Visões e objetivos do Digital Markets Act e do American Innovation and Choice Online Act
Kevin Lucena de Oliveira Torres
Com o avanço dos mercados digitais na vida de bilhões de pessoas, principalmente com a popularização da internet e dos smartphones a partir do início do Séc. XXI[1], a defesa da concorrência deparou-se com um novo dilema: o de se estariam os instrumentos do antitruste tradicional aptos a identificar práticas anticompetitivas nos mercados digitais e se os atuais remédios empregados seriam suficientes para garantir a eficiência da concorrência nesse meio.
Tais preocupações surgem ao se observar as características peculiares inerentes aos mercados digitais que, somado aos avanços da tecnologia na área inteligência artificial e no tratamento de dados por parte de grandes empresas, que são evidenciadas pelo entrincheiramento dos principais agentes que atuam nos mercados digitais, como a da empresa Google[2] no setor de serviços de buscadores online, da Meta[3] no tocante a redes sociais, da Amazon[4] em relação a Marketplaces de compra online, entre outros, como bem já reconheceu a OCDE[5] em estudo recente[6].
De mesmo modo, observa-se que a consolidação de posições dominantes neste meio em uma relação quase “Winner Takes All” ou “Winner Takes The Most”, como um resultado dos efeitos de rede dos mercados digitais, tanto diretos[7] como indiretos[8] nos principais meios de mercancia no mundo digital como marketplaces e redes sociais.
Logo, diante de um cenário peculiar se comparado as práticas comerciais exercidas no início do capitalismo industrial do séc. XIX em que o antitruste convencional foi concebido, diversas autoridades legislativas, amparadas por suas respectivas autoridades concorrenciais, iniciaram processos de redação de propostas de regulação antitruste ex ante dos mercados digitais para garantir a existência da concorrência neste meio.
Com destaque nesta temática, há a recente aprovação do Digital Markets Act[9] (“DMA”) pela União Europeia e a propositura do American Innovation and Choice Online Act[10] (“AICO”) no Senado norte-americano, ambas regulações ex ante para os mercados digitais feitas pelas mais influentes jurisdições na defesa da concorrência, inclusive para o Brasil..
A priori a exposição e compreensão de tais instrumentos legislativos, é importante destacar as principais características econômicas que tornam a mercancia no meio digital um sistema único devido a sua dinâmica de intermediação.
Primeiramente, destaca-se a disponibilidade quase instantânea que todo o meio digital possui perante o usuário que, sem custos de transação expressivo, tem a capacidade de pesquisar e acessar a uma infinidade de produtos e serviços ofertadas na rede, com tais buscas sendo viabilizadas por ferramentas de pesquisa – com destaque ao Google – que conecta o potencial consumidor aos seus fornecedoras de interesse ou à plataforma de intermediação que irá viabilizar a relação entre o comprador e o fornecedor, neste caso toma-se como exemplo a atividade desenvolvida pela Amazon em seu marketplace.
Logo, se visualiza como relevante dentro do meio digital a figura do intermediador na viabilização da relação de usuários de grupos distintos ou iguais dentro do mundo digital, seja para conectar esses a uma determina página, seja para oferecer a um potencial comprador o produto que mais lhe interessa de acordo com os seus termos de busca perante um fornecedor.
Esta característica somada ao alto grau de entrincheiramento de posições dominantes em setores econômicos que conta com a intermediação, como o market-share de mais de 90% do Google no mercado dos motores de busca[11] e a dominância da Amazon a qual movimenta quase metade do e-commerce norte-americano[12], configura para determinados agentes a característica tipificada como gatekeepers[13], por terem a capacidade de controlar o acesso ou a dinâmica de determinado mercado.
Logo, as plataformas com a referida característica podem utilizar desta capacidade para consolidar ainda mais a sua posição ao realizar alguma forma de discriminação durante a prestação do seu serviço, como realizar auto preferência na oferta de produtos a um potencial consumidor em relação a um concorrente que depende da plataforma de intermediação para ter acesso ao mercado, por exemplo.
Tais preocupações no tocante a possibilidade de fechamento de mercado foi notada por autoridades concorrenciais, sendo um dos argumentos de debates acerca da necessidade de uma regulação concorrencial ex ante dos mercados digitais. Tais debates, acarretaram na propositura e futura aprovação do DMAna União Europeia como um instrumento legislativos para regular a atuação dos gatekeepers nos mercados digitais e garantir a concorrência.
O DMA, portanto, possui um papel importante na definição objetiva das circunstâncias que caracterizariam um gatekeeper para a atuação da Comissão Europeia, as quais estão presentes no art. 3º do instrumento legislativo e, em síntese, o define como aquele agente que possuo receita no montante de €7.5 bilhões nos últimos três anos e ao menos 45 milhões de usuários ativos com pelo menos 10 mil destes devendo estarem situados na União Europeia.
Após as definições dos parâmetros para definir “quem” será regulado pela nova Lei, a mesma define, em seu artigo 5º, um rol de obrigações positivas e negativas na atuação comercial das empresas enquadradas, ou seja, o “o que” deve e não deve ser feito pelos agentes regulados as quais se destacam: a obrigatoriedade em dar ao usuário – principalmente fornecedores de produtos – acesso a certas informações referentes performance de publicidades desenvolvidas na plataforma, permitir acesso a desenvolvedores de tecnologia a funcionalidades de dispositivos móveis caso seja desenvolvida pela plataforma, a proibição de estabelecer condições “desfavoráveis” entre usuários que atuem como fornecedores de um mesmo mercado, a proibição de realizar auto preferência de seus próprios produtos em relação aqueles disponibilizados pelos usuários da plataforma que também atuem como seu concorrente, entre outras.
Nota-se, portanto, que pelo seu escopo de atuação o DMA tem como objetivo determinar condutas, ora de forma objetiva, ora um tanto subjetiva, de modo a regular a atuação de grandes empresas – as que se caracterizaram como gatekepeers nos moldes da regulação –, e garantir a não ocorrência de fechamento de mercado por descriminação, auto preferência ou pelo bloqueio à inovação. Ou seja, o referido instrumento tem como objetivo evitar o abuso de posição dominante por parte de agentes de destaque nos mercados digitais europeu.
Tamanha inovação legislativa em um meio tão importante como os mercados digitais não passou despercebido pelo Congresso norte-americano que, de forma análoga e menos abrangente, discute no momento de publicação deste trabalho a aprovação do American Innovation and Choice Online Act.
Tal dispositivo legal imporia a grandes agentes não só dos mercados digitais mais, também, desenvolvedores de tecnologia e de software – como aplicativos e programas – que permitem a pesquisa ou disponibilizam o acesso a uma grande quantidade de dados, certas obrigações com o intuito a garantir a eficácia da concorrência e do fomento a inovação.
As empresas enquadradas seriam, nos termos da proposta, referenciadas como “covered platforms” no artigo 5º da segunda seção,os quais se caracterizariam como os agentes que possui mais de 50 milhões de usuários, com vendas ou capitalização de mercado superior a US$ 600 bilhões e que são “parceiros comerciais críticos”.
No tocante a imposição regulatória, a aparente similaridade com o DMA não simboliza na prática a coincidências das imposições por parte de ambas as legislações. A evidente influência da Escola Pós-Chicago[14] na defesa da concorrência americana impõe atuações mais restritas de suas regulações concorrências. Em destaque, a auto preferência não é completamente proibida nos termos da proposta norte-americana, ao contrário do que acontece no texto europeu, ademais nota-se um escopo muito mais restrito na delimitação das empresas que estarão sujeitas a regulação concorrencial.
Porém, há sim similaridades com a regulação europeia, principalmente ao se observar a proibição de restringir o acesso de fornecedores a dados referentes as suas vendas na plataforma regulada, a descriminação entre fornecedores atuante de um mesmo mercado dentre da plataforma, entre em outros.
Conclui-se, portanto, que o AICO se trata de uma proposta com objetivos bastante similares ao do DMA, todavia esse não toma o mesmo grau de abrangência daquele, assim como possui uma atuação regulatória mais restrita, isto devido principalmente a uma filosofia de abordagem mais liberal propagada pela Escola de Chicago e Pós-Chicago nos Estados Unidos, como já foi mencionado, em contrapartida a uma dinâmica de atuação mais intervencionista como propaga a defesa da concorrência europeia.
Logo, há na hodiernidade a propositura de duas regulações que visam impedir o abuso de posição dominante por parte de gigantes do meio digital, principalmente no e-commerce, que atuam como intermediadoras para a ocorrência de comércio no meio digital ou na prestação de outros serviços, como ferramentas de busca, plataformas de marketplaces e até sistemas operacionais como abrange a regulação norte-americana. Problemas que, com o amadurecimento destas legislações e da defesa da concorrência nos mercados digitais, muito provavelmente serão tratados no Brasil por meio de regulação similar devido a crescente importância do meio digital na vida de quase a totalidade dos brasileiros.
[1] WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, do AT&T ao Google. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 307.
[2] Tal citação faz referência ao buscador de páginas virtuais detido pela “Google Inc.”, empresa de tecnologia hodiernamente controlada pela holding multinacional “Alphabet.inc”, que possui como endereço eletrônico: https://www.google.com.br/.
[3] Tal citação faz referência ao grupo de conglomerado de tecnologia “Meta Platforms, Inc.”, detentora das redes sociais Facebook, Instagram, Whatsapp, entre outras.
[4] Tal citação faz referência a companhia “Amazon.com Inc.”, empresa atuante nos mercados digitais em diversos seguimentos, como plataformas de streaming¸marketplace, e venda online de livros digitais e físicos.
[5] Sigla para “Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico”.
[6] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (“OCDE”). Ex ante regulation of digital markets. 1ª. ed. Paris: [s. n.], 2021. 72 p. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/ex-ante-regulation-and-competition-in-digital-markets.htm. Acesso em: 23 jan. 2023.
[7] Se trata da influência, tanto benéfica como maléfica para uma determinada plataforma que a quantidade de usuários exerce no tocante a sua utilidade, ou seja, é o aumento de eficiência de uma plataforma quando esta aumenta a quantidade de usuários que a compõe. BRASIL. CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Mercado de Plataformas Digitais. Cadernos do CADE, Brasília, ano 2021, ed. 1ª, 2021.
[8] Se trata de uma característica inerente a mercados de múltiplos lados no tocante a capacidade de um dos grupos da plataforma tem de beneficiar ou aumentar quando a quantidade de membros do outro grupo aumenta ou os seus serviços se aprimoram, como exemplo, o aumento na quantidade de possíveis consumidores de um marketplace devido a um aumento, também, na quantidade de fornecedores de produtos que utilizam a plataforma. BRASIL. CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Mercado de Plataformas Digitais. Cadernos do CADE, Brasília, ano 2021, ed. 1ª, 2021.
[9] Referente a Regulação (UE) nº 2022/1925, proposta pela União Europeia.
[10] Referente a proposta de nº S.2992, feito no Senado Federal dos Estados Unidos da América.
[11] De acordo com dados disponíveis em: https://www.similarweb.com/pt/engines/.
[12] De acordo com dados disponíveis em: https://www.statista.com/statistics/274255/market-share-of-the-leading-retailers-in-us-e-commerce/.
[13] Que, nos estudos desenvolvidos por Lina Khan, refere-se a “empresas que possuem a capacidade de controlar o acesso a determinado mercado e de definir as regras para o funcionamento do mesmo tanto para o usuário como para fornecedores de determinada plataforma ou rede”. KHAN, Lina. The Separation of Platforms and Commerce. Columbia Law Review, Nova York, ano 2019, ed. 973, p. 973-1093, 2019.
[14] No tocante a visão da referida escola de pensamento no tocante a defesa da concorrência nos mercados digitais e na defesa da inovação a seguinte obra se destaca: BAKER, Jonathan B. A Preface to Post-Chicago Antitrust. Post-Chicago Developments in Antitrust Analysis, Washington, D.C., ano 2002, p. 1 – 24, 7 jun. 2002..
Estagiário na CGAA 06 do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Estudante do 9º período do curso de direito da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: kevin.torres@cade.gov.br.