Pablo Arruda & André Santa Cruz
Maria Isolina e Joaquim Teixeira contraíram núpcias em 1976. Adotaram o que, na época, era o regime padrão: a comunhão universal de bens. Pretendem agora, em 2023, organizar seus ativos imobiliários destinados à locação em uma sociedade empresária cujo objeto será a compra, a venda e a locação de bens imóveis próprios. Mas, no meio do caminho, há uma pedra.
O Código Civil de 2002, em verdadeiro retrocesso, passou a proibir a participação, em uma mesma sociedade, de cônjuges casados nos regimes de comunhão universal ou de separação obrigatória.
Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.
Aparentemente, a intenção do legislador era, quanto à comunhão universal, evitar uma sociedade de formação patrimonial única. Aqui, falhou duplamente: primeiro, porque há a possibilidade de existirem bens exclusivos na comunhão universal; segundo, porque também é possível que, em comunhão parcial, todos os bens sejam comuns, e nesse caso não há impedimento legal (ainda bem) para constituição de sociedade entre os cônjuges.
Quanto à separação obrigatória, a questão é ainda mais grave. Já não bastasse o absurdo da obrigatoriedade do regime de separação de bens quando ao menos um dos nubentes tem mais de 70 anos, o legislador inibiu a livre iniciativa entre aqueles casados sob esse regime. Importa constar, aliás, que a obrigatoriedade de separação de bens em razão da idade (art. 1.641, inciso II do Código Civil) está na mira do Supremo Tribunal Federal (Tema de Repercussão Geral 1.236), que pode (tomara que sim) reconhecer sua inconstitucionalidade.
Mas quaisquer que sejam o nível e o fundamento da nossa irresignação com essas limitações legais, o fato é que elas estão postas e vigentes. Diante do obstáculo, quais seriam as alternativas para o casal fictício que inaugurou esse texto?
A primeira solução – que se aplica aos dois regimes proibitivos – é a constituição de uma sociedade anônima. O manual de registro desse tipo societário, instituído pela IN 81/2020 do DREI (Anexo V), seguindo a orientação do enunciado 94 das Jornadas de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, estabelece que “a vedação da sociedade entre cônjuges contida no art. 977 do Código Civil não se aplica às sociedades anônimas”.
Sendo assim, optando os cônjuges pela constituição de uma sociedade anônima, o problema está resolvido, valendo lembrar ainda que a constituição de uma sociedade anônima tornou-se bem mais palatável nos últimos anos: possibilidade de ter apenas um diretor, permissão para que o(s) diretor(es) seja(m) residente(s) no exterior, previsão dos livros societários eletrônicos e simplificação das regras sobre publicações legais (as companhias fechadas que tiverem receita bruta anual de até R$ 78 milhões podem realizar suas publicações gratuitamente na Central de Balanços do SPED).
Outra solução é a constituição de uma sociedade limitada por apenas um dos cônjuges, já que atualmente é possível a unipessoalidade nesse tipo societário (art. 1.052, §§ 1º e 2º do Código Civil). Nesse caso, o cônjuge não sócio deve anuir com a integralização dos bens imóveis e poderá participar da administração da sociedade para resguardar seus interesses sobre as quotas que sejam sub-rogadas dos bens comuns aplicados à formação do capital social.
O fato de as quotas estarem registradas exclusivamente em nome de um dos cônjuges, na comunhão universal, não faz com que deixem de pertencer ao casal, na forma do art. 1.667 do Código Civil. Ademais, a administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges (arts. 1.663 e 1.670 do Código Civil), de modo que eles podem regular, no contrato social, de que maneira os poderes inerentes às quotas serão exercidos, a despeito de apenas um deles figurar como sócio.
Independentemente do regulamento inter cônjuges quanto à gestão das quotas, dos poderes políticos a elas inerentes e da própria pessoa jurídica, no caso de planejamento sucessório, a doação das quotas não poderá ser feita exclusivamente pelo cônjuge sócio (art. 1.647, inciso IV do Código Civil). Por outro lado, a reserva de usufruto poderá beneficiar ambos, ainda que apenas um deles seja sócio, já que a propriedade é comum. Cabe, inclusive, a previsão do direito de acrescer entre eles o usufruto em caso de morte (art. 1.411 do Código Civil). Isso garante que apenas com a morte de ambos o usufruto será extinto.
Não são essas as únicas soluções práticas para contornar de maneira legítima a vedação constante do art. 977 do Código Civil. Entretanto, não é esse o principal objetivo deste texto. O que realmente queremos tratar aqui é de uma suposta solução que vem sendo defendida e até mesmo aplicada com aceitação por parte de algumas Juntas Comerciais: o condomínio de quotas entre cônjuges casados em comunhão universal.
Em um caso a que tivemos acesso, foi arquivada em uma Junta Comercial uma (primeira) alteração contratual em que o sócio único cedeu e transferiu suas quotas ao condomínio formado por ele e sua esposa (casados em comunhão universal). Na consolidação dessa alteração e na (segunda) alteração que se sucedeu, o “sócio” qualificado no instrumento passou a ser, então, o condomínio formado entre marido e mulher.
Parece-nos que essa “solução” não é possível, à luz do arcabouço normativo vigente, e vamos explicar o porquê a seguir.
O condomínio de quotas é um instituto jurídico previsto em lei e apto a solucionar uma série de questões. De fato, em que pese a indivisibilidade das quotas, o § 1º do art. 1.056 do Código Civil admite o condomínio formado por dois ou mais titulares de determinada quota. Tem-se, aqui, um condomínio voluntário.
Havendo condomínio de quotas, os direitos a elas inerentes serão exercidos por um dos condôminos, na qualidade de representante. No entanto, todos os condôminos devem figurar no contrato social como sócios, inclusive porque, como tais, respondem solidariamente pelas prestações necessárias integralização dessas quotas, e essa responsabilidade se dá em relação não apenas à sociedade, mas também em relação a terceiros (art. 1.056, § 2º, CC).
Essa necessidade de os condôminos figurarem como sócios no contrato social, por si só, já afastaria a possibilidade de se estabelecer condomínio de quotas entre cônjuges casados em comunhão universal. Afinal, eles não podem ser sócios em uma mesma sociedade limitada, em razão do disposto no já mencionado – e criticado, porém vigente – art. 977 do Código Civil.
Importa ressaltar que o condomínio voluntário não tem personalidade jurídica e, diferente de outros entes despersonificados, como o condomínio edilício e os fundos de investimento, não tem capacidade processual e contratual. Não pode, pois, ser titular de quotas em nome próprio. Tanto assim o é que, nos casos analisados por esses autores, constou como sócio no Documento Básico de Entrada-DBE um dos cônjuges e não o condomínio. Ou seja, no contrato social constou o condomínio como sócio, mas para todos os fins de direito, especialmente os contábeis e tributários, o sócio é um dos cônjuges (como de fato tem que ser).
Mas não se trata apenas disso. É juridicamente impossível se estabelecer relação de condomínio voluntário entre bens da mancomunhão de um casal. Primeiro, vamos tratar desse condomínio.
A seção I do Capítulo VI (Condomínio em Geral) do Título III (da Propriedade) do Livro III (Direito das Coisas) do Código Civil cuida do condomínio voluntário. É esse instituto que rege o condomínio de quotas. Não importa, pois, tratar aqui do condomínio necessário (Seção II), do condomínio edilício (Capítulo VII), do condomínio em multipropriedade (Capítulo VII-A) ou do condomínio especial em que se constituem os fundos de investimento (Capítulo X).
O condomínio voluntário caracteriza-se pela existência de frações de um determinado bem que pertencem, cada qual, a uma pessoa, o condômino. Essas frações serão na proporção em que se determinar entre as partes e, no silêncio, serão iguais, tantos quantos forem os condôminos (parágrafo único do art. 1.315 do Código Civil).
Imagine que Lucas e Carol, amigos que são, resolvem adquirir em conjunto um terreno no valor de R$ 400 mil. Lucas contribuirá com R$ 100 mil, e Carol contribuirá com R$ 300 mil. Nesse caso, ambos serão condôminos no terreno, detendo Lucas uma fração de ¼, e Carol uma fração de ¾ do imóvel. Observem que cada um deles detém seu próprio direito de propriedade sobre uma fração da coisa.
Cada condômino tem o direito de alhear (alienar ou doar) e gravar de qualquer ônus sua fração ideal, na forma do art. 1.314 do Código Civil. Tanto pode que, caso queira vender sua fração, deverá dar aos demais condôminos o direito de preferência aquisitiva (art. 504 do Código Civil).
Diferentemente do que ocorre no condomínio, na mancomunhão a propriedade é una, porém pertencente a duas mãos (ou até mais, no caso de poliamor com reflexos patrimoniais). Não se admite, enquanto persiste o casamento em comunhão (total ou parcial), que qualquer dos cônjuges disponha (por venda, doação ou gravame) daquilo que entende ser a sua parte sobre determinado bem comum do casal.
Perceba-se que não se trata de uma mera filigrana, mas de verdadeira diferença de institutos jurídicos que se mostram, pois, incompatíveis entre si quando nos referimos aos bens que compõem o patrimônio comum do casal.
Não são poucas as decisões dos tribunais brasileiros sobre o tema. Em 13/06/2023, por exemplo, o STJ decidiu que, “havendo separação ou divórcio e sendo possível a identificação inequívoca dos bens e do quinhão de cada ex-cônjuge antes da partilha, cessa o estado de mancomunhão existente enquanto perdura o casamento, passando os bens ao estado de condomínio” (REsp 2.028.008/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 16/6/2023).
O TJSP também já proferiu decisão sobre o assunto:
APELAÇÃO – PEDIDO DE ALVARÁ – IMÓVEL PERTENCENTE AO CASAL – MANCOMUNHÃO – PRETENSÃO DE O MARIDO DOAR SUA PARTE IDEAL DE 50% À FILHA, COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO – INADMISSIBILIDADE.
– Alienação de bem imóvel que integra o patrimônio comum do casal, em plena sociedade conjugal.
– Bem imóvel que se encontra em estado de mancomunhão, e não de condomínio.
– Licitude do negócio se houver outorga conjugal.
– Caso em que tal outorga inexiste e, pior, é vedada por lei, por se tratar o cônjuge de pessoa incapaz colocada sob curatela da filha donatária do imóvel.
– Artigos 1.647, I, e 1.749, I, ambos do Código Civil.
(TJSP – Apelação Cível 1001491-27.2019.8.26.0368 – Monte Alto – 8ª Câmara de Direito Privado – relator Desembargador Alexandre Coelho – DJ 15.05.2020)
No mesmo sentido, podemos colher algumas opiniões doutrinárias. Nas palavras de Rafael Calmon Rangel (Partilha de bens. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 105-106), “quando a comunhão de direitos se refere especificamente ao patrimônio amealhado pelo casal sob o abrigo dos regimes comunitários de bens, mostra-se tecnicamente adequado considerá-la como uma mancomunhão, que jamais pode ser confundida com o condomínio ou com a comunhão ordinária”.
Agora voltemos à estória que deu início a esse arrazoado: o casal Joaquim Teixeira e Maria Isolina, casados em comunhão universal de bens, detém mancomunhão sobre os bens do casal, bens estes que não podem ser fracionados entre eles até que se dê a partilha (ou, ao menos, a separação de fato, como prevalece na atual jurisprudência) ou uma expropriação forçada por dívida exclusiva de um dos cônjuges, quando caberá ao outro o resguardo à meação.
Ao integralizarem esses bens em uma sociedade da qual não podem ser sócios em conjunto, um deles assumirá a posição de sócio para fins registrais, mas a propriedade das quotas derivadas dos bens do casal estarão, agora, na mancomunhão em que aqueles antes se encontravam.
As quotas, pois, não podem pertencer em parte a um e em parte a outro, assim como nenhum deles detém uma fração disponível de cada uma delas, a qual poderia alhear ou onerar. Dessa maneira, não podem os cônjuges estabelecer condomínio sobre bens da mancomunhão, porque os institutos são incompatíveis para aplicação sobre os mesmos bens.
Portanto, entendemos que essa “solução” que vem sendo praticada em alguns casos, com respaldo de algumas Juntas Comerciais, não encontra amparo em nosso arcabouço normativo, trazendo insegurança para as partes que a adotam. O ideal, por conseguinte, seria uma regulamentação da questão pelo órgão competente – o DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração –, esclarecendo a impossibilidade dessa medida e orientando as Juntas Comerciais nesse sentido.
Pablo Arruda é advogado, sócio do SMGA Advogados, Mestre em Direito: Estado, Cidadanias e Mundialização das Relações Jurídicas pela Universidade Veiga de Almeida, professor de Direito Empresarial (FGV, IBMEC, PUC (RJ/SP/PR), Damásio-SP, CEPUERJ/UERJ; Escolas da Magistratura: EMERJ, ESMAGES e ESMAFE/PR).
André Santa Cruz é advogado, sócio de Agi & Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.