Pedro S. C Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo
Em 2022, de acordo com o Monitor da Violência do site g1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base nos dados oficiais dos estados e do Distrito Federal, 1,4 mil mulheres foram mortas apenas pelo fato de serem mulheres, crime caracterizado como feminicídio[1]. Esse grave cenário se dá em razão de estarem enraizados, no cerne de nossa sociedade, conceitos e valores machistas, dos quais há tempos[2] tentamos nos desvencilhar.
Dentro deste contexto, no dia 01° de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF)[3] afastou, definitivamente, o uso da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Referida decisão é um marco importante no combate à violência de gênero que assola nossa sociedade e que mata mais mulheres do que o câncer e os acidentes de trânsito[4][5].
Para explicar melhor, a tese da legítima defesa da honra defende a ideia de que é legitima a absolvição do réu/homem que, comprovadamente, pratica feminicídio em defesa de sua honra. Esta tese decorre da herança do patriarcado que carregamos, no sentido de que o homem, chefe da casa, é o detentor/possuidor de sua esposa e, portanto, com ela pode agir da forma como bem entende, de modo corretivo e violento.
Esses valores e comportamentos foram, por muito tempo, aceitos pela sociedade e até mesmo chancelados pelo direito. Neste sentido, a decisão proferida pelo STF destaca os principais pontos de nossa legislação que culminaram no surgimento da tese, já que a honra masculina já foi um bem jurídico protegido pelo nosso ordenamento.
Neste sentido, a decisão esclarece que à época do Brasil colônia, desde o ano de 1605, os portugueses adotaram as Ordenações Filipinas, que tutelavam o “poder do homem sobre o corpo e a vida da mulher” no Livro V, Título XXXVIII (“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella”). Explica a Min. Carmen Lúcia, em seu voto, que o assassinato da mulher era um meio de afastar do marido a pecha da traição, já que o adultério colocava à prova a masculinidade do marido traído. Citando Sandra Ornellas, explica, ainda, que essa legislação, aliada aos valores culturais dos colonizadores, relacionavam a honra masculina ao comportamento feminino; a preocupação com os laços consanguíneos, com a patrilinearidade, que passavam de geração para geração, não só a herança, como também a honra da família.
Já os Códigos Criminal do Império e do Regime Republicano, posteriores às Ordenações Filipinas, embora não autorizassem expressamente o direito de o homem matar a sua esposa, passaram a considerar, apenas formalmente, o homem como sujeito potencial da prática do crime de adultério. Para tanto, deveria haver prova de que mantinha uma relação estável com sua amante, na medida em que eram normalizadas e aceitas pela sociedade as relações extraconjugais do homem. No entanto, no que concerne à mulher, bastava a presunção do adultério, destacando evidente diferenciação entre os requisitos para configuração do crime, dada a discriminação em relação ao gênero do agente.
Com a promulgação do Código Penal de 1940, esta diferenciação quanto à tipificação do crime, com base no gênero do agente, deixou de existir, não se exigindo mais a comprovação de relacionamento permanente com relação ao adultério masculino. No corpo do novo Código, no entanto, permaneceram diversas expressões discriminatórias (“mulher virgem”, “mulher honesta” etc.). Isto quer dizer, nada mudou culturalmente, pois a cobrança social e política apenas da mulher continuou, sendo ela considerada como propriedade do homem e sua exclusividade sexual[6].
Essa cobrança podia ser verificada, ademais, na legislação civil. O Código Civil de 1916 determinava serem relativamente incapazes as mulheres casadas; dispunha acerca da submissão da mulher ao homem na sociedade conjugal; preconizava ser o marido o chefe da sociedade conjugal e ter a mulher o dever de velar pela direção material e moral da família; determinava atos que a mulher não poderia praticar sem a autorização do marido.
Depreende-se, desta forma, que havia uma contaminação sistêmica do direito brasileiro, que culmina na ideia de submissão dos direitos das mulheres aos interesses do homem e que relaciona a honra masculina ao dever da mulher. Carmen Lúcia, explica, ainda, citando Margarita Danielle Ramos, o dever de a mulher, com sua castidade e fidelidade, sustentar a legitimidade do sangue, fator de honorabilidade de seu pai e marido, sendo a infidelidade perigosa por duas razões: desonra do pai e marido, e o risco de trazer para o seio familiar filhos ilegítimos.
Essa contaminação sistêmica ficou ilustrada no caso emblemático envolvendo o assassinato da socialite Ângela Diniz[7], crime passional com grande repercussão e mobilização da opinião pública. Ângela foi morta a tiros por seu marido, o empresário Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street, no dia 30 de dezembro de 1976, em Búzios, no Rio de Janeiro que, em um primeiro julgamento, foi condenado a dois anos de prisão, com o direito de cumprir a pena em liberdade.
Em sua tese de defesa, seu advogado alegou ter ele matado por amor e agido em legítima defesa de sua honra. Essa argumentação causou forte controvérsia, protestos populares e a organização de um movimento feminista “quem ama não mata”, que impulsionaram pedido de revisão pelo promotor e levaram Doca a um segundo julgamento, no qual foi condenado a 15 anos de prisão em regime fechado (ele depois obteve liberdade condicional).
Esse caso ganhou forte repercussão em razão de envolver pessoas da alta sociedade brasileira, o que levou a imprensa a veicular todos os seus passos, desde a descoberta do crime, enterro de Ângela, missa de sétimo dia, investigações e, posteriormente, todos os passos de Doca. Interessante notar que, em pesquisa realizada pela Rádio Novelo, disponibilizada em seu podcast Praia dos Ossos, verifica-se que, durante a investigação realizada, muitas foram as tentativas de justificar a conduta de Doca e de imputar a culpa pelo acontecido à vítima, em razão de Ângela ter um comportamento considerado muito à frente de sua época. O podcast relata, inclusive, reportagem na qual Doca foi mencionado como vítima.
Os desdobramentos decorrentes do assassinato de Ângela, retratam não só inúmeras tentativas de se culpar a vítima pela agressão ou, ainda, pelo seu próprio assassinato, cenário que só é encontrado em casos de feminicídio, jamais quando o corpo encontrado é masculino. Retrata também que a comoção popular[8], que causou a reviravolta no caso e a condenação de Doca, deu-se porque a imprensa esteve presente retratando os detalhes do crime, por envolver atores da alta sociedade, o que foi considerado um escândalo à época. No entanto, pergunta-se, quantos outros crimes não ocorreram nessa mesma época, nos quais o homem saiu pela porta da frente da delegacia ou do tribunal, sob o argumento de que sua honra valia mais do que a vida de sua namorada, companheira, esposa e até mesmo filha?
Voltando à análise da decisão proferida pelo STF, esta esclarece, ainda, que apenas com a promulgação da Constituição de 1988, essa diferenciação e submissão da mulher deu espaço ao tratamento idêntico a todo e qualquer cidadão, independentemente do gênero. Desta forma, homens e mulheres passam a ter os mesmos deveres e obrigações na sociedade e o Estado passou a ter o dever de instituir mecanismos para coibir a violência de gênero, doméstica, com intuito de construir uma sociedade justa e livre de preconceitos e discriminações.
Neste cenário, o Brasil assinou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Dec. n° 1.973/1996) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (Dec. n° 4.377/2002). Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha, regulamentando os direitos assegurados constitucionalmente e ratificados pelo Brasil por tratados de direitos humanos, com intuito de coibir as múltiplas formas de violência contra a mulher.
Como é possível depreender da leitura desse resumido contexto histórico apresentado na decisão do STF, a submissão da mulher perante o homem e de seu papel na sociedade, a ideia de ser a mulher propriedade do homem, seja de seu pai ou marido, ou de ser seu dever social a manutenção da honra do homem, ficaram impregnados na cultura de nossa sociedade. A cultura, por sua vez, é o conjunto dos valores, atos, ações, que são aceitos pela sociedade, que influenciam em todos os aspectos que a norteiam, como o direito, as reações e as relações sociais, e que são passados de geração para geração.
A sociedade, no entanto, sofre transformações, exigindo modificações no direito que deve acompanhar essas mudanças, tornando efetiva a sua tutela. No entanto, os valores que envolvem a sociedade, a cultura, necessitam de muito mais tempo para se transformar, o que pode ser verificado com a necessidade da assinatura de tratados, edições de leis e adoção de medidas visando ao combate da violência de gênero, que surge quando o homem, acostumado a ser chefe e dono, não atura o fato de não mais ocupar esse papel, reagindo com violência e, por vezes, matando.
E é nesse contexto que a tese da legítima defesa da honra surgiu, e criou suas raízes, absolvendo centenas de assassinos, com base na alegação de que sua honra, seu brio e seu orgulho valem mais do que a vida de uma mulher. Note que a referida tese é aceita há anos, enquanto vigente não só a Constituição Federal de 1988, que traz como princípios basilares a defesa da proteção à vida, da igualdade, da proteção dos direitos humanos, mas também todos os tratados assinados pelo Brasil e a Lei Maria da Penha.
A utilização desta tese como defesa perante os tribunais brasileiros, demonstra a tolerância da sociedade com relação à violência contra a mulher, já que a aceita mesmo sem ela apresentar qualquer amparo legal. E, diz-se isso porque, conforme esclarecido pelo Min. Dias Toffoli em seu voto, a legítima defesa da honra não é tecnicamente legítima defesa, já que seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência.
De acordo com o artigo 23 do Código Penal, a legítima defesa é uma das causas excludentes de ilicitude. Já o artigo 25 do Código Penal esclarece que, entende-se por legítima defesa, “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Adiciona Toffoli que por agressão injusta, entende-se aquela que ameaça ou lesa um bem jurídico; que há em nossa legislação a proibição do excesso, no sentido de que a defesa deve consistir no uso de meios proporcionais à agressão, isto é, suficientes para repeli-la; e que, com o objetivo de evitar que a autoridade judiciária absolvesse o agente movido por ciúme ou outras paixões e emoções, o legislador inseriu no Código Penal a regra do artigo 28, que dispõe que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal.
Desta forma, Toffoli conclui que a honra é um atributo pessoal, íntimo e subjetivo, cuja tutela se encontra delineada na Constituição, isto quer dizer, aquele que se vê lesado em sua honra tem meios jurídicos para buscar sua compensação. Neste contexto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas, sim, a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa.
E adiciona, que a legítima defesa da honra “normaliza e reforça uma compreensão de desvalor da vida da mulher, tomando-a como ser secundário cuja vida pode ser suprimida em prol da afirmação de uma suposta honra masculina”, o que está em descompasso com os objetivos fundamentais da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Trata-se de uma tese violadora dos direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres e, citando Silvia Pimentel, reforça que lançar mão dessa tese significa não o julgamento do crime em si, mas do comportamento da mulher, com base um uma dupla moral sexual, cabendo, assim, ao Estado não ser conivente e não estimular a violência doméstica e o feminicídio.
Neste sentido, a cláusula tutelar de plenitude de defesa do Tribunal do Juri[9], não pode constituir em um instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas, como o feminicídio ou qualquer outra forma de violência contra a mulher, já que no Direito brasileiro o bem considerado como mais valioso é justamente a vida. Assim, decidiu-se por obstar à defesa de um acusado, à acusação, à autoridade policial e ao juízo a utilização, direta ou indireta, da tese da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Assim, à unanimidade, a tese da legítima defesa foi julgada inconstitucional, e conferidos aos artigos 23, II 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65, do Código de Processo Penal, uma interpretação conforme à Constituição, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa.
Como visto, a decisão proferida pelo STF é um importante marco no combate a violência de gênero e reforça as mudanças sofridas no âmbito de nossa sociedade, mas também demonstra o quanto a luta é árdua para afastar do cerne de nossa cultura os traços do machismo decorrentes do patriarcado, que marcou nossa legislação e ainda corrompe o pensamento de muitos brasileiros.
Preocupa o fato de a tese ter sido afastada apenas após passados mais de 34 anos da promulgação da Constituição, que reconheceu a igualdade, e este fato reforça a questão acerca da dificuldade de se mudar a cultura de um povo e, portanto, dos valores que o envolvem. No entanto, ao mesmo tempo, conforta, na medida em que a partir de agora nenhum homem poderá dar à sua honra, ao menos em nossos tribunais, mais valor do que a vida de uma pessoa, até porque, quem assim pensa, sequer honra tem a ser defendida.
Esse é um dos diversos e importantes passos dados pela sociedade e pelas Instituições brasileiras em busca da igualdade plena entre homens e mulheres. Chegará o dia em que olharemos para esses fatos e sentiremos a distância das atrocidades vividas pelas mulheres neste país, pois, sim e, de fato, todos serão verdadeiramente iguais em direitos e obrigações diante não só da lei, mas da sociedade como um todo.
[1] Fonte: RESENDE, Rodrigo. STF decide proibir uso da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/08/01/stf-decide-proibir-uso-da-tese-de-legitima-defesa-da-honra-em-casos-de-feminicidio#:~:text=contra%20a%20mulher-,STF%20decide%20proibir%20uso%20da%20tese%20de%20leg%C3%ADtima%20defesa%20da,Weverton%20(PDT%2DMA). Acesso: 30.08.23.
[2] Os primeiros núcleos em defesa dos ideais feministas surgiram no Brasil no século XIX. Já no século XX, houve uma diversificação dos feminismos no Brasil, que iam desde uma tendência mais conservadora (feminismo “bem-comportado”) até o feminismo mais incisivo. No entanto, foi em 1960 que o movimento ganhou força, reafirmando a necessidade da luta contra “opressões sistemáticas”. Fonte: Feminismo no Brasil. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/feminismo.htm#:~:text=Entre%20as%20d%C3%A9cadas%20de%201930,pelo%20governo%20de%20Get%C3%BAlio%20Vargas. Acesso em 12.09.2023.
[3] Decisão proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, registrada sob nº ADPF 779, requerente Partido Democrático Trabalhista.
[4] Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Precisamos falar sobre Violência Contra as Mulheres. Disponível em: https://www.defensoria.rs.def.br/upload/arquivos/202303/08151229-precisamos-falar-sobre-violencia-contra-a-mulher.pdf . Acesso 30.08.23.
[5] De acordo com dados que constam na decisão, 40% de todos os assassinatos de mulheres registrados no Caribe e na América Latina, ocorrem no Brasil; no Estado de São Paulo, a cada 60 (sessenta) horas, uma mulher é vítima de feminicídio; de acordo com dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, entre 2014 e 2018, a cada 4 (quatro) minutos, uma mulher foi agredida por um homem no Brasil; 1 (um) feminicídio a cada 7 (sete) horas no Brasil.
[6] O adultério deixou de ser crime no Brasil apenas em 2005, com a edição da Lei 11.106/2005.
[7] Fonte: Assassinato de Ângela Diniz. Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/assassinato-de-angela-diniz/noticia/assassinato-de-angela-diniz.ghtml . Acesso em 12.09.2023.
[8] Importante esclarecer, neste ponto, que houve comoção apenas de uma parte da população, já que muitos foram os apoiadores de Doca, dentre eles muitas mulheres, que não estavam de acordo com o modo de vida escolhido por Ângela. As pessoas chegaram, inclusive, a fazer camisetas com a foto de Doca para apoiá-lo.
[9] Os crimes contra a vida são julgados no Brasil pelo Tribunal do Juri. A plenitude da defesa é princípio essencial à instituição do Tribunal do Juri e está disposta, na Constituição Federal, no rol de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXXVIII, a). Por meio deste princípio, restou assegurado aos réus a apresentação de argumentos jurídicos e não jurídicos (morais, políticos, sociológicos etc.) para a formação do convencimento dos jurados.
[1] Mais informações: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690
Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.