Otávio Augusto de Oliveira Cruz Filho
Em seu artigo de 2017 para a Competition Policy International, Sally Hubbard defendeu que as fake news são um problema antitruste. A autora argumentou que empresas como Facebook e Google não são apenas agregadores de notícias, mas também competem com os veículos de comunicação por anúncios, atenção do usuário e dados.[1]
Segundo Hubbard, essas plataformas se utilizam de seus modelos de negócios e poder de alavancagem em benefício próprio e, por terem papéis centrais na economia e poder de mercado, afastaram as empresas de notícias tradicionais e de qualidade para fora do mercado. Logo, haveria pouco interesse financeiro em preservar a qualidade das notícias, e as notícias de pior qualidade costumam gerar mais engajamento, principalmente no Facebook e no YouTube.[2]
Tendo como base o argumento levantado pela autora, questiona-se se a preservação da qualidade das notícias deve ser um objetivo do direito antitruste e se há, de fato, algum efeito anticompetitivo que justifique a intervenção da autoridade da concorrência nestes casos.
O contraponto ao artigo de Hubbard é trazido por Sacher e Yun, que aduzem que o argumento de que as plataformas digitais estão acabando com a qualidade das notícias não deve prosperar. De acordo com os autores, o consumo de notícias online aumentou drasticamente, mesmo antes da compreensão moderna de mídias sociais como Facebook ou Twitter. As pessoas têm se afastado das fontes tradicionais de notícias, como jornais, telejornais e rádio, e passado mais tempo online em busca de notícias. Isso levou a uma diminuição das receitas para as empresas de mídia tradicional, à medida que os anunciantes mudaram para plataformas online.[3]
Longe da existência de plataformas e poder de mercado comparáveis ao das Big Techs, a explicação mais óbvia é que menos pessoas estão lendo, visualizando ou assinando fontes tradicionais de mídia. Isso leva, em última análise, a uma diminuição das receitas, como assinantes que pagam para acessar esses conteúdos e receitas publicitárias. Como resultado, e também com o advento da publicidade direcionada, os anunciantes mudaram para plataformas online.[4]
Pode-se dizer que, à medida que a economia atual faz sua transição para uma economia orientada por dados, houve uma mudança significativa no poder de concentração econômica para plataformas digitais. Essas plataformas foram chamadas por Stucke de “data-opólios”, ou seja, empresas que controlam estruturas poderosas que atraem usuários, vendedores, anunciantes e desenvolvedores de software para seus espaços digitais.[5]
Foi o caso, por exemplo, das alegações de que o Google estaria realizando “raspagem” (scrapping) de conteúdo de outros sites, especialmente sites de notícias, isto é, mostrando imediatamente a essência da notícia no resultado da pesquisa (pequena parte de texto em letras pretas que contextualiza a pesquisa resultados e que você encontra abaixo do endereço verde mostrado abaixo de cada resultado).
O CADE abriu processo administrativo no qual o Google estaria supostamente realizando raspagem de notícias jornalísticas. A Associação Nacional de Jornais do Brasil – ANJ acusou o Google de abuso de posição dominante ao dificultar que os usuários acessassem sites de mídia para manter alto acesso em seu site.[6]
De acordo com a ANJ,
A própria estrutura de plataforma do Google potencializa e reforça sua dominância no ambiente virtual, visto que: (i) enquanto detentora de infraestrutura crítica para o mercado digital (gatekeeper), obtém melhores condições de contratação por via da dependência dos usuários da plataforma; (ii) enquanto estrutura integrada em diversos mercados, pelo poder de alavancagem pode estabelecer vantagem competitiva em mercados auxiliares ou independentes; e (iii) enquanto detentora e coletora de dados de seus usuários, além de monetizar estas informações, pode adotar uma série de práticas anticompetitivas, como discriminar consumidores, manipular o processo de escolha dos consumidores e criar vantagens anticompetitivas em relação a seus concorrentes dada a expressiva assimetria de informação criada.
Para evitar tais acusações, o Google argumentou que essa amostra prévia não mostrava o cerne das notícias, mas tão somente uma visão geral do que se trata ao usuário, e como isso ajuda na divulgação de alguns sites, até então desconhecidos.
Embora ainda seja um caso em andamento no Brasil e tenhamos que esperar como os conselheiros da autoridade antitruste brasileira decidirão este caso, as alegações de scrapping foram parte de um acordo FTC-Google no qual o Google se comprometeu a permitir que sites optem por não aparecer na vertical do Google sites enquanto ainda aparece nos resultados orgânicos.
Uma outra perspectiva é apresentada por Domingues e Silva, que discutem se as fake news deveriam ser controladas pela via regulatória ou pela política antitruste. Segundo os autores,
os efeitos e os problemas potenciais que emergem das fake news para o ambiente concorrencial não são automaticamente subsumíveis aos critérios do nosso direito antitruste. Ainda que se considerem plataformas e redes sociais como agentes dotados de poder econômico, considerando os dados públicos, não estão claramente identificadas evidências de prejuízos concorrenciais e econômicos para as empresas de mídia tradicional quando são avaliados os efeitos do fenômeno das fake news.[7]
No Brasil, o Projeto de Lei 2630/2020 (PL das Fake News), com viés claramente regulatório, instituirá a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet com o objetivo de assegurar “mecanismos de transparência” para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea baseados na internet.
Portanto, embora os abusos identificados possam ser investigados pela autoridade antitruste, é importante que ela seja cautelosa ao decidir se deve ou não abordar essas condutas por meio do direito antitruste. As fake news não devem ser tratadas exclusivamente como um problema de antitruste, uma vez que sua disseminação está além do abuso de poder de mercado ou poder de alavancagem das plataformas digitais.
Quanto a isso, Easterbrook descreveu dois tipos de erro por intervenções equivocadas da autoridade da concorrência que acabariam por substituir falhas de mercado por falhas do governo. [8]
Segundo o autor, por um lado, existem os Erros do Tipo I (também conhecidos como “falsos positivos”), descritos como o erro de condenar uma empresa por práticas que são, na realidade, pró-competitivas. Por outro lado, existem Erros do Tipo II (também conhecidos como “falsos negativos”), que se referem à absolvição de um empresa envolvida em práticas anticompetitivas.[9]
Nesse sentido, para o autor, os custos para correção dos Erros do Tipo I são maiores do que os Erros Tipo II. Ou seja, enquanto um “falso negativo” pode ser corrigido pelo próprio mercado, uma intervenção equivocada que resulte na condenação de comportamentos pró-competitivos pode não apenas ser irreversível como se espalhar para outros mercados.
Nas palavras do autor,
Uma dificuldade fundamental que o tribunal enfrenta é a incomensurabilidade das apostas. Se o tribunal erra ao condenar uma prática benéfica, os benefícios podem ser perdidos para sempre. Qualquer outra empresa que realize a prática condenada será punida devido ao stare decisis, independentemente dos benefícios. Se o tribunal erra ao permitir uma prática anticompetitiva, porém, a perda de bem-estar diminui com o decurso do tempo. O monopólio é autodestrutivo. Os preços de monopólio eventualmente atraem a entrada de novos player. É verdade que esse longo prazo pode demorar muito, com perdas para a sociedade nesse ínterim. O objetivo central do antitruste é acelerar a chegada do longo prazo. Mas isso não deve obscurecer o ponto: erros judiciais que toleram práticas nefastas são autocorretivos, enquanto condenações errôneas não são.[10]
Verifica-se, assim, que, ao contrário do que defende Hubbard, a disseminação de notícias falsas é um problema que requer soluções além do escopo do antitruste e precisamos procurar soluções fora dessa área, já que seu sucesso se baseia em fraquezas em nossa democracia capitalista. Em última análise, acreditar que a disseminação de notícias falsas é um verdadeiro problema de antitruste, é acreditar que o antitruste é o começo e o fim de todos os problemas.
[1] HUBBARD, Sally. Fake News is a Real Antitrust Problem. Competition Policy International, dez. 2017, p. 6. Disponível em https://www.competitionpolicyinternational.com/wp-content/uploads/2017/12/CPI-Hubbard.pdf . Acesso em 13 de junho de 2023.
[2] Idem.
[3] SACHER, Seth. B.; YUN, John. M., Fake News is Not an Antitrust Problem. CPI Antitrust Chronicle, dez. 2017. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/wp-content/uploads/2017/12/CPI-Sacher-Yun.pdf. Acesso em 13 de junho de 2023.
[4] Idem.
[5] STUCKE, Maurice E. Should we be concerned about data-opolies? Georgetown Law Technology Review. 2018.
[6] Processo Administrativo nº 08700.009082/2013-03 (Representantes: E-Commerce Media Group Informação e Tecnologia Ltda. / Representadas: Google In. E Google Brasil Internet Ltda.)
[7] DOMINGUES, Juliana. O.; SILVA, Breno. F. M. e. Fake news: Um desafio ao antitruste?. Revista de Defesa da Concorrência, v. 6, n. 2, p. 37-57, 2018. Acesso em 13 de junho de 2023.
[8] EASTERBROOK, Frank H. Limits of Antitrust. 63 Texas Law Review 1 (1984).
[9] Idem.
[10] No original: “A fundamental difficulty facing the court is the incommensurability of the stakes. If the court errs by condemning a beneficial practice, the benefits may be lost for good. Any other firm that uses the condemned practice faces sanctions in the name of stare decisis, no matter the benefits. If the court errs by permitting a deleterious practice, though, the welfare loss decreases over time. Monopoly is self-destructive. Monopoly prices eventually attract entry. True, this long run may be a long time coming, with loss to society in the interim. The central purpose of antitrust is to speed up the arrival of the long run. But this should not obscure the point: judicial errors that tolerate baleful practices are self-correcting, while erroneous condemnations are not”, in EASTERBROOK, 1984, p. 13.
Otávio Augusto de Oliveira Cruz Filho. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Processus. Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV. Mestre em Administração Pública com concentração em Organizações Públicas e Políticas Públicas pela FACE/UnB e licenciado em Letras pela Universidade Católica de Brasília. É Servidor Público Federal desde 2009. Atualmente, exerce o cargo de Chefe do Serviço de Cooperação Internacional na Assessoria Internacional da Presidência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).