Editorial
Paris, Lion e outras cidades na França estão sitiadas por um grande número de tratores nas ruas há alguns dias e uma das reivindicações por parte dos produtores rurais é que o acordo em torno do bloco União Europeia/Mercosul não deva prosperar, pelo temor de que os produtos agrícolas produzidos na América do Sul, sobretudo no Brasil, exerçam concorrência desleal com os produtos agrícolas franceses/europeus.
A manifestação dos produtores agrícolas franceses já gerou os seus primeiros efeitos com as iniciativas do governo francês já pressionando para que as negociações em torno do acordo comercial sejam canceladas. Esta semana o primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, afirmou categoricamente que a França não assinará o acordo União Europeia/Mercosul.
O argumento comumente utilizado é o de que a Europa perde competitividade em relação aos produtos agrícolas produzidos nos países do Mercosul porque possui regras de controle para a utilização de agroquímicos muito mais severas que nos países participantes do Bloco do Mercosul, inclusive o glifosato que é largamente utilizado no Brasil e é proibido nos países da União Europeia.
Figura 1. Taxa anuais de Crescimento da PTF (%) Países selecionados – 2000 a 2019[1]
Fonte: ERS, 2021. Elaboração SPA/Mapa, 2021
Que a produtividade agrícola no Brasil é superior a produtividade agrícola europeia não se discute. Também não se discute que o Brasil consome uma quantidade muito maior de agroquímicos que os países da União Europeia[2] e que as restrições para uso de agroquímicos no Brasil são muito mais brandas do que as restrições impostas aos produtores franceses/europeus, sobretudo, depois da entrada em vigor da Lei nº 14.785 de 27/12/2023, oriunda do conhecido PL do Veneno.
Também é verdade que o Mercosul é um dos principais mercados de destino dos agroquímicos produzidos nos países da União Europeia que, em sua grande maioria, são proibidos de serem utilizados no bloco europeu. De acordo com a Fiocruz, em 2021 os 26 países da União Europeia exportaram para todo o planeta um volume de quase 2 milhões de toneladas de agrotóxicos, somando 14,42 bilhões de euros. Para o Mercosul seguiram mais de 6,84 mil toneladas de agrotóxicos proibidos em território europeu.[3] [
Será que o choro dos franceses é correto?
É claro que, no bom francês, há um certo mise en scène[4] , pois todo produtor agrícola que se prese no Brasil e, principalmente na Europa, sabe que biotecnologia de sementes e agroquímicos não são as únicas fontes de produtividade agrícola. Muito mais importante do que isso são as condições naturais para a produção de alimentos (germoplasmas[5] e as condições edafoclimáticas (relevo, temperatura, humidade do ar, radiação etc) e as políticas públicas direcionadas à produção agrícola.
O Brasil é celeiro agrícola não por causa dos agroquímicos etc, mas sim porque as condições edafoclimáticas do Brasil são infinitamente superiores àquelas observadas nos países do velho continente. Não é à toa que a adquirida Monsanto começou as suas investidas no Brasil nos idos dos anos 1990 adquirindo a empresa Agroceres, velha conhecida daqueles que assistiam o Globo Rural naqueles anos, e se tornou a quase monopolista na produção de soja no Brasil até ser adquirida pela Bayer em 2017.
Alegar “concorrência desleal” dos produtos agrícolas brasileiros é quase a mesma coisa que dizer que a nossa agricultura só é capaz de ter preços mais competitivos que os demais países porque utiliza “meios ilícitos” para isso, o que é uma agressão gratuita a um país que por anos a fio é um dos mais produtivos do mundo em matéria agrícola (figura 1).
A verdade é que exportar agroquímicos proibidos na União Europeia e outros produtos menos nobres para o Mercosul é um negócio que pode ser bem mais interessante do que tentar combater a insuperável produtividade agrícola brasileira.
Le pleurer est gratuit!!
[1] BRASIL. Nota nº 28-2021/CGPLAC/DAEP/SPA/MAPA. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA. 10 de novembro de 2021. Disponível em: Nota2021PTFBrasilePaisesselecionados1.docx (live.com). Acesso em 01 de fevereiro de 2024.
[2] Brasil é um dos principais receptores de agrotóxicos proibidos na União Europeia | CEE Fiocruz
[3] CEEF. Brasil é um dos principais receptores de agrotóxicos proibidos na União Europeia. Centro de Estudos Estratégicos Fiocruz. Fundação Oswaldo Cruz. 10 de outubro de 2023. Disponível em: Brasil é um dos principais receptores de agrotóxicos proibidos na União Europeia | CEE Fiocruz. Acesso em: 01 de fevereiro de 2023.
[4] A tradução livre da palavra mise en scène para o português é encenação.
[5] De acordo com a Embrapa:
“Entende-se como Germoplasma o material que constitui a base física da herança sendo transmitida de uma geração para outra. Significa a matéria onde se encontra um princípio que pode crescer e se desenvolver, sendo definido ainda, como a soma total dos materiais hereditários de uma espécie.
Existem várias categorias de germoplasma: parentes silvestres; populações locais (landraces); cultivares primitivas; cultivares que foram substituídas; linhagens experimentais, mutações e outros produtos dos programas de melhoramento; cultivares modernas.”
EMBRAPA. Intercâmbio de Germoplasma. Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. Disponível em: Intercâmbio de Germoplasma – Portal Embrapa. Acesso em: 31 de janeiro de 2024.