Maxwell de Alencar Meneses
Considerado o mais icônico e insuperável Western já filmado, em parte devido a trilha sonora inesquecível de Ennio Morricone. Ele foi eleito um dos 10 melhores filmes de todos os tempos pelo público no IMDB[i]. A história contada por esse épico do cinema se passa em 1862, pouco antes da fundação da Standard Oil em 1870, que chegou a controlar as ferrovias, essencial facility para o desbravamento do oeste americano e bem presente em cena-chave do filme.
Com efeito, em 1890, o Sherman Antitrust Act foi promulgado e reverbera até hoje, tanto que o Caderno do Cade do Mercado de Mineração, lançado em 2022, aborda a integração vertical no mercado de transporte ferroviário e confirma o modal ferroviário como o principal meio de transporte para minério de ferro. Esse raciocínio dialético, desdobrado aqui, ensina a respeito de temas concorrenciais entrelaçados nas experiências vivenciadas desde o velho oeste ítalo-americano de Sergio Leone, ao faroeste caboclo de Renato Russo.
O convite para utilizar esse enredo como meio de exploração de temáticas concorrenciais almeja uma imersão em um simulacro imaginativo, causando uma boa experiência de leitura, em consonância com a abordagem moderna da “Era da Economia da Experiência”. Ao passo que, oportuniza tocar nessa estratégia de negócios, como um fator concorrencial determinante para conquista de mercados, que ela claramente representa. Por vezes, essa estratégia é concretizada na experiência de consumo ou na área tecnológica, mais especificamente na User eXperience (UX) de uma plataforma digital.
De tal modo que, é precipuamente por meio desses aspectos que a empresa atrai clientes em quantidade suficiente para gerar o efeito de rede, como visto no recente e disruptivo boom do Tik Tok. Não tão recentemente, mas não por isso menos relevante, merece destaque o caso da Amazon, que em 2003 revolucionou a internet ao oferecer aos usuários a oportunidade de ter uma experiência simulada online ao folhear livros e ler trechos antes de fazer a compra. Fato é que a plataforma dominou o mercado de livros no Brasil em 9 anos[ii].
Já pela experiência memorável, gerada pela obra de Sergio Leone, é possível inferir princípios como os da teoria dos jogos, que são relevantes para as autoridades de defesa da concorrência, principalmente quando analisados sob a perspectiva do Acordo de Leniência e do Termo de Compromisso de Cessação (TCC). No filme, o personagem interpretado por Clint Eastwood, identificado como “o Bom”, entrega o personagem chamado “o Feio”, em troca de uma recompensa. Existe um conluio entre esses agentes, onde, em busca de ganho máximo, eles se arriscam ao ponto de planejar uma falsa captura, que é revertida antes da execução da pena por enforcamento.
Nesse ponto, chama a atenção a semelhança, embora limitada, entre questões amplamente discutidas que estão presentes no contexto do jogo envolvendo incentivos a denúncias. Isso se relaciona à propensão de cometer práticas anticoncorrenciais, através de um cálculo que leva em consideração a possibilidade de punição e as vantagens a serem obtidas com tais condutas. Outros aspectos também envolvem o risco de uso indevido desses benefícios, semelhante ao que é retratado no filme. Isso evidencia a importância desses pontos diuturnamente e minuciosamente avaliados pelo Cade durante o processo de assinatura de acordos, reforçando os ensinamentos que são extraídos dessa análise.
A fragilidade ou instabilidade observada em conluios, como no caso dos cartéis, torna-se evidente quando os personagens, “o Bom”, apelidado de “lourinho”, e “o Feio”, também conhecido como Tuco, parceiros no crime, começam a avaliar os riscos envolvidos na continuidade de sua conduta. Eles discutem quem está disposto a correr mais riscos e quem deveria receber uma compensação maior por isso, o que leva a uma repentina ruptura do acordo. O Bom percebe que pode obter uma recompensa maior com menos riscos em outra parceria, deixando Tuco abandonado no meio do deserto à própria sorte.
O terceiro personagem, ainda não mencionado, é tido pela alcunha de “o Mau”. De modo propositalmente irônico, o Mau é também conhecido por Sentença, Julgamento e ainda por Angel Eyes. Ele procura ocupar um cargo público de sargento da União em meio à guerra de secessão, como modo de obter acesso a informação privilegiada. Entretanto, tem uma característica ética mais elevada que os outros dois personagens, no que se refere a levar a cabo até o fim os seus acordos, cumprindo-os, a despeito de proposta mais vantajosa em contrário. Em contraponto, tem um prazer sádico em aniquilar seus concorrentes.
A importância dos codinomes mencionados está associada ao fato de que são marcas indeléveis e renitentes no transcurso de condutas criminosas, ao serem utilizados para evitar o reconhecimento direto dos criminosos e transmitir a posição de cada indivíduo dentro do grupo. A identificação de eventuais codinomes desempenha um papel relevante na etapa de coleta de provas relacionadas à participação em crimes contra a ordem econômica. Para processar esses delitos, assim como outros, é necessário individualizar as condutas e identificar corretamente os envolvidos. Tanto é assim que o personagem principal nesse exemplo fictício, conhecido como “o Bom”, sendo o mais astuto dentre três, e mentor em certa medida, é o único a ser anonimizado como “Pistoleiro sem nome”.
No desenvolvimento desse caso hipotético, utilizado como uma ferramenta pedagógica para explorar situações potencialmente prejudiciais à livre concorrência, os três homens entram em conflito, ou em concorrência mordaz, quando descobrem uma oportunidade de negócio muito mais vantajosa do que as anteriores, como entrantes em um novo mercado. Trata-se de um montante estimado em aproximadamente 25 milhões de reais em ouro, referentes a recursos extraviados do esforço de guerra em curso. Essa quantia foi enterrada em um cemitério desconhecido, sob uma lápide também não identificada. Neste estudo de caso, essa empreitada será considerada por uma perspectiva metafórica de prospecção de riquezas subterrâneas.
Sem a pretensão de adentrar no direito minerário, sabe-se que uns dos grandes desafios além da obtenção das licenças de exploração, são exatamente a localização das jazidas, que são essenciais para o planejamento e viabilidade econômica dos projetos de mineração, bem como para atendimento a requisitos legais relacionados a direitos de exploração. Não sem motivo, um dos campos de pesquisa de Inteligência Artificial tem sido o apoio de sistemas especialistas capazes de processar informações a ponto de precisar ao máximo os locais de busca, de acordo com o Geológo David Bressan a IA foi capaz de prever a localização de minerais exóticos de urânio[iii].
Em outras palavras, o acesso a informação, ou ainda, como afirmou inicialmente o matemático londrino Clive Humbly, os dados são o novo petróleo, de tal forma que a assimetria de informação é assunto de interesse concorrencial, que afeta a capacidade das empresas de operar em determinados mercados. No exemplo do filme, essa assimetria se manifesta de diferentes formas: o Bom sabe o nome na lápide, o Feio sabe o nome do cemitério e o Mau apenas conhece a origem do ouro.
Esse cenário enseja uma acirrada competição pela informação, com uso de estratégias abusivas a fim de se obter uma posição dominante, que culminam na eliminação final dos demais concorrentes por intermédio de um truel (duelo com três oponentes) no formato do icônico impasse mexicano. Os desafiantes observam por segundos intermináveis os sinais de atividade por parte do concorrente antes de tomar sua própria decisão de movimentação, que não poderá ser revertida.
Nos anos 90, várias grandes indústrias no ramo da tecnologia enfrentaram truelos que resultaram em sua extinção. Analistas tinham uma expectativa de que apenas algumas poucas empresas seriam capazes de sobreviver à competição com as big four daquele tempo: IBM, Apple, Microsoft e Oracle, com a HP como a única possível sobrevivente, tendo até mesmo enfrentado a ameaça de ser adquirida pela Oracle[iv]. A tendência natural esperada era a gradativa absorção das demais como o fazem corpos celestes ao puxar para si planetas menores. Embora essa tendência tenha sido observada, a característica do setor de, até então, não sofrer com regulações tão restritivas quanto outros, permitiu a entrada de novas empresas, de forma que as big techs hoje são a Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft.
Esse “até então” traz em seu bojo um possível turning point regulatório perante “A Ira de Khan”[v]. Tendo em vista que, no campo do antitruste, Lina Khan, conhecida por suas críticas à Amazon, que eventualmente vieram alçá-la à presidência da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos, foi alvo, por parte da empresa, de pedido de afastamento dos casos antitruste em curso relativos à plataforma digital. Segundo a petição da Amazon, Khan argumentou em diversas ocasiões que a Amazon é culpada de violações antitruste e deveria ser desmembrada.
Neste contexto, a teoria da escolha pública se torna relevante uma vez que, de acordo com Mandle e Reidy (2015), é uma abordagem da ciência política que, utilizando pressupostos e modelos comuns na economia, analisa ocupantes de cargos eletivos e outros atores políticos como agentes movidos principalmente por interesses próprios. Esse conceito é praticamente óbvio, considerando que o simples fato de alguém ingressar no serviço público não tem o condão de transformá-lo em um ser amputado de eventuais interesses privados. Diante disso, a história de “O Bom, o Mau e o Feio” ensina ser necessário cuidado para que, ao ultrapassar suas missões institucionais, no afã de garantir outras prioridades nacionais, a autoridade antitruste não venha incorrer em tornar-se parte do conflito e venha, de modo incauto, assumir o papel de “o Bom” ou de outro personagem que não seja o seu próprio.
A partir disso tudo, fica evidente que na dinâmica das partes envolvidas em questões de defesa da concorrência pode ocorrer um magnetismo na direção de estereotipar os agentes: alguns sendo vistos como “o Bom”, outros como “o Mau” e ainda outros como “o Feio”, que em conjunto são o construto do título alternativo “Três Homens em Conflito” que, contextualizado, se tornaria “Três Partes em Conflito”. Essa reflexão se dá para reforçar o imperioso afastamento de eventual caracterização de um Grupo Comprador como sendo “o Mau”, a empresa adquirida como “o Bom”, o órgão antitruste como “o Feio”, ou outras variantes desses papéis, a depender da perspectiva do expectador.
Esses personagens foram assim intitulados pelos produtores, inclusive como uma forma de provocar essa reflexão a respeito de uma visão maniqueísta do mundo. Nenhum deles é permanentemente bom, mau ou feio, mas uma composição de nuances variáveis. A identificação de uma grande corporação que ao longo dos anos, por meio de inovação, erros e acertos, conseguiu lograr êxito de modo a expandir-se, como algo perigoso por si só, é exemplo disso. Por outro lado, a associação da autoridade antitruste a qualquer um desses papéis, mesmo que de modo subconsciente, também é no mínimo impróprio.
Essa áurea de faroeste é insidiosa e povoa o imaginário coletivo, como a maior parte do que se torna uma exposição constante. Ciente de todas essas questões, é importante que o órgão de defesa da concorrência, como vem fazendo o Cade, mantenha-se lúcido, técnico e alinhado com padrões de excelência à altura da missão que ocupa, de tal forma a se postar como um facilitador para o ambiente concorrencial, capaz de garantir a todos regras claras, respostas tempestivas, bem como uma perspectiva imparcial, não maculada com esses pressupostos que atribuem a determinados grupos papéis necessariamente negativos de antemão.
Quem participou ou participa de atividade empresarial, em especial no setor de inovação e tecnologia, na luta ferrenha para manter-se atualizado e competitivo, ora perdendo, ora ganhando, investindo muito em melhoria de processos, qualidade, em um corpo técnico capaz de diferenciar produtos e serviços, valorizando novas ideias com poder disruptivo para vencer seus concorrentes, saindo da reles disputa por preço, preocupando-se com sua rentabilidade e capacidade de se manter no jogo a todo tempo, de manter empregos e não perder seus melhores ativos profissionais para a concorrência, oferecendo benefícios competitivos e participação nos lucros. As pessoas que conseguem fazer tudo isso funcionar, de modo legítimo, a ponto de serem capazes eventualmente de adquirir um competidor menos competente, não podem ser vistos por lente que não seja do respeito e da admiração, pois competir é muito difícil mesmo.
Além do já exposto, os elementos presentes nesse longa, são notadamente encaixados, ou partidos em três personas, sendo interessante notar que muitas outras instituições, histórias, conceitos e áreas do conhecimento fazem uso dessa divisão em uma tríade. A Lei dos Três Estados de Conte, que categoriza o pensamento em teológico, metafísico e positivo. Na filosofia, a tese, antítese e síntese. Em narrativas a subdivisão em introdução, desenvolvimento e conclusão. Na lide jurídica marcada por três partes principais: as partes, o pedido e a causa de pedir. O ser humano composto por corpo, alma e espírito.
O próprio Cade exerce a função preventiva, a repressiva e a educativa, por meio do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, da Superintendência-Geral e do Departamento de Estudos Econômicos. Com as missões principais de: (i) prevenção e repressão às infrações à ordem econômica; (ii) orientação, incentivo e fomento à concorrência; e (iii) análise de atos de concentração econômica.
Tomando por base esses padrões e os personagens de moral ambígua e complexa apresentados na película, buscando tecer uma comparação, mesmo que ainda deveras imperfeita, entre o filme e a atuação do Cade, uma forma de fazê-la seria pelo entendimento de que a complexidade e a diversidade do cenário concorrencial no Brasil compreendem uma miríade de condutas e interesses de empresas, consumidores e da sociedade, que podem se sobrepor ou conflitar em situações ambíguas, assim como os personagens, e ainda mais controversas. Não é possível distinguir, de modo taxativo, quem são os bons, os maus e os feios no mercado. Possivelmente, esses seriam arquétipos aos quais condutas poderiam ser associadas em determinados momentos.
Cabendo ao Cade, que por sua vez enfrenta seus desafios e limitações, como recursos humanos e financeiros escassos, analisar cada caso com rigor, de forma ao mesmo tempo meticulosa e célere, buscando manter em ordem a livre concorrência e o bem-estar social dela advindo.
Sendo correto afirmar que nos cenários cada vez mais complexos de condutas anticoncorrenciais se faz mister o aperfeiçoamento de sistemas de computação e inteligência artificial para dar auxílio na análise e reconhecimento de padrões, pela capacidade nata dessa tecnologia de processar grandes volumes de dados, identificar correlações e padrões complexos, prover insights para a detecção e investigação de práticas anticompetitivas, que combinadas com o corpo técnico de alta especialização, aplicando interpretação com a distinção inerentes a humanos, capaz de resultar em tomadas de decisão precisas em tempo de se preservar adequadamente o ambiente concorrencial brasileiro.
A coragem de ser imperfeito, complexo e ambíguo faz parte da jornada das pessoas e das instituições. A qualidade se atinge por processos repetidos de reflexão, como a realizada nesse momento, que ao ser considerada ou criticada – afinal, como diria Nelson Rodrigues, “Toda unanimidade é burra” – sendo possível, a partir de um filme antigo, mas de temática atual, propiciar avanços impensáveis pelo simples fato do afastamento, mesmo que momentâneo, da realidade à qual se cerca.
[i] De acordo com a sinopse do filme na Plataforma Brasil Paralelo. Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/tres-homens-em-conflito. Acesso em: 28 jun. 2023.
[ii] Carrança, T. (2 de maio de 2023). Como a Amazon dominou vendas de livros no Brasil em apenas 9 anos. Fonte: BBC News Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwprveg0wo
[iii] Bressan, D. (21 de junho de 2023). Como a IA pode ajudar a encontrar novos minerais na Terra e em outros planetas. Fonte: Forbes Tech: https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/06/como-a-ia-pode-ajudar-a-encontrar-novos-minerais-na-terra-e-em-outros-planetas/
[iv] Lawson, S. (18 de Jun de 2012). HP Worried About an Oracle Takeover After Hurd Switched Sides. Fonte: PCWorld: https://www.pcworld.com/article/465401/hp_worried_about_an_oracle_takeover_after_hurd_switched_sides.html
[v] Filme de ficção científica onde uma entidade de inteligência superior usa seus recursos a fim de acabar com a Enterprise
[i] THE GOOD, the Bad and the Ugly . Sergio Leone. Alberto Grimaldi. Mundial, 1966. Longa metragem (178 min). Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/tres-homens-em-conflito. Acesso em: 28 jun. 2023.