José Américo Azevedo

O brocardo latino pacta sunt servanda, cuja origem remonta à Idade Média, por intermédio do Direito Canônico, pode ser compreendido, em tradução literal, como “os pactos devem ser observados” (Missouri Housing Development v. Brice, 1988), ou “os pactos devem ser respeitados” (Nike Intern. Ltd. v. Athletic Sales, Inc., 1988), ou, ainda, “os pactos devem ser obedecidos” (United States v. Verdugo-Urquidez, 1991)[1].

De toda forma, independentemente do nível de imperatividade do cumprimento do pacto, observa-se que o referido princípio é o ápice da concepção jurídica da autonomia da vontade entre as partes. Nas relações sociais onde são acordadas obrigações mútuas, o instrumento de regulação da intenção das partes é o contrato. Clovis Bevilaqua, no final do século XIX, trouxe importante lição:

Pode-se, portanto, considerar o contracto como um conciliador dos interesses collidentes, como um pacificador dos egoismos em lucta. É certamente esta a primeira e mais elevada funcção social do contracto. E, para avaliar-se de sua importancia, basta dizer que, debaixo deste poncto de vista, o contracto corresponde ao direito, substitue a lei no campo restricto do negocio por elIe regulado.[2]

Mister perceber a importância da função do contrato no trato social. Nesta perspectiva, necessário trazer à lume o conceito de relação sinalagmática. É dizer, o contrato é, em todo o tempo, uma relação bilateral ou plurilateral. E na medida em que se configura na expressão da vontade das partes, pressupõe a existência de direitos e deveres para os seus signatários, simultaneamente e de forma recíproca. Neste sentido, Giselda Hironaka apresenta:

A relação obrigacional é uma relação jurídica que existe sempre entre pessoas determinadas (duas ou mais), da qual pelo menos uma é devedora e a outra credora. Há na relação uma prestação delimitada. Outros deveres de conduta – que estão delimitados e são, de certo modo, secundários – também podem ser exigidos. O dever primário e decisivo, que dá conteúdo e significado à relação obrigacional e determina o caráter típico da mesma é a prestação determinada. A obrigação está dirigida a esta prestação determinada ao devedor, ou à prestação de ambas as partes, o que corresponde, neste caso, ao próprio sinalagma. Quando a prestação é cumprida, ter-se-á alcançado a finalidade da obrigação, restando esta, geralmente, extinta.[3]

Assim, depreende-se que, à medida em que a relação contratual é bilateral – supondo-se entre duas partes –, faz-se necessário o cumprimento obrigacional por ambos os lados. Neste ângulo, se torna inevitável mirar os contratos administrativos, nos quais, em um polo se encontra o cidadão ou a empresa, integrante da sociedade e, em outro, o Estado, tendo como agente a Administração Pública.

Nessa visada, passa-se a observar a desconformidade do poder de negociação e controle contratual entre os dois pactuantes. À Administração cabe definir as regras para a contratação pública, estabelecendo condições desde o procedimento licitatório – se o há –, até a execução do instrumento contratual, em todos os aspectos, restando à outra parte somente acatar as prescrições impostas, sob pena, em caso de recusa, de tombar alijada do processo, portanto, sem a possibilidade de prestar um serviço ao Estado.

Não há, geralmente, qualquer margem para negociação dos termos contratuais, traduzindo-se, na realidade, em contratos de adesão, onde não existe espaço para modificações ou necessários ajustes em benefício da mais adequada prestação dos serviços.

Longe de qualquer intenção polêmica, ilustra-se o enfoque apresentado.

Começa-se explanando acerca do “fato do príncipe” em contratos administrativos. A teoria do fait du prince surgiu na França, em finais do século XIX e início do século XX, pela mão da jurisprudência do Conseil d’Etat, como reconhecimento de uma prerrogativa exorbitante da Administração Pública de alterar as prestações devidas pelo contraente privado.[4]

Segundo Gabriel Brocchi, “é uma referência à notável obra de Maquiavel, ‘O Príncipe’, escrita na Itália renascentista do século XVI, em que se aborda a presença de um Estado forte, sugerindo que as atitudes do governante nos seus domínios são legítimas, para manter-se como autoridade”[5].

Pode-se observar que se apresenta latente o poderio do Governo nas relações contratuais, além de remeter a um período pouco democrático, onde a autoridade estatal era resguardada com a utilização de todos os meios disponíveis, legítimos ou não.

Carvalho Filho traz importante reflexão:

A supremacia do Estado no contrato enseja desde logo uma inevitável consequência. Se o dogma da igualdade das partes impõe a igualdade de condição dos sujeitos do contrato, bem como a inexistência de vantagens em favor de qualquer deles, a predominância estatal provoca o nascimento de uma série de prerrogativas conferidas à Administração. Estas, como é óbvio, refogem ao âmbito do direito privado, ou seja, exorbitam dos limites deste campo. Por isso, a doutrina as tem denominado de cláusulas exorbitantes ou de privilégio.

(…)

O dado fundamental que caracteriza o fato do príncipe reside na sua proveniência: origina-se sempre do próprio Estado, no exercício de atividade lícita. Esse fato oriundo da Administração Pública não se pré-ordena diretamente ao particular contratado. Ao contrário, tem cunho de generalidade, embora reflexamente incida sobre o contrato, ocasionando oneração excessiva ao particular independentemente da vontade deste.[6]

Embora lícito, significativo repisar que o fato do príncipe que “origina-se sempre do próprio Estado” ocasiona “oneração excessiva ao particular independentemente da vontade deste”, desequilibrando a relação contratual.

Outro aspecto de inteira importância é a imposição de previsões sancionatórias unilaterais, em total desacordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Assume-se que a única parte passível de incidir em inadimplência contratual seja o particular, sem que estejam previstas punições para as faltas cometidas pela Administração no deslinde da relação avençada.

Nesta ótica, o agente público utiliza-se da disparidade de poder da relação para submeter o contratado aos rigores máximos, em caso de alguma falta na execução do contrato, sem que sua própria responsabilidade seja aferida e apenada.

Para não navegar somente no campo das teorias e suposições, dá-se um exemplo real, abstendo-se, por óbvio, de nominar os protagonistas, vez que totalmente prescindível.

Em uma autarquia federal, foi contratada a elaboração de um projeto, consistindo nas etapas de projeto básico e projeto executivo. A empresa contratada cometeu atrasos nas entregas dos produtos para análise por parte da contratante. Esta, no entanto, incorreu, quando da avaliação do projeto entregue, em atraso relativamente de igual monta. Ocorre que o contrato ficou paralisado durante sua execução, por quase três anos, por decisão unilateral da Administração, alegando ausência de recursos orçamentários para pagamento dos serviços contratados. Durante este período a empresa continuou trabalhando, entregando a versão final do projeto básico que foi devidamente aprovado pela contratante.

No entanto, a empresa foi multada por mora, no montante de 120% do valor da etapa referente ao projeto básico – note-se, projeto este aprovado –, sem que seus recursos no processo administrativo fossem deferidos. Ou seja, a empresa prestou o serviço, apresentou o projeto que acabou aprovado e foi multada em valor 20% superior ao que deveria receber. É dizer, a empresa está pagando à contratante 120% do valor do projeto aprovado que elaborou, promovendo o enriquecimento ilícito do Estado.

Em relação à contratante, não houve, no processo de apuração de responsabilidade, qualquer menção acerca dos atrasos promovidos pela Administração – categoricamente ignorados –, remanescendo somente a punição à empresa contratada.

Resta claro que tal disparate não encontrará guarida na esfera judicial, devendo, no entanto, serem observados, no âmbito administrativo, os excessos cometidos pelos agentes públicos, para que haja uma efetiva correição, buscando a legitimidade das relações entre o público e o privado. Não obstante, estará, no caso de judicialização da contenda, se abarrotando, desnecessariamente, os escaninhos forenses por ações de responsabilidade absoluta da Administração.

Há que se enfatizar que, ao fim e ao cabo, a maior prejudicada pelas distorções nas relações decorrentes dos contratos administrativos mal geridos, é a própria sociedade, que não somente arca com os custos financeiros e temporais dessa desvantajosa gestão, como, por conseguinte, deixa de receber o objeto contratado. Indubitável o desacato à Constituição Federal que define, em seu artigo 37 que a Administração Pública deve obedecer, em suas ações, ao Princípio da Eficiência.

Diversos outros exemplos podem ser trazidos, convertendo o despretensioso artigo em um corolário de ocorrências que o tornaria assustadoramente enfadonho. O que se pretende é demonstrar a desigualdade das partes nas relações contratuais entre a Administração Pública e o ente privado.

Para minimizar os impactos deletérios deste relacionamento, faz-se necessário o incremento das fiscalizações, correições e auditorias internas e externas, além da responsabilização pessoal do agente público que incorrer em ações de caráter culposo ou doloso, prejudiciais à contratada, para que a impunidade não seja a práxis na Administração Pública.


[1] HYLAND, Richard. Pacta sunt servanda: a meditation. Virginia-USA: Virginia Law of International Law, 1994. p. 407.

[2] BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. Bahia-Brazil: Livraria Magalhães, 1896. p. 166.

[3] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A chamada causa dos contratos: relações contratuais de fato. Revista de Direito do Consumidor: vol. 93, Mai – Jun / 2014, p. 210.

[4] COSTA, Andreia Duarte da. Modificações objetivas do contrato de concessão de serviços públicos num cenário de crise. Dissertação de Mestrado. Lisboa-Portugal: Universidade de Lisboa, 2016. p. 102.

[5] BROCCHI, Gabriel Gallo. A teoria do fato do príncipe. 2020.

Disponível em:

Acesso em: 23.07.2024.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. O fato do príncipe nos contratos administrativos. In: Revista de Direito da Procuradoria-Geral de Justiça, Rio de Janeiro, nº 23, p.73-79, jan./jun. 1986. pp. 74, 76.


José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex-colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.

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