos ouvidos: “Pergunte assim, Where do you live?”. Não deu outra. A testemunha respondeu prontamente: moro na rua tal, número tal.

O outro fato – a mim contado por testemunha ocular da história – aconteceu aqui mesmo em Minas Gerais, protagonizado por bom advogado, que se tornou depois desembargador.

Desejando que a testemunha informasse se o tiro foi dado durante a luta da vítima com o réu, o advogado perguntou assim: “O tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?”. A testemunha engolia em seco, mostrava-se inibida, ficou vermelha, mas não respondia. Indagada se entendera a pergunta, e instada (opa!) a responder, explicou: “Não foi antes nem depois; foi entre a refrega e o umbigo”. Uma gargalhada geral ecoou no salão.

O pior foi que a sessão teve de ser encerrada antes de terminar o julgamento. Porque, tudo já acalmado, quando menos se esperava, quando parecia que tudo corria normalmente, alguém iniciava uma risadinha, que acabava contagiando todo o auditório.”

Necessário se faz que o conhecimento do dia a dia dos processos, assim como das respectivas decisões, seja levado para além destes profissionais especializados, tornando a comunicação com a sociedade mais abrangente. Neste sentido, diversas medidas têm sido adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de que seja adotada uma linguagem mais simples, direta e compreensível na produção das decisões judiciais e na comunicação geral do Judiciário, e dos advogados, tornando a justiça, então, mais acessível à toda população.

Uma destas medidas, foi o lançamento, pelo CNJ e STF, em dezembro de 2023, com base nos princípios constitucionais e nos instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça da Pessoas em Condição de Vulnerabilidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes), do Pacto Nacional pela Linguagem Simples do Judiciário.

De acordo com o Presidente do CNJ e STF, Ministro Luís Roberto Barroso, “[C] com muita frequência, não somos compreendidos. Boa parte das críticas ao Judiciário decorre da incompreensão sobre o que estamos decidindo. A linguagem codificada, a linguagem hermética e inacessível, acaba sendo um instrumento de poder, um instrumento de exclusão das pessoas que não possuem aquele conhecimento e, portanto, não podem participar do debate” e completou “[E] e quase tudo que decidimos pode ser explicado em uma linguagem simples, que as pessoas consigam entender. Ainda que para discordar, mas para discordar daquilo que entenderem”[3].

Ainda de acordo com Barroso, a linguagem simples na Justiça está relacionada ao fortalecimento da democracia, já que promove a igualdade de acesso à informação e à participação de todos os indivíduos no sistema jurídico, devendo ser um compromisso a ser assumido por todos os magistrados[4]. Ressalte-se que, considerando que a linguagem simples pressupõe a acessibilidade, a Pacto dispõe também sobre outras formas de aprimoramento da inclusão, como o uso, sempre que possível, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), da audiodescrição, dentre outras medidas.

De acordo com o Pacto, a atuação dos tribunais é articulada por meio de cinco eixos[5] [6] [7], abaixo especificados. De modo a estimular a utilização da linguagem simples pelos tribunais, o CNJ instituiu o Selo da Linguagem Simples, que será concedido anualmente, sempre em outubro, mês em que se comemora o Dia Internacional da Linguagem Simples (no dia 13).

  • Primeiro: diz respeito ao uso da linguagem simples e direta nos documentos judiciais, deixando de lado expressões técnicas desnecessárias, assim como à criação de manuais e guias com objetivo de orientar a população sobre o significado de expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos;
  • Segundo: incentiva a utilização de versões resumidas de votos nas sessões de julgamento, maior brevidade de pronunciamento em eventos do Judiciário e a criação de protocolos para eventos, que evitem formalidades excessivas;
  • Terceiro: formação (inicial e continuada) dos magistrados (as) e servidores (as) no sentido de utilizar a linguagem simples, assim como promoção de campanhas de amplo alcance visando a conscientização aceca da importância do acesso à justiça;
  • Quarto: incentivo no desenvolvimento de plataformas com interfaces intuitivas e informações claras, assim como a utilização de recursos de áudio, vídeos explicativos e traduções para facilitar a compreensão dos documentos e informações do Judiciário.
  • Quinto: promoção de articulação interinstitucional e social por meio de diversas ações, como criação de uma rede de defesa dos direitos de acesso à Justiça com comunicação simples e clara; compartilhamento de boas práticas e recursos de linguagem simples; criação de programas de treinamento conjunto de servidores para a promoção de comunicação acessível e direta; e estabelecimento de parcerias com universidades, veículos de comunicação ou influenciadores digitais para cooperação técnica e desenvolvimento de protocolos de simplificação da linguagem.

No mesmo sentido que o CNJ e o STF, e antes mesmo do lançamento do Pacto, medidas de acessibilidade foram adotadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], tais como, (i) em 2020, sessões do STJ passaram a ser transmitidas pelo Youtube, com tradução simultânea dos julgamentos para Libras e, atualmente, há a possibilidade de habilitação de legendas; (ii) em 2021, criação do balcão virtual, aperfeiçoado em 2023 com a adoção de recursos de linguagem acessível à pessoas com deficiência; (iii) em 2022, criação do Glossário STJ, que explica, de forma rápida e simples, o significado de expressões jurídicas utilizadas nos textos do noticiário. De acordo com o titular da Secretaria Judiciária do STJ, Augusto Gentil, no que concerne ao balcão virtual “a iniciativa representa dignidade para os usuários com deficiência, que passam a poder usufruir do serviço público e buscar informações sobre o próprio processo com independência e autonomia“. No mesmo sentido, entendemos que compreender aquilo que está ocorrendo no processo, ou, ainda, o que está sendo dito ou escrito, também é uma maneira de garantir a dignidade à população como um todo.

Desta maneira, a linguagem simples deverá estar em todos os documentos, comunicados e decisões proferidas pelo judiciário. Estas medidas, ao nosso ver, devem servir de norte para a simplificação da linguagem utilizada, também, em outras esferas, como a administrativa, na qual há autarquias especializadas, cujo uso da linguagem técnica, por vezes, afasta a compreensão por pessoas leigas, assim como por todos os operadores do direito.

As medidas para simplificação da linguagem, são fatores de empoderamento e inclusão social, reduzem as desigualdades, garantem igualdade de oportunidades, já que eliminam políticas e costumes que confrontam com estes objetivos. Além disso, o entendimento da tramitação do processo, gera a crença e a aproximação da população em relação ao Judiciário, fortalecendo a instituição. No mais, ainda, a compreensão das decisões, tanto judiciais, quanto administrativas, garante sua maior efetividade, na medida em que entendendo aquilo que foi decidido e a sua extensão, mais fácil será para a pessoa cumprir o comando nela emanado, ou discordar dele. Como cumprir ou obedecer, ou ainda, questionar aquilo que não se compreende?

Há de se considerar, que cada ciência possui sua própria terminologia, de modo a dar aos seus enunciados maior precisão e certeza. No entanto, este propósito pode também ser alcançado, com maior amplitude, optando-se por palavras de mais fácil compreensão, zelando, sempre, pelos seus significados, e mantendo-se, desta forma, seu caráter de instrumento de comunicação.

Bibliografia:

CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Disponível em:

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf. Acesso 02.08.2024.

CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em:

https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica. Acesso em 02.08.2024.

STF. Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade. Acesso em 02.08.2024.

STJ. Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em:

 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx. Acesso 02.08.2024.


[1] Instituto Nacional do Seguro Social.

[2] SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica . Acesso em 02.08.2024.

[3] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[4] “Todos os tribunais envolvidos assumem o compromisso de, sem negligenciar a boa técnica jurídica, estimular as juízas e os juízes e setores técnicos a: a. eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido; b. adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos; c. explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira; d. utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; e. fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário; f. reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; g. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade.” – In Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 4. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[5] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[6] CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

[7] CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 5 a 8. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[8] In Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx . Acesso 02.08.2024.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


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