Lucia Helena Salgado

Encontra-se em consulta pública até 18 de setembro de 2023 a proposta de novos Guidelines para fusões e aquisições desenhada pela Federal Trade Commission (FTC) e pela Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (DOJ)[1]. A proposta representa uma revisão radical dos fundamentos da análise de operações de concentração tal como vem sendo conduzida nos últimos quarenta anos.

Desde 1982 até a última versão, de 2010, os guias vêm se apoiando nos avanços da organização industrial, incorporando metodologias cada vez mais sofisticadas, procurando aferir a possibilidade e a probabilidade de abuso do poder econômico sopesadas com as potenciais eficiências a serem geradas pelas operações.

A versão agora submetida ao escrutínio público toma direção diametralmente oposta. O detalhamento das metodologias econômicas de análise é substituído pela fundamentação no espírito do § 7º da Lei Clayton de 1914 – que proíbe fusões, aquisições e associações que tenham efeito de reduzir substancialmente a concorrência – e da Lei Hart-Scott-Rodino de 1976 – que impôs a obrigação de notificação de fusões e aquisições e tempo de espera para análise. Além dos textos legais, a proposta de novos guias busca apoio em julgados pela Suprema Corte em sua maioria anteriores ao período de 1982, quando a leitura de Chicago – focada no excedente do consumidor, parametrizado pelo preço que refletiria eficiência – começa a se tornar hegemônica.

A proposta de novos Guidelines aproxima – sem o dizer – o enforcement estadunidense da prática europeia – que inspirou, lembre-se, a legislação antitruste brasileira, com a adoção do conceito de “posição dominante”, cunhado pela jurisprudência europeia. Abandona o foco estático dos efeitos sobre o excedente do consumidor, ampliando a percepção do dano potencial causado por uma operação de concentração sobre quaisquer dos participantes do mercado e qualquer dimensão da competição. Inclui explicitamente a relação vertical entre empresas e trabalhadores ou seus fornecedores e o risco de bloqueio de mercados em transações verticais.

Na verdade, desde os primeiros Guidelines publicados, em 1968, há menções a relações verticais e ao poder de monopsônio que firmas em mercados concentrados podem exercer sobre fornecedores de força de trabalho. A mudança fundamental proposta é a de tornar o impacto de uma fusão sobre o trabalho fator suficiente para questionar judicialmente essa fusão.

A economia de plataformas do século XXI, com a difusão do desenho de mercados com dois ou múltiplos lados, é finalmente incorporada à análise concorrencial. Há menção à inadequação da metodologia de análise dos efeitos de fusões desenvolvida no século XX para estruturas de mercado tradicionais, mas a proposta em consulta não avança na proposição de metodologia econômica – o que pode estar programado para um segundo momento.

Na Europa, essa reflexão já completa duas décadas, contadas desde a publicação do artigo seminal de Rochet e Tirole (2003)[2], inspirador de densa literatura teórica que vem sendo aplicada há alguns anos pela Comissão Europeia.

Os novos Guidelines retomam a ênfase original do antitruste nos efeitos da concentração de mercados. Propõe-se retomar os limites definidos pelo Índice de Herfindhal-Hishman (HHI), adotado em 1982, mas em regra ignorado: a revisão de toda fusão que represente HHI superior a 1800 com variação maior que 100, de modo, segundo a proposta, a refletir tanto a letra da lei como os riscos de danos à competição.

Assim, o foco da atual proposta de guia é a concentração de mercado, um retorno à abordagem estruturalista anterior a 1982. Certamente não é por acaso que dois dos casos decididos pela Suprema Corte mais criticados como supostos erros, tanto pela Escola de Chicago como pela Economia dos Custos de Transação desenvolvida por Oliver Williamson, são citados como referência da abordagem que as agências (FTC e DoJ) intencionam adotar: o caso Brown Shoe (1962) e o caso Philadelphia National Bank (1963). Em ambos os casos, a decisão enfatiza a preocupação do Congresso “com a tendência em direção à concentração.”

A minuta dos Guidelines arrola 13 regras, a refletir os pontos a serem apreciados no controle de fusões, vamos a elas; as fusões não devem:

1. aumentar significativamente a concentração em mercados já altamente concentrados;

2. eliminar concorrência substancial existente entre as partes;

3. aumentar o risco de coordenação;

4. eliminar um entrante potencial em um mercado concentrado;

5. reduzir substancialmente a concorrência criando uma firma que controle produtos ou serviços que seus rivais necessitem para competir.

Fusões verticais não devem:

6. criar estruturas de mercado que bloqueiem a competição;

7. criar ou ampliar uma posição dominante;

8. contribuir para uma tendência em direção à concentração.

Quando uma fusão

9. for parte de uma série de múltiplas aquisições, as agências devem examinar o conjunto delas;

10. envolver uma plataforma de dois ou múltiplos lados, as agências examinarão a concorrência entre plataformas, na plataforma e para eliminar uma plataforma;

11. envolver concorrentes na posição de compradores, as agências examinarão se poderá reduzir substancialmente a concorrência por trabalhadores ou outros fornecedores;

12. envolver aquisição de controle parcial, minoritários ou propriedade compartilhada, será examinada para se verificar se reduzem substancialmente a concorrência.

Finalmente:

13. fusões não podem reduzir concorrência substancialmente nem tender a criar um monopólio por quaisquer outros meios que não os descritos nos itens anteriores.

Como se nota, os novos Guidelines em discussão são uma carta de intenções, uma sinalização sobre os rumos que as agências e em especial a FTC pretendem tomar, rumos esses muito diferentes dos trilhados nas últimas décadas. A proposta tem recebido apoio e encontrado oposição igualmente intensos. Se o formato final a ser publicado em outubro trará recuos na abordagem ou maior fundamentação econômica não é possível prever. Tampouco se terá vida longa, considerando a resistência que deverá encontrar no Judiciário e o imponderável resultado das eleições presidenciais estadunidenses em 2024. A despeito de tanta incerteza, a atual proposta já é um marco na história do antitruste.


[1] https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2023/07/ftc-doj-seek-comment-draft-merger-guidelines

[2] Rochet, Jean-Charles, and Jean Tirole. “Platform Competition in Two-Sided Markets.” Journal of the European Economic Association 1, no. 4 (2003): 990–1029. http://www.jstor.org/stable/40005175.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *