Maria Augusta Sampaio Ferraz

Antes de falarmos sobre o tema principal do presente artigo, qual seja, colegialidade e precedentes, faz-se necessário um breve resumo histórico do sistema jurídico brasileiro, que tem sua origem na tradição romano-germânica, também denominado como civil law. O referido sistema tem origem na Europa continental, no século XIII e, durante sua evolução, podemos dividi-lo em períodos.

O primeiro período tem início com o estudo do direito romano nas universidades, que durante os séculos foi se adaptando às necessidades da sociedade, tornando-se um direito sistematizado. Posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, há uma renovação da ciência do direito, onde a legislação se torna a principal fonte do direito romano e do sistema civil law.

Anos mais tarde, a Revolução Francesa representa um marco histórico para consolidação do civil law, na medida em que, com a ascensão da burguesia ao poder, houve a ruptura com o Estado absolutista e a criação de um sistema que limitasse a atuação dos juízes, ainda aliados ao regime monárquico.

Na França, o juiz era proibido de interpretar a norma, pois imaginava-se que a legislação seria tão clara que não haveria margem para interpretação. O responsável por criar o direito (leis) seria o Parlamento, o que se mantem até os dias atuais.

Nesse sentido, o positivismo decorreu da Revolução Francesa e a lei tornou-se a principal fonte do direito, com o objetivo de garantir segurança jurídica e previsibilidade nas decisões judiciais.

O direito brasileiro, que tem como ascendência o direito português, também se filia, em sua origem, ao sistema civil law, e, portanto, adotou como lei sua principal fonte. Contudo, com o passar dos séculos, a evolução da sociedade e o aumento desenfreado de conflitos, percebeu-se que a lei já não era mais capaz de prever soluções para todas as situações apresentadas ao Judiciário.

Após séculos de um direito positivista, o direito brasileiro começou a introduzir ao seu sistema – até então fortemente positivista – alguns institutos originários de outro sistema jurídico (common law, que será tratado posteriormente), como os precedentes.

Assim, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, o papel dos precedentes no direito brasileiro ganhou mais importância. A criação de um sistema de precedentes no cenário jurídico reforça a necessidade e o objetivo de uma prestação jurisdicional que entregue segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade nas decisões judiciais, de forma que haja redução na judicialização e uma melhor e mais célere prestação jurisdicional.

Nesse sentido, o CPC de 2015 dispõe expressamente sobre a importância dos precedentes, no sentido de que os tribunais devem manter seus entendimentos uniformes para o alcance da almejada segurança jurídica, conforme disposto no seu artigo 926:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Apesar de o direito brasileiro ser oriundo do sistema civil law, ou seja, de um sistema que tem como principal fonte do direito a lei, percebemos que, diante de toda evolução, a busca pela estabilização de entendimentos sobre questões constitucionais e federais traz o precedente como novo elemento. Ainda que o sistema brasileiro de precedentes seja próprio e não uma mera cópia do sistema common law, é importante entender a origem do instituto e suas principais características.

Os precedentes têm sua origem no sistema common law, onde vigora a doutrina da observância das decisões judiciais tais como postas nos casos pretéritos (doctrine of stare decisis), isto é, as decisões são proferidas observando o que já foi decidido em um caso anterior que tenha semelhanças com o caso a ser julgado.

Mesmo com origens e fonte do direito distintas, percebe-se que há uma aproximação entre os sistemas, de modo que a lei passa a ter maior importância no commom law e os precedentes maior importância no civil law.

As disposições trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, além de darem grande importância e força normativa às decisões proferidas pelos tribunais, mostram que, apenas a Lei como fonte de decisão (civil law), não é suficiente para garantir estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica ao sistema. Luiz Guilherme Marinoni diz nesse sentido:

[…] Se no civil law imaginou-se que a segurança e a previsibilidade poderiam ser alcançadas por meio da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes, no common law, por nunca ter existido dúvida de que os juízes podem proferir decisões diferentes, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de garantir a segurança de que a sociedade precisa para se desenvolver.[1]

Diante deste cenário, a introdução dos precedentes judiciais no sistema brasileiro tem como objetivo a garantia de maior estabilidade do que é decidido pelo Judiciário. No Brasil, a força do precedente decorre de Lei. O exemplo principal do dispositivo legal que traz tal determinação é o artigo 927 do CPC, que dispõem sobre a necessidade de observância às decisões das Cortes Supremas.

Apesar dessa diferença, a matriz ideológica dos precedentes, em ambos os sistemas, é a busca por isonomia, segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais.

Os precedentes reforçam o papel das Cortes Supremas (STF e STJ) de determinar como deve se dar a interpretação da legislação constitucional e federal, e, nesse sentido, é de extrema importância essas Cortes exercerem a sua colegialidade, que desempenha um papel crucial na garantia da segurança jurídica e refere-se à prática de tomar decisões judiciais por um grupo de magistrados. Essa abordagem colaborativa promove a discussão, a troca de ideias e a revisão cuidadosa dos casos, garantindo uma maior qualidade e consistência nas decisões.

Um órgão colegiado requer que cada membro aja de forma coordenada. Em outras palavras, é necessário que cada membro leve em consideração o trabalho dos outros membros, e o resultado final depende diretamente dessa abordagem. A colegialidade compartilha semelhanças com o trabalho em equipe, uma vez que ambos envolvem colaboração e deliberação entre seus integrantes. Essa interação é de extrema importância, já que o resultado obtido é o produto resultante desse processo.

Nesse contexto, uma decisão proferida como sendo do Tribunal, e não de um de seus membros, enfatiza a natureza impessoal, independente e imparcial dos julgadores, com o propósito de evitar a atribuição de responsabilidade a um único magistrado (despersonalização). Além disso, a colegialidade atua como um mecanismo de contenção do arbítrio individual, ou seja, como uma forma de impedir a concentração excessiva de poder em um único indivíduo – o próprio julgador. Portanto, a contenção do arbítrio individual visa, sobretudo, proteger os interesses das partes envolvidas no processo judicial e a qualidade das decisões judiciais, uma vez que incentiva o magistrado a adotar uma postura neutra, contribuindo assim para a uniformidade das decisões tomadas por todos os julgadores.

Nas Cortes Supremas brasileiras, como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, a colegialidade é um princípio fundamental. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, discutiu a possibilidade do Plenário da Corte passar a construir decisões que condensem um voto majoritário e dessa forma reflitam a opinião da Corte como um todo.

Assim, a colegialidade contribui para a formação de precedentes sólidos e consistentes, uma vez que as decisões são tomadas por um coletivo de juízes com base em debates e argumentações e reflitam a posição do Tribunal. Isso reforça a previsibilidade e a uniformidade no direito, fortalecendo a confiança dos cidadãos no sistema judicial.

Assim, o julgamento colegiado que resulte em um posicionamento da Corte desempenha um papel fundamental no fortalecimento dessas instituições e na garantia da segurança jurídica. Algumas características demonstram a importância da colegialidade:

  1. Maior Consistência e Uniformidade Jurídica: A colegialidade ajuda a promover a consistência e a uniformidade nas decisões judiciais. Isso é crucial para garantir que casos semelhantes sejam tratados de maneira semelhante, o que é um princípio fundamental para a segurança jurídica. A aplicação consistente do direito constrói bons precedentes, evita arbitrariedades e garante que as decisões judiciais sejam previsíveis.
  2. Evita Concentração de Poder em um Único Juiz: Ao tomar decisões colegialmente, as Cortes Supremas evitam a concentração de poder em um único juiz. Isso é especialmente relevante em questões de grande importância, como as que são decididas pelo STF e STJ e formam precedentes. A dispersão do poder entre os juízes contribui para a proteção contra decisões unilaterais e subjetivas que podem ser influenciadas por preferências pessoais.
  3. Legitimidade e Aceitação Pública: A colegialidade também fortalece a legitimidade das decisões das Cortes Supremas. Quando um grupo de juízes chega a um consenso ou votação majoritária sobre um caso, isso aumenta a aceitação pública das decisões. Os cidadãos têm mais confiança nas decisões tomadas de maneira transparente e democrática do que em decisões individuais.
  4. Resistência a Pressões Externas: A colegialidade pode ajudar a proteger os tribunais de pressões políticas ou externas. Quando os juízes decidem em conjunto, é mais difícil influenciar um tribunal por meio de influências indevidas. A independência judicial é fortalecida pela tomada de decisões colegiais.
  5. Desenvolvimento do Direito: Os debates e discussões durante o processo colegial podem levar a um desenvolvimento mais rico do direito, o que é fundamental para a formação de precedentes. A jurisprudência resultante de tais debates tende a ser mais abrangente e aprofundada, contribuindo para a evolução do sistema jurídico.

Em suma, tanto os precedentes judiciais quanto a colegialidade nos tribunais superiores são elementos essenciais para a segurança jurídica no sistema jurídico. Eles trabalham em conjunto para garantir que o direito seja aplicado de maneira consistente e previsível, promovendo a estabilidade, confiabilidade e razoável duração do processo.


[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2016, p. 53.


MARIA AUGUSTA SAMPAIO FERRAZ. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *