Marco Aurélio Bittencourt

Os analistas econômicos, recorrentemente, cerram fileiras contra os avanços na política fiscal que se dirige aos mais pobres e aos mais humildes, tomando como fundamento as mexidas de xadrez que os políticos executam para tal fim. Pelo menos não falam em demagogia. Faço aqui uso do artigo do economista Marcos Mendes, intitulado “As vinculações de despesas são causa central do desequilíbrio fiscal crônico”. Ele faz as contas, mas olha para as árvores e a floresta continua na sombra.

O Autor afirma que uma das medidas essenciais para tirar o governo da rota do endividamento insustentável é a revisão das vinculações das despesas ao salário-mínimo (SM) ou ao crescimento da receita. Ele também argumenta que as vinculações das despesas são fator essencial de desequilíbrio fiscal e realiza um exercício hipotético para considerar a situação da manutenção dessas vinculações em termos monetários precisos. Se essas vinculações não fossem aplicadas, a despesa em 2024 poderia ser de R$ 131,6 bilhões mais baixa. Isso converteria déficit primário previsto de R$ 9,3 bilhões em um superávit de R$ 122,3 bilhões (1,1% do PIB).

Certamente, uma tungada de respeito que pretendiam aplicar ao populacho que é o beneficiário direto dessas medidas vinculativas. De fato, atingiria aposentados da previdência social, os mais pobres, e áreas como educação, saúde e segurança. O autor conclui que, com o passar do tempo, o custo fiscal das vinculações cresceria exponencialmente, especialmente nos casos da Previdência e da assistência social. Isso se deveria ao acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário-mínimo, e do Fundeb, devido aos próximos aumentos da contribuição federal fixados na Constituição.

Evidentemente, mudanças atuais não podem ser a causa do déficit crônico que já existia antes dessas medidas vinculantes de 2023. No entanto, ele não culpa os juros da dívida pública por esse déficit crônico. O ponto é que existem dois itens preocupantes para o desequilíbrio fiscal: os juros da dívida pública e os gastos sociais. O principal fator determinante são os juros da dívida pública. Para demonstrar meu argumento, utilizo dados do orçamento público conforme os padrões da OCDE – COFOG, Painel do Orçamento Federal. Vamos agora analisar o padrão orçamentário em grandes números.

As tabelas 1 e 2 abaixo revelam o nosso padrão orçamentário. Considerando o ano de 2022, apenas quatro itens merecem destaque: 701 – Serviços públicos gerais (que inclui os juros da dívida pública), 710 – Proteção social, 709 – educação e 707 – Saúde, respectivamente com participação percentual em relação ao PIB de 13,6%, 12,4%, 1,9% e 1,8%. Em 2022, esses itens representaram aproximadamente 95% do total de gastos.                                

 Fonte: Painel do Orçamento Federal – COFOG

Duas observações são necessárias. Primeiro, os juros da dívida estão inclusos no item Serviços Públicos Gerais, com peso de quase 65%. Segundo, o item Proteção Social conta com orçamento próprio, sendo seu déficit o principal elemento impactante nos demais gastos públicos. Outro aspecto é que, dada as condicionantes do padrão orçamentário, sua gestão se configura como “eficiente” apenas no sentido de proceder ajustes sem mudar o status quo vigente; o que certamente não é motivo de comemoração. Isso reflete o jogo político em que o povo desempenha papel secundário.

A configuração temporal do padrão orçamentário é explicitada na tabela 3, que nos revela dois fatos. Primeiro, a magnitude elevada, comparativamente aos demais, dos itens Serviços Públicos Gerais e Proteção Social, com Saúde e Educação em patamares bem inferiores. O segundo fato de destaque está nos itens que sofrem os impactos desequilibradores que estão inclusos na categoria Demais Gastos. De fato, dada a estabilidade dessas outras proporções, esse último componente é o que mais contribui para ajustes relativos aos déficits orçamentários. Com efeito, se comparamos a posição inicial (2010) com a posição final (2022), vê-se que os valores aumentaram para os dois itens de maior peso, enquanto educação e saúde ficaram um pouco acima do que prevalecia inicialmente. A queda se deu no item Demais Gastos.

A dinâmica dos ajustes na rubrica Demais Gastos, em especial na que se classifica como assuntos econômicos, mostra um vigoroso deslocamento dessas despesas, com seu efeito deletério sobre as políticas públicas pertinentes a esses itens. Evidentemente como os cortes possíveis são lineares devido ao cumprimento dos normativos legais em situação de ajustes, todas as funções de governo são atingidas, exceto serviços Públicos Gerais e Proteção Social. Serviços Gerais conta com a proteção da Lei de Responsabilidade fiscal, enquanto Proteção Social possui orçamento próprio. Mas, dadas as considerações de equilíbrio orçamentário, os tópicos preocupantes são os serviços públicos gerais em seu item transações da dívida pública e o item proteção social que, contudo, está amparado por contribuições específicas, sendo apenas seu déficit relevante para detecção de elemento desequilibrador do orçamento.

É possível observar que os juros da dívida provocam o deslocamento dos demais gastos de forma robusta, conforme mostrado na tabela 4 abaixo. O deslocamento causado pelo pagamento dos juros ou do item Proteção Social provocam no orçamento pode ser inferido pela medida de impacto que considera apenas a variação anual desses dois itens. Considere as posições dos valores em 2010 e 2022. Depreende-se que despesas com juros e proteção social em relação aos gastos totais mantiveram sua proporção, com ligeira variação para o item Proteção Social. Como dito, em relação ao item Despesas Sociais, apenas o déficit previdenciário seria relevante. O TCU informa que o déficit cresceu, no período 2013 a 2022, 6,8% em média, chegando a 2023 em R$ 375,33 bilhões. Estimamos para fins de comparação prática que o déficit corresponda a 30% da rubrica Proteção Social. Então temos dois candidatos potenciais aos deslocamentos dos demais gastos. Conforme a tabela 4 abaixo, o valor médio do deslocamento dos juros é 3 vezes maior do que o do déficit previdenciário estimado.

O item juros, de fato, é o elemento crítico no deslocamento dos demais gastos. O fato de relevância é que o pagamento da rubrica juros sofre forte influência de um componente externo ao orçamento público: a política monetária/juros do Banco Central. Num cenário de aumento dos juros, o déficit público aumentaria sem mesmo ter aumentado os gastos públicos e o efeito reverso no caso de uma baixa dos juros tem se mostrado eventual e passageiro. Além disso, o ajuste desse item juros ajudaria a resolver de forma definitiva o problema do déficit previdenciário; o que não se daria se o ajuste fosse pelo déficit previdenciário. Mais importante ainda, o ajuste dessa conta de juros poderia ser administrado pelo tesouro (reestruturação da dívida) ou monetizado pelo Banco Central (compra de títulos públicos), enquanto o déficit previdenciário dependeria do crescimento da economia e possivelmente de ajustes no próprio sistema previdenciário. Por essas razões, os juros se apresentam como o elemento central no deslocamento dos demais itens orçamentários passíveis de ajustes. O gráfico abaixo mostra a correlação entre o pagamento de juros e o resultado primário do governo central.

A ilação básica é que qualquer reforma orçamentária deve levar em conta não apenas as regras de ajustamento, mas sobretudo equacionar o problema do endividamento público de forma definitiva. O efeito juros pode anular todo o esforço orçamentário de equilíbrio sem que se esteja promovendo gastos públicos adicionais. Esse é o ponto central: o consertamento orçamentário. Ele deve vir em primeiro lugar, pois fica claro que, se o item juros for reduzido adequadamente, as reformas tributárias poderiam caminhar na direção da tributação ótima ou no redirecionamento de gastos salutares ao crescimento.

Resta a questão da vinculação das despesas.  Segundo Mendes: “O custo fiscal das vinculações cresceria exponencialmente, em especial nos casos da Previdência e assistência, com o acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário-mínimo, e do Fundeb, devido aos próximos aumentos da contribuição federal, fixados na Constituição”. Como disse alhures, o orçamento previdenciário conta com contribuições específicas e só o déficit da previdência é que captura tributos. Entretanto, contribuem para esse déficit previdenciário as benesses sociais que deveriam ser custeadas por tributos outros que não as contribuições previdenciárias, já que tais benesses não contaram com a respectiva contribuição previdenciária. Além disso, se tais gastos crescem exponencialmente, a receita líquida também deveria seguir essa tendência. Olhar o futuro é complicado. Fiquemos no presente e façamos o que tem que ser feito: o consertamento orçamentário definitivo!


MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


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