Reflexões sobre o Leilão Vazio da BR 381/MG

Katia Rocha

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Ministério dos Transportes anunciaram, recentemente, a perspectiva de realização de 13 novos leilões de concessões rodoviárias para 2024, perfazendo um total de R$ 110 bilhões em investimentos, valor em linha ao previsto no Novo PAC para novas concessões e concessões existentes, com capital privado.

A iniciativa tem o desafio de aumentar os investimentos no setor, conhecido por ensejar uma considerável lacuna de investimentos da ordem de 1,8% PIB ano, praticamente a metade da lacuna total de infraestrutura do país.

Faz parte de uma agenda maior para integração das estradas do país num sistema de transporte multimodal abrangente (que inclui os eixos ferroviários, hidroviários, portuários) de forma a melhorar a infraestrutura logística e aumentar a nossa produtividade e competitividade global.

A ANTT administra atualmente 24 concessões de rodovias, totalizando aproximadamente 13.000 km. Corresponde a apenas 13% da malha rodoviária federal total. Desse total, praticamente um terço apresenta, há tempos, problemas relacionados a obras paradas, processos de devolução ou relicitação[1].

É fato que o setor de transportes, enseja, em diversos países, um grande número de incidências em renegociações de contratos. Entre as melhores práticas internacionais para mitigação desse problema, a necessidade de uma matriz de alocação de riscos previsível e eficiente é fundamental, sendo, inclusive, parte das recomendações estruturais para Governança da Infraestrutura da OCDE.

Outras iniciativas contemplam: i) avanços na qualidade regulatória e no ambiente institucional; ii) melhor estruturação e modelagem dos projetos; iii) leilões de maior outorga ou híbridos em contraposição aos de menor tarifa; iv) indicadores de performance e regulação por incentivos; v) incentivos a concorrência e leilões competitivos; vi) arcabouço regulatório previsto em lei; vii) efetividade de governança, segurança jurídica, controle e responsabilidade; e viii) concessões de menor porte/trechos[2].

 No Brasil, inúmeras divergências interpretativas e indefinições sobre matriz de risco tem sido reportado como determinante de diversos conflitos judiciais, arbitrais e administrativos, em especial, a cada revisão, onde diversos pleitos de recomposição de equilíbrio econômico financeiro são requeridos.  

Como forma de tratar essa questão, a ANTT aprovou, ao final de 2023, o relatório final de encerramento da Audiência Pública nº 013/2022, cujo objetivo foi destinado a aprimoramentos regulatórios no que tange ao novo modelo proposto de alocação de risco nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária no âmbito da ANTT, a ser aplicada nos Contratos da 5ª Etapa de Concessão de Rodovias Federais.

Diversas estruturas de compartilhamento de riscos entre Poder Concedente e concessionária foram endereçadas na proposta. Relacionam-se às receitas e aos custos da concessão e abrangem o risco de demanda (tráfego), risco geológico, licenciamento ambiental, desapropriação e desocupação, custo de insumos e risco cambial. A possibilidade de compartilhamento foi vinculada à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos e obras pela concessionária.

Regra geral, o racional tratou de diminuir as incertezas dos fluxos de caixa da concessão, com estabelecimentos de determinados intervalos ou bandas em torno das receitas requeridas esperadas (função da demanda pelo tráfego) ou regras para variações nos custos projetados em decorrência de riscos geológicos, desapropriações etc; no decorrer da vida útil do contrato.

Realizações dentro do intervalo dessa banda (em torno de 15% da receita esperada) são alocados exclusivamente à concessionária, e, fora deste intervalo, ou nos demais casos de riscos que afetam os custos do investimento, seriam alocados ou compartilhados com o Poder Concedente, em determinado montante, a depender do tipo específico e momento de ocorrência (como exemplo a alocação dos riscos geológicos ao Poder Concedente nos primeiros 2 anos da concessão, entre outros).

Dessa forma, o aprimoramento regulatório introduziu uma espécie de seguro (hedge) no contrato de concessão, no que tange às variáveis críticas incertas. Abordou, igualmente, a questão de incentivos e alinhamento do contrato, no sentido que o acesso ao seguro é condicional à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos pela concessionária (90% do Capex).

O conceito de estruturas de compartilhamento de risco para viabilizar decisões de investimento tem relação direta com os preceitos da Teoria das Opções Reais[3]. São modelos baseados no apreçamento de derivativos financeiros[4], aplicados a investimentos em ativos reais, como as concessões. Descrevem o comportamento do agente (investidor) na sua decisão de investimento e participação no certame, sob condições de incerteza. Ajudam o formulador de política pública no sentido de desenhar os incentivos adequados para maximizar e alinhar os objetivos pretendidos.

Tais modelos estabelecem uma relação (não-linear) entre a decisão de investimento (participação no certame e exercício da opção mediante desembolso do Capex/strike price) e as diversas incertezas embutidas nos fluxos de caixa da concessão (tráfego, risco geológico, desapropriação, etc).

Identifica critérios ótimos de decisão como a “cunha de investimento” (relação entre as receitas e os custos do investimento) a partir da qual deve-se prosseguir com o investimento. Nesses modelos, regras baseadas nas métricas de Valor Presente Líquido (VPL) ligeiramente positivos são inadequadas e insuficientes. É comum em diversos casos práticos, a “cunha de investimento” ser da ordem de 2, 3 ou mais para que o investimento se viabilize[5].

Uma concessão com custos de investimentos e obras estimados em R$ 10 Bilhões – a exemplo da BR 381/MG – pode muito bem requerer montantes de receitas bem superiores a esse valor para tornar a concessão atrativa e viável, a depender das incertezas existentes. De fato, mesmo com previsão de receitas tarifárias, da ordem de R$ 22 Bilhões[6] – “cunha de investimento” de 2,2 – o leilão da BR 381/MG em novembro de 2023 foi frustrado e não encontrou interessados. Foi dessa forma adiado e sujeito a reavaliações.

É possível que uma “cunha de investimento” maior fosse necessária. Há que se calcular. Os modelos existentes de opções reais são excelentes candidatos para se estabelecer este valor, sendo igualmente úteis para a análise de eventuais desenhos complementares de compartilhamento de riscos, e, para a própria análise de impacto regulatório (AIR).

Quanto maior a incerteza, seja nas receitas (demanda por tráfego), quanto nos custos de investimentos (risco geológico, desapropriação, etc) maior a “cunha de investimento” exigida[7]. Dessa forma, alocações de riscos que diminuam as incertezas (volatilidade) dos fluxos de caixa da concessão, seja através do estabelecimento de bandas de receita (ou tráfego), ou de estruturas de riscos que afetam os custos do investimento (compartilhamento de riscos geológicos etc), diminuem efetivamente essa “cunha”, e aumentam a atratividade da concessão.

Importante ressaltar que enquanto tais estruturas de compartilhamento de risco possibilitam maior atratividade (melhor relação de risco x retorno) para a concessão, possibilitando, inclusive, potencial de maiores deságios tarifários, implicam, igualmente, num aumento da distribuição do custo percebido pelo Poder Concedente, em igual montante ao seguro oferecido. Essa questão é levantada no Acórdão TCU 1142/2023, e será objeto de coluna posterior.

Em termos gerais, o desafio do formulador de políticas públicas consiste, portanto, em viabilizar concessões não atrativas ao menor custo possível desse seguro, tendo em conta todas externalidades positivas geradas pelo investimento, seja em termos do bem estar do usuário final, mas também, em termos de aumentos na produtividade, competitividade e desenvolvimento econômico.

Concluindo, o aperfeiçoamento regulatório apresentado pela ANTT é mais que meritório e endereça recomendações estruturais já debatidas na academia e nas melhores práticas internacionais, com efeitos positivos sobre o programa de novos leilões de concessões e sobre toda a agenda da infraestrutura logística do país, com vistas a aumentar a nossa produtividade, competitividade, crescimento econômico e social.


[1] Cabe menção aos contratos da terceira etapa do programa de concessão de rodovias federais (Procrofe) em 2013/2014, cujas estimativas de demanda foram frustradas, a partir da crise econômica de 2014/2016

[2] Enquanto a média de trechos concedidos em leilões nos últimos 5 anos no Brasil foi de 410 km com 1 a 2 grupos participantes nos certames, na Colômbia essa média foi de 220 km com participação de 3 a 4 grupos nos certames. Ver detalhes em: https://ppi.worldbank.org/en/ppi

[3] Ver Trigeorgis (1996).

[4] Ver Black e Scholes (1973) e Merton (1973).

[5] Ver Dixit and Pindyck (1994).

[6] Ver Acordão TCU 1142/2023.

[7] A lógica é similar ao efeito da volatilidade em uma opção (grega vega).


Katia Rocha é Pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

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