Maria Augusta Sampaio Ferraz

A normatividade dos precedentes no direito brasileiro

No contexto jurídico atual, o destaque dos precedentes é evidente. Sua introdução no sistema jurídico brasileiro tem como fundamento desempenhar um papel crucial na promoção da isonomia na aplicação do direito, assegurando que casos semelhantes sejam tratados de maneira uniforme e previsível. Este mecanismo busca contribuir significativamente para a segurança jurídica e para a confiança dos cidadãos no judiciário.

As Cortes Superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, são fundamentais na formação de teses que orientam a aplicação do direito pelos demais tribunais. As decisões proferidas por estas instâncias superiores estabelecem, em determinados casos, precedentes obrigatórios, que devem ser seguidos pelos tribunais inferiores, garantindo assim a coerência e a integridade do ordenamento jurídico.

A partir do momento em que os precedentes são adotados como fontes do direito no sentido de formarem uma regra de conduta, as decisões judiciais deixam de ser apenas resoluções de casos concretos para assumirem um papel normativo. Esta transformação é evidenciada pela relevância conferida aos acórdãos das Cortes Superiores, especialmente o STF e o STJ.

Nesse sentido, o papel das Cortes Superiores é de grande destaque, pois certas decisões proferidas nessas jurisdições constituem precedentes com efeito vinculante tanto horizontalmente, entre os próprios ministros e turmas desses tribunais, quanto verticalmente, obrigando os tribunais inferiores a seguirem essas orientações. A adoção dessa prática visa assegurar a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais, promovendo a segurança jurídica e a isonomia.

A normatividade dos precedentes é vista como um mecanismo indispensável para garantir a uniformidade, a estabilidade e a previsibilidade das decisões judiciais. A adoção do CPC/2015 e a valorização dos precedentes pelas Cortes Superiores evidenciam uma transformação significativa no sistema jurídico brasileiro, que busca conciliar a tradição do civil law com a prática dos precedentes, tradicionalmente associada ao common law.

Quando falamos em precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, podemos falar das decisões proferidas em sede de Repercussão Geral, que, após o julgamento, são formados “temas”, que nada mais são o dispositivo da decisão que deve ser observado para posterior aplicação em casos idênticos ou semelhantes, com o devido dever de adequação.

A formação de teses e os limites que devem ser observados pelos tribunais

A decisão judicial é, de maneira simples, o resultado da subsunção de um fato a determinada norma. Para Kelsen, a subsunção é um processo técnico-jurídico que assegura a objetividade e a previsibilidade do direito.[1] Contudo, há algum tempo, a tarefa dos juízes não é vista, exclusivamente, como só a de aplicar a lei dedutivamente[2], seja pela necessidade de completude do sistema, que muitas vezes contêm lacunas ou termos vagos que precisem de interpretação, seja pelo crescente papel dos Tribunais Superiores na interpretação dessas normas. Soma-se a isso a importância dos precedentes, conforme já abordado.

O julgamento de recursos extraordinários e formação de teses pelo STF e pelo STJ tem um papel fundamental na uniformização da interpretação da Constituição Federal e das Leis Federais, além da promoção da segurança jurídica. Contudo, é imperativo que estes Tribunais, ao proferirem decisão em determinado recurso de aplicação vinculante, observem estritamente os limites do caso concreto, evitando extrapolar ou modificar a questão originalmente discutida e decidida nas instâncias inferiores. Esse cuidado é essencial para garantir que a tese fixada reflita exatamente o que foi decidido, sem ir além ou aquém do que foi solicitado e debatido.

A necessidade de observância dos limites do caso concreto se fundamenta nos artigos 102, inciso III e 105, inciso III, da Constituição Federal, que estabelecem a competência do STF e do STJ, respectivamente, para “julgar, mediante recurso extraordinário/especial, as causas decididas em única ou última instância”. Este dispositivo implica que a tese a ser fixada deve corresponder precisamente ao que foi objeto de discussão no caso concreto, não podendo divergir do que foi pedido e debatido nas instâncias inferiores. Ao exceder esses limites, estes Tribunais correm o risco de criarem novas normas jurídicas sem a devida participação das partes envolvidas, o que contraria os princípios do devido processo legal e do contraditório. Isso ocorre porque as teses não podem, de maneira arbitrária, abordar temas que não foram incluídos no pedido inicial e sobre os quais não houve um debate amplo e exaustivo.

Nesse sentido foi o posicionamento do STJ no julgamento do Recurso Especial 1798374, de relatoria do Ministro Mauro Campbell. No caso, o Tribunal discutiu se seria possível a interposição de recurso especial contra decisão de segunda instância que fixa tese em abstrato em incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR). A decisão foi que o recurso não seria cabível pela ausência do requisito constitucional de necessidade de causa decidida.[3]

RATIO DECIDENDI, OBITER DICTUM e tese

No contexto dos precedentes, alguns conceitos jurídicos do direito anglo-saxão são inerentes ao tema, tais como ratio decidendi e obiter dictum. Desse modo, o jurista brasileiro tem o ônus de enquadrá-los no âmbito jurisdicional constitucional para aplicá-los no ordenamento jurídico nacional.

Inicialmente, cabe destacar que observamos, em especial com a valorização dos precedentes e com o dever de observância dos provimentos jurisdicionais vinculantes, que os Tribunais, em especial o STF e o STJ, tentam, de alguma forma, universalizar tanto quanto possível a amplitude de suas teses para que mais casos sejam abarcados na aplicação de seus precedentes.

A conduta ocorre, em certa medida, como uma tentativa de diminuição de acervo e de recebimento de processos por essas Cortes, tendo em vista que após um pronunciamento vinculante, seja através de repercussão geral ou de recursos repetitivos, os Tribunais de segunda instância podem obstar o processamento dos recursos que estejam em consonância com as teses proferidas pelas Cortes Superiores, inviabilizando a sua subida e assim diminuindo o acervo desses Tribunais.

Contudo, tal medida se mostra temerária e quiçá contra legem. Condutas que simplifiquem ou tentem buscar atalhos para problemas estruturais não se mostram efetivas, como podemos perceber nas últimas décadas.

Assim, para que seja possível definir a generalidade de uma tese é necessária a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum. Comecemos pela ratio, que, para é o fundamento essencial da decisão judicial, ou seja, o ponto central de onde se extrai a regra jurídica aplicável ao caso concreto. A ratio decidendi é a parte da decisão que contém a norma geral, que serve de base para o julgamento e que pode ser utilizada em futuros casos semelhantes. É a essência do raciocínio judicial que determina o resultado do caso e que pode ser replicada em situações análogas para garantir a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais.[4]

Já tudo aquilo que não foi identificado como razão principal para decisão é obiter dictum. Ou seja, tudo aquilo que não é ratio decidendi, e que não é essencial ou fundamental para o resultado de um caso.

O grave problema a ser enfrentado é que as Cortes Superiores brasileiras têm como costume se referir à ratio decidendi como teses, e por isso a relação entre os termos é de extrema importância. Se a tese deve refletir o(s) principal(is) fundamento(s) do julgamento do caso concreto, e ela não reflete, há, no mínimo, um problema de falta de coerência ou de lógica entre teoria (lei) e prática (julgamento).

O raciocínio sistemático pensado de acordo com o nosso sistema legal, portanto, nos leva à conclusão de que uma tese formada por fundamentos tidos como obiter dicta não refletem a discussão jurídica trazida no caso concreto e posta em julgamento. Nesse sentido, se os artigos da Constituição acima citados dispõem que o STF e o STJ devem julgar, mediante recursos extraordinário e especial, as causas decididas em única ou última instância, e se não existe causa decidida, é possível que possamos falar em inconstitucionalidade da tese formada em determinado precedente, por descumprimento de norma constitucional.

Essa é uma discussão traz reflexões necessárias de aplicação prática, em especial no sistema judicial brasileiro, onde institutos importados encontram-se cada vez mais presentes no ordenamento jurídico.

Portanto, a postura das Cortes Superiores em buscar a universalização de suas teses, visando reduzir o acervo de processos, deve ser ponderada com cautela. Simplificações ou atalhos para resolver problemas estruturais do sistema judiciário podem levar a soluções inadequadas e contrárias aos princípios fundamentais do direito. É crucial que as teses fixadas reflitam fielmente os fundamentos discutidos e decididos no caso concreto, garantindo assim a legitimidade e a eficácia dos precedentes.

Referências

ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo, Processo de Conhecimento, Recursos, Precedentes – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 208.

ARRUDA ALVIM, Teresa. O novo CPC: o que importa? 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.


[1] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.

[2] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo, Processo de Conhecimento, Recursos, Precedentes – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 208.

[3] A tese fixada pelo STJ no REsp 1798374 foi a seguinte: Não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de “causa decidida”, mas apenas naquele que aplique a tese fixada, que resolve a lide, desde que observados os demais requisitos constitucionais do art. 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema.

[4] ALVIM, Teresa Arruda. O novo CPC: o que importa? 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.


MARIA AUGUSTA SAMPAIO FERRAZ. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *